segunda-feira, 19 de março de 2018

Pioneiro e Capitão

Entrevista a António Champalimaud










Fuzileiros na Guiné Portuguesa






Guiné Portuguesa


































«É frequente a admiração por um país como Portugal ter assumido tamanha tarefa, tanto tempo. Na mais recente publicação sobre a História da Expansão e do Império Português [de João Paulo Oliveira Costa] é feita a mesma constatação. "Contra todas as previsões, tinham conseguido aguentar mais de uma década de guerra em três frentes, sem sinais de rotura à vista, e sem comprometer a trajectória de crescimento económico que o país conhecera desde a década de 1950".

Na realidade, admiração é não apenas por ter sido possível ao país tamanha proeza militar, como foi possível fazê-lo mantendo o crescimento económico não só na metrópole, mas igualmente no ultramar.

De facto durante o tempo da guerra, entre 1961 e 1974, a taxa anual de crescimento económico em Angola foi de 11% e em Moçambique foi de 9%. Em 1973 Angola era o 13.º país africano com maior rendimento por habitante. E o mesmo facto se passou, de forma mais moderada, na Guiné e nos restantes territórios.

Verificou-se ainda que o investimento em infraestruturas (estradas, caminhos-de-ferro, aeródromos, portos, escolas, clínicas) e o lançamento de projectos industriais e agrícolas diversos (café, algodão, mancarra) levou ao desequilíbrio e esgotamento dos créditos das províncias em relação a Lisboa e aos célebres "atrasados". E, por via disso, à decisão governamental de fomentar a industrialização local para a substituição de importações, nomeadamente da metrópole. O que induziu a um "afrouxamento dos laços comerciais entre o centro e as periferias imperiais, tendência que, de resto, vinha acentuando-se desde 1962".

Assim, entre 1962 e 1973 a quota das cinco províncias africanas no destino das exportações portuguesas caiu de 22,2% para 14,6 %, o mesmo se passando no que toca ao investimento metropolitano que sofreu uma diminuição ainda mais notória passando de 34,8% para 16,6% em 1973.

Por outro lado a aproximação entre Portugal e as instituições europeias (EFTA e CEE) tinha vindo a acelerar-se. Entre 1960 e 1973 as importações oriundas da CEE aumentaram de 39 para 45% e as exportações de 21 para 48%, mais do que duplicando. Portugal conseguiu crescer ininterruptamente durante cerca de 30 anos, até 1973 o que representa o maior período de crescimento contínuo da história recente do país. O mundo português, como um todo, tornara-se mais equilibrado entre as partes e menos mutuamente dependente.

Este é um quadro de fundo incontornável, que desafia explicações facciosas ou verdades adquiridas mas sem sustentação real. Em 1973 as parcelas ultramarinas eram significativamente mais prósperas e mais autónomas, deixando de ser decisivas para a balança de pagamentos portuguesa. E isto só foi possível porque a guerra foi conduzida sem perturbar o desenvolvimento económico, antes pelo contrário, suscitando-o.

A guerra, profundamente sentida e vivida pelas centenas de milhares de militares envolvidos e suas famílias, permitiu o desenvolvimento económico e social levando mesmo ao esbatimento de muitas das fraturas étnicas».

Tenente-General António Fontes Ramos (in Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, «Guerra d'África 1961-1974: Estava a Guerra Perdida?»).


«Moçambique foi uma das mais portentosas Províncias portuguesas, tendo constituído expressão maior da vocação, esforço e génio lusitanos. Moçambique, tal como era e, sobretudo, tal como estava a ser, honrou e honrava a acção civilizadora de um Povo; demonstrou e demonstrava a capacidade deste Povo para impulsionar e conduzir a construção de novos territórios e países, nela participando consistente e activamente; e, talvez no escalão mais alto, evidenciou e evidenciava a sua presciência na concepção e execução de uma política social de harmonia étnica, de coexistência religiosa e de conciliação de culturas, em autêntica vanguarda - a única que, generalizada e no futuro, poderia ou poderá servir um Mundo que se pretende viável.


