domingo, 4 de março de 2018

Civilização Ocidental e Cultura Portuguesa

Escrito por Álvaro Ribeiro










«Nenhuma história nacional ou de povo, equivale, em movimento, à portuguesa.

Ocorre falar-se em paralelo com a história do povo judaico.

Muito diverso é o caso e convém discernir.

Os judeus expandiram-se, forçados pela destruição da sua pátria, votada ao extermínio.

Perseguidos, espalharam-se pelo mundo, tornaram-se maleáveis, suspicazes, preferindo a riqueza móvel à imobilária, que lhes tolheria a fácil evasão - facto que nunca deixaram de prever. Conseguiram formar uma nação sem território, mantida pela raça - mais pela raça que pela religião. Esse racismo, que é o mais ferrenho de todos os povos, permitiu-lhes reaver, ao cabo de dezanove séculos, o solo pátrio - quase já sem religião nem língua comum.

O caso português é de contínuo trânsito geográfico através do mares, de ocupação de ilhas e finisterras, de perfurações continentais, à maneira de cruzeiros marítimos, - em superação vigorosa dos obstáculos da natureza, em extravasa dos limites corpóreos da pátria.

O aventurismo antropológico dos Cabos do Mundo - nesta única finisterra que logrou organizar-se em Estado com pertinaz sequência - ganhou carácter ecuménico.

A adesão às novas terras e às novas gentes foi natural, voluptuosa, mesmo de amor. Se éramos portadores do incomparável ideal ecuménico do Cristianismo, essa mensagem universal e humana sem par dispôs, no caso português, de antropológica matéria-prima que muito concretamente e através de uma cobiça do mundo irrefreável, do amor ao exótico, de capacidade de afirmação heróica, de simpatia coadjuvada intensamente pelos elementos sensuais e sexuais, conseguiu integrar, muito concretamente, como dissemos, outros povos, outras culturas, e transmitir uma psique, uma atitude humana e étnica sobrepostas a corografias e raças, em triunfo espantoso do verdadeiramente humano, bastante forte e seguro de si, para, na generalidade da acção, se desprender das próprias matrizes.

Para se desprender, excepto da Saudade.

Caso que na história do mundo em grande escala é ímpar, e bem explica a reacção única dos lusíadas de Angola. Esses colonos e agricultores do Congo, os poucos funcionários administrativos brutalmente surpreendidos por assaltos maciços de bandoleiros negros, vindos ou animados de fora, intencionalmente exercitados no ódio racial e na prática imediata das mais execráveis barbaridades, em que a mutilação dos corpos antecede o assassínio, a sua reacção instintiva não foi fugir mas defenderem-se e... ficar.

Nas dispersas fazendas, nas pequenas póvoas do mato, ainda que desamparados militarmente, e antes de qualquer decisão nacional (ainda que pronta), a sua tenção nunca foi ceder. Indiferentes ao número de fanatizados atacantes, surdos a uma apregoada corrente da história de desistência ocidental, enjeitando os numerosos exemplos de abdicação, eles, verdadeiros portugueses universais por instinto e sentimento, responderam à intimidação do choque emocional terrorista, com a réplica violenta de uma indómita energia. Refluindo para se agrupar, essa gente não permitiu que a maquinação universal em curso conseguisse desbaratar a estrutura da ocupação portuguesa, que aguentou, sem ceder qualquer vila ou cidade propícia à sede de um governo separatista dentro do território, até que os reforços militares os foram socorrer.

Estranha epopeia em Angola se tem escrito com corpos e almas. Nela colaboram, como há três séculos no Brasil, os diversos elementos étnicos numa frente comum. Mais uma vez os portugueses fazem história, quando a ela lhes não convém ceder.

Nova fase de reflexão e aventura conseguimos iniciar.

Dilatar foi o verbo empregado por Camões, para significar a expansão portuguesa, que é de confluência entre a Europa e os outros continentes.

Esse verbo serve-nos. Dilatar pelo calor - calor do corpo e alma, é de amor prodígio conquistando espaços e homens.

A expressão mais alta, grandiosa e sem par desta verdadeira comunhão com os mundos novos, está no Brasil que sociologicamente reproduz o milagre da multiplicação dos pães.

Reconhece-se a excelência da obra do Brasil, mas, entra-se na injustiça quando se afirma que, noutros pontos do Globo, incluindo as actuais províncias ultramarinas, pouco fizemos ou pouco nos esforçamos.

O juízo será mais justo, se reflectirmos alguns minutos que seja, no que foi a criação ciclópica do Brasil e na absorção que, por mais de três séculos, ela representou para a metrópole tão pouca numerosa e relativamente pobre. A construção de um estado unitário tamanho - quase do tamanho da Europa -, toma aspectos de trabalho de Hércules, exaustivo, fabuloso. Por isso, desde que se atenda ao precedente americano, o que fizemos e queremos continuar fazendo em África e Ásia, significa pelo menos o alicerce de novas, grandiosas construções de uma política pluriracial, hoje em perigo no Mundo, mas essencial para a Civilização.