UM GRANDE TERRITÓRIO E AS SUAS CONFIGURAÇÕES E POSIÇÕES PRIVILEGIADAS


Um grande território, mais de 780 000 km2, tanto como a França e a Alemanha Federal reunidas; com 4250 km de fronteira terrestre, tanzaniana, malawiana, zambiana, rodesiana - hoje do Zimbabwe -, sul-africana e suazi; e com uma costa de 2975 km sobre o Oceano Índico. A distância entre a sua capital política, Lourenço Marques, próximo da fronteira Sul, e a sua capital militar, Nampula, muito mais a Norte, percorria-se em cerca de duas horas em aviões a jacto, tanto como entre Lisboa e Paris ou Londres. E Nampula fica ainda a 450 km da fronteira setentrional - o rio Rovuma.

Na configuração moçambicana, distingue-se o extenso Norte, com o Niassa, Cabo Delgado, Moçambique e Zambézia; o Centro da Beira e de Vila Perry, verdadeiro coração geográfico, estendendo-se pelo amplo Saliente de Tete; e o Sul, mais estreito, conjunto de Gaza, Inhambane e Lourenço Marques. Cerca de 44% de zona litoral, abaixo dos 200 m de altitude, 43% de planaltos, entre os 200 e os 1000 m, e os restantes 13% de montanha. Uma costa onde se inserem baías e portos de óptimas condições naturais, praias excelentes e algumas ilhas que, além da sua beleza ímpar, constituem padrões de uma História, na qual predominou, por tanto tempo, o sentido da grandeza.






Estátua de Vasco da Gama na praça em frente do antigo Palácio dos Capitães-Generais, na Ilha de Moçambique, uma pequena ilha de coral na entrada da Baía de Mossuril, na costa de Nampula.


Moçambique tinha, no Continente Africano, uma posição privilegiada. Por um lado, nela estavam contidas as comunicações que permitiam o acesso ao mar, isto é ao Mundo, desse enorme e rico "interland" malawiano, zambiano, rodesiano - ou do Zimbabwe - e em parte considerável sul-africano, o que lhe conferia possibilidades-chave. Por outro lado, Moçambique situava-se, entre o conjunto Tanzânia/Zâmbia, mais ou menos marxista, e o conjunto Rodésia/República da África do Sul, mais ou menos racista, o que atribuía ao seu esclarecido e decisivo não marxismo e à sua plena multirracialidade significado e papel bem especiais.


O MILAGRE ECONÓMICO MOÇAMBICANO


Em Moçambique, mantinha-se, ainda, o carácter dualista, tradicional nos territórios e países africanos, de uma economia de subsistência, em que cada família ou tribo produzia e trabalhava o necessário à satisfação dos seus consumos imediatos e mais prementes, e de uma economia de mercado, caracterizada pela produção e serviços comercializados. Mas, agia-se no sentido da modernização do sector de subsistência e promovia-se activamente o desenvolvimento do sector de mercado.

Em consequência, a posição relativa dos fluxos não monetários, na formação do Produto Interno Bruto, descia progressivamente, tendo sido, em 1963, de 40% e sendo, em 1970, de 25%.

A prodigalidade em recursos naturais e o esforço no sector do mercado estavam a conduzir a um desenvolvimento são e rápido, tendo a taxa média anual de crescimento do PIB sido, entre 1953 e 1963, de 3,7%, entre 1963 e 1967, de 4,2% e, até 1972, de 9,5%, esta uma das maiores do Mundo. E isto enquanto a população aumentava a um ritmo que não excedia os 2,2% por ano.

Moçambique estava bem, no começo dos anos 70, no início do seu milagre económico.


A ENERGIA. CABORA BASSA. A ELECTRIFICAÇÃO DE MOÇAMBIQUE


Tal desenvolvimento começava na base, na energia, sendo enormes as possibilidades hidro-eléctricas, significativo o carvão de Moatize - 350 000 toneladas extraídas em 1973 -, imensos os jazigos descobertos também de carvão do Vale do Zambeze, em partes coqueficáveis, e as reservas de gás natural no Buzi e no Pande. E não estava posta de parte a existência de petróleo e de urânio.

Na produção hidroeléctrica, distinguia-se Cabora-Bassa, realização extraordinária, uma das maiores do Mundo, garantindo só por si 18 mil milhões de KWh anuais a preços extremamente baixos. O sistema de Cabora-Bassa, com as suas duas centrais, uma a Sul já operacional e uma outra a Norte prevista, num total de potência instalada e a instalar de 3000 MW, quase o dobro da de todo o Portugal Europeu da época, repartida por grupos gigantes de 400 MW, em breve, se interligaria ao sistema do Revuè e, oportunamente e quase "in loco", abasteceria os grandes projectos industriais preparados para a região de Tete, com enorme benefício para o Centro de Moçambique e o seu amplo Saliente. Também, em breve o sistema de Cabora-Bassa se prolongaria até Quelimane, estendendo-se à Zambézia e alimentaria, em retorno da República da África do Sul, Lourenço Marques e o Sul de Moçambique. Além disto, Cabora-Bassa permitia a importantíssima ligação, com propósitos exportadores, à rede energética da República da África do Sul, através de uma linha de transporte de 1400 km em corrente contínua, de 2 x 500 KV, e previa-se também a exportação certa da sua energia para a Rodésia/Zimbabwe e para o Malawi e eventual para a Zâmbia.

Ainda no relativo a energia hidroeléctrica, projectava-se, a curto prazo, o início da electrificação do Norte, a partir dos rios Lúrio e Messalo.

A electrificação de todo o Moçambique encontrava-se, assim, em andamento rápido.

A exploração dos jazigos de carvão do Vale do Zambeze e das reservas de gás natural no Buzi e no Pande preparava-se em grande escala.

Por outro lado, a prospecção de petróleo tinha lugar em diversas áreas com resultados promissores e estava decidida a ampliação substancial da refinaria de Lourenço Marques, com uma fracção destinada à exportação.

Finalmente e já em 1974, foram celebrados com empresas especializadas contratos, em regime de "joint venture", para a prospecção de urânio. Em termos energéticos, Moçambique oferecia efectivamente perspectivas bem tranquilizantes para o futuro.


AS COMUNICAÇÕES. UMA GRANDE REALIDADE, UM PROJECTO IMENSO


As comunicações, particularmente caminhos-de-ferro, portos de mar e sistema aéreo, tinham atingido desenvolvimento notável.

Os principais caminhos-de-ferro - o de Lourenço Marques ligado à República da África do Sul, o da Beira ligado à Rodésia e o de Nacala em ligação com o Malawi e a Zâmbia - serviam eficientemente Moçambique e o "interland" já considerado. A ligação de Nacala com as linhas ferroviárias do Malawi estava já operacional e negociava-se o seu prolongamento até ao "copperbelt" da Zâmbia, o que aliás teria de ter lugar perante a falência inevitável da exploração do caminho-de-fero "Tam-Zam", de ligação da Zâmbia a Dar-es-Salaam. Muitos e vultuosos trabalhos de melhoramento das infra-estruturas ferroviárias e diligências para considerável aumento do parque de material circulante estavam em realização ou programados. O número de passageiros e a carga transportados, por via férrea, cresciam incessantemente.

Os portos de mar, além das suas óptimas condições naturais, estavam bem apetrechados, pelo menos os principais, como o de Lourenço Marques, com movimento superior ao de Lisboa e Leixões em conjunto, cerca de 15 milhões de toneladas em 1971, os da Beira, Inhambane e Quelimane, o de Nacala, talvez o de maiores potencialidades de toda a África, e o de Porto Amélia. Entre as obras portuárias em curso, distinguiam-se a construção, no porto de Lourenço Marques, em Ponta Dobela, de um terminal oceânico, "offshore", para navios mineraleiros até 250 000 toneladas, o prolongamento, no Porto da Beira, do seu cais em 330 m e diversos importantes melhoramentos em Nacala.