Pelo trânsito histórico, o luso-galaico, o português, tornou-se lusíada. No conteúdo lusíada, o primitivo povo não passa já de parcela, a alimentar aglomerados maiores em que outras raças participam numa simbiose de sensibilidade e ideal que as aproxima, destacando-as dos seus próprios meios naturais. Melhor termo não há que o "lusíada" camoniano, para designar um caso etno-cultural de encontro de continentes e povos - único na História!».

Francisco da Cunha Leão («Do Homem Português»).


«O inimigo atira pela porta da capela paroquial. Salvem-nos. Morremos Portugueses».

Apelo pela rádio dos heróicos defensores de Mucaba antes de serem salvos pela acção da Força Aérea, 30 de Abril de 1961.







«Tentando alcançar um conceito de razão fluídica e insubstancial, susceptível de ser de algum modo fiel a tal intento, propõe Leonardo Coimbra, com o que diríamos precária dimensão europeia, o conceito de "razão experimental". Nesta, como bem mostra todo o posterior caminho do pensador (e não só dele!), não pode, todavia, a razão consistir. Na verdade, o conceito de experiência, por mais que lhe deva a ciência e a própria filosofia em seu processo, tem sempre um sentido de extrinsecidade, de dinamismo casual, e com todo o êxito que possamos atribuir-lhe na ordem teórica e prática, vela mal a radical dificuldade da razão. Sabido como toda a experiência significa "razão em perigo", tal perigo pode entender-se duplamente: ou a razão cede às exigências de um saber finito, útil, mas sem garantia teorética e especulativa, ou a razão se transmuda numa forma de saber e parcial conhecimento que, no dizer do próprio pensador, "deixa o mundo atrás em irremediável aflição".

Procurando garantia para o vínculo subtil entre razão humana e razão cósmica, entre a razão de conhecer e a mais profunda razão de ser, encontra-a finalmente o pensador na Revelação e na efectividade da vida religiosa. A metafísica acaba-se em religião.

É todo um processo do nosso pensamento contemporâneo que deste modo se cerra, para de novo necessária e inevitavelmente se abrir. Aqui porém dificuldades a todos nós surgem, as mais sérias e mais graves, já em relação à filosofia portuguesa, já perante a situação de todo o pensamento europeu, dificuldades cuja sondagem os estudos até agora realizados, bem como os limites deste trabalho, não permitem mais longamente atender.

Assim se depara momento adequado a interrogar-nos sobre o conceito de razão e suas implicações teóricas ou práticas nos pensadores não metafísicos, filósofos, agnósticos ou ateus desta mesma época.

Ocioso quase notar, não só à luz de quanto interpretamos mas das novas instâncias críticas contemporâneas do pensamento de carácter lógico e dialéctico, e mais particularmente fenomenológico, como não há pensamento ametafísico em todos os sentidos, nem em filosofia, nem em ciência nem na mais trivial forma de senso comum. - Dizemo-lo com a reserva de o termo ametafísico nos ser dos menos gratos. Como, no entanto, neste e noutros pontos concedemos ao entendimento mais geral, e como tal termo já correu entre nós nas didácticas de filosofia, usamo-lo com seu valor sugestivo.

Quanto ao ateísmo e agnosticismo, o primeiro é sempre, de Oriente a Ocidente, digno de toda a reflectida atenção do filósofo que tenha atentamente sondado o mistério da fé e o que exige o sentido da univocidade filosófica; o segundo impõe-se modernamente ao exame do estudioso da filosofia inglesa contemporânea, bem como das formas de filosofia do Continente. O atender a seriedade do que é sempre sério em sua raiz autêntica e imperitura não dispensa o intérprete, antes o persuade, a discriminar as reais formas de intuir, pensar e compreender, quando os filósofos, abrangidos ou descuidadamente comprometidos tantas vezes em equívocas classificações culturais ou ideológicas, enfrentam com autenticidade responsável os problemas da relação do ser e do saber em sua exigente plenitude».

José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).





Civilização Ocidental e Cultura Portuguesa


Tem-se falado muito de civilização ocidental e o termo é adequado ao que se pretende exprimir. Para nós, Portugueses, a civilização ocidental não é tanto aquela que se situa em grande parte da Europa, mas aquela que se propaga para além-Atlântico. Compreendemos, por isso, no conceito de civilização ocidental, não só as «ideias-feitas», mas também, e principalmente, o dinamismo espiritual que no futuro se possa revelar.