Ver aqui



Aeroporto da Beira (1942).






Formação de PV2 durante a visita do Almirante Américo Tomás a Lourenço Marques.




Transporte de Pára-quedistas para Mueda



Pessoal da esquadra de Nord Atlas, na BA 10 (Beira, Moçambique - anos 1960).



Chegada dos Friendship a Lourenço Marques (1962).



CR-AMD "Nampula"



O Boeing 703CR-BAA da DETA



Hospedeiras da DETA na pista do aeroporto de Lourenço Marques (anos 1960).



























Songo - Aeroporto (Setembro de 1973).






O sistema aéreo, excepcional, cobrindo todo o território, englobava uma infra-estrutura muitíssimo boa de aeródromos e de pistas, e um conjunto excelente de linhas de transporte aéreo. Naquela infra-estrutura, distinguiam-se nove aeródromos para grandes aviões de jacto - Lourenço Marques, Beira, Quelimane, Nampula, Tete, Nova Freixe, Nacala, Vila Cabral e Porto Amélia - e cerca de três dezenas de outros aptos para aviões tipo Noratlas, e contavam-se mais de duas centenas de pistas para aviões tipo Islander. O transporte aéreo compreendia uma linha primária costeira e duas linhas secundárias penetrantes no interior, servidas por aviões Boeing 737 e por aviões Friendship, Noratlas, DC3 e outros, e inúmeras linhas terciárias equipadas com aviões Ilander e Cessna ou equivalentes.

A rede de estradas, mais atrasada, recebia forte impulso, podendo por exemplo viajar-se, já, de Lourenço Marques ao interior das cavernas de Cabora-Bassa por estrada asfaltada, numa extensão de 1645 km. Estava em construção a estrada Centro-Norte, de mais de 1000 km e com nova ponte sobre o Zambeze, que ligaria o eixo Beira-Machipanda ao de Nacala-Nova Freixo, tornando possível o deslocamento de Lourenço Marques a Mocímboa da Praia também por estrada asfaltada, numa extensão de 2750 km. E estava iminente o lançamento da empreitada da estrada Nacala-Nova Freixo-Vila Cabral. Até final de 1979, atingir-se-ia 9400 km de estradas asfaltadas, com 5250 km de novas estradas e respectivas obras de arte. Numerosas empresas de camionagem além dos muitos veículos rodoviários pesados dos próprios Serviços de Caminhos-de-Ferro, operavam satisfatoriamente por todo o território.

No relativo ao conjunto das comunicações, Moçambique era já uma grande realidade e um imenso projecto.


A AGRICULTURA. MOTOR DA ECONOMIA MOÇAMBICANA


O motor fundamental da economia moçambicana era e deveria continuar a ser a agricultura, com as suas sucessivas planícies aluvionares das bacias dos grandes rios - como o Maputo, o Umbelúzi, o Incomati, o Limpopo, o Save, o Buzi, o Punguè, o Zambeze, o Lúrio, o Memburi, o Montepuez, o Messalo e o Rovuma -, para onde eram e são arrastadas e depositadas, sem cessar, camadas de terras férteis, em formações de vários metros de profundidade, tem aptidão excepcional, talvez não comparável em qualquer outra área africana, para infindáveis e fecundas explorações agrícolas.

Em 15 milhões de hectares, desenvolviam-se pastagens e florestas, frequentemente com essências preciosas, das quais umas cinquenta espécies comercializáveis interna e externamente. A produção de madeira, nas concessões florestais, tinha duplicado de 1963 a 1973, sendo já significativa a sua exploração e estando a preparar-se o fabrico de pasta de papel em grande escala.

As maiores e muito grandes produções agrícolas moçambicanas, quer para uso interno, quer principalmente para exportação, diziam respeito ao açúcar, ao algodão, ao cajú