Se por civilização entendêssemos apenas um corpo de princípios e de instituições sem evolução possível, a que devêssemos fidelidade e obediência, dificilmente encontraríamos o sentido criador da nossa colaboração no concerto dos povos, e poríamos em problema os limites da nossa individualização histórica. A civilização ocidental, definida por noções comuns, transforma-se num quadro demasiado amplo e até vago, em vez de designar um vector, com todas as suas consequências subentendidas. Devemos, pois, formular da civilização ocidental a nossa definição própria, aquela que interesse à acção dos Portugueses tanto no passado como no futuro, e inserir essa fórmula nos trabalhos de doutrina e de propaganda.


Promontório de Sagres



Falar em civilização ocidental e, ao mesmo tempo, pensar no centro cultural da Europa, parece-nos um erro explicável por anacronismo. Erro perigoso, porque diminui o valor da missão espiritual dos povos ibéricos, e, consequentemente, inferioriza a cultura portuguesa. Erro que se corrige e evita, revestindo a palavra «ocidental» da significação futurista.

De outra maneira será difícil refutar a argumentação vigorosa de Oswaldo Spengler inserta na Decadência do Ocidente. A obra do pensador alemão permanece actual na sua parte crítica, e para refutá-la será indispensável opor uma doutrina de esperança ao pessimismo imanentista. Quanto a nós, a doutrina de esperança transcendente é o germe da filosofia portuguesa, que importa desenvolver.

Colaborar na civilização ocidental é, para nós, expandir o espírito português por todos os territórios que legitimamente nos pertencem, completando pelo magistério da educação o ministério da colonização. É, ainda, interessar todos os homens que falam português, e todos os povos irmãos, no conhecimento da cultura superior que em Portugal poderá surgir. É, enfim, atrair a simpatia das nações da América do Sul, para, com ela, realizar uma obra de fraterno e recíproco entendimento.

Sabemos que, entre as pessoas de mediana instrução, não corre favorável a expressão cultura portuguesa. Toda a cultura lhes parece devida à influência estrangeira, àquela influência que se exerce pela Imprensa, pela Rádio, pelo Cinema, pelas livrarias e até pelas escolas. A tais pessoas parecerá ridículo admitir o advento de uma cultura portuguesa que demonstre superioridade sobre as antecedentes culturas europeias.

Ninguém poderá demonstrar, nem sequer pela redução ao absurdo, que tal cultura seja impossível. Há elementos suficientes para afirmar, de convicção firme, essa nobre possibilidade. Faltam-nos, porém, as condições e as circunstâncias que permitam ver o trânsito da potência ao acto.

Demonstrar a possibilidade de uma cultura portuguesa superior às antecedentes culturas europeias, - demonstração dificílima no momento presente - não seria trabalho equivalente ao de mostrar, no desenvolvimento dos seus efeitos, a realização dessa mesma cultura. Só a prova visível convenceria as pessoas medianamente instruídas, mas tal prova exigiria uma antecipação do futuro. A cultura portuguesa será, pois, afirmada por aqueles que antes de ver admitem o crer.

Temos uma admirável cultura do povo, cujas expressões estão a ser recolhidas pelos etnólogos e pelos filólogos. Falta-nos, é certo, o estudo sistemático do folclore e do artesanato, não temos sequer uma enciclopédia etnográfica que compendie os resultados do labor dos estudiosos, não possuímos um Instituto de cultura popular. Mas ao pensador interessado pela fenomenologia da expressão, e, portanto, pelo conhecimento do subconsciente e do consciente populares, fácil será entrever na alma portuguesa uma fonte riquíssima de elementos para uma superior cultura.

Acima da cultura popular existe a cultura de modelo estrangeiro, verificável nos estabelecimentos de ensino e até, infelizmente, nas escolas de instrução primária. Há, portanto, uma densa camada em que se formam as opiniões complexas das pessoas instruídas que não acreditam na cultura portuguesa. Poderemos dizer que ela é constituída pelo grande número de pessoas que conhecem uma ou mais línguas estrangeiras.

A cultura superior, retomando a preocupação da cultura popular, terá de ser uma afirmação de nacionalismo. Entre os espíritos de escol a noção de independência da Pátria exige a de autonomia no idioma e no pensamento. Justo é considerar a enunciação do problema da filosofia portuguesa entre os actos de cultura mais significativos dos últimos tempos.

Quando um povo adquire consciência de que possui uma filosofia própria, logo ficam alteradas as relações do conceito de cultura com o conceito de civilização. Portugal não é apenas o nome de um país civilizado, é, mais do que isso, a metrópole de um povo civilizador. Pensemos, pois, no significado da posição geográfica e do futuro histórico da Nação Portuguesa antes de nos referirmos, com restrita propriedade, ao destino da Civilização Ocidental. (In Diário Popular, ano VIII, n.º 2564, Lisboa, 18 de Novembro de 1949, pp. 1 e 8).






















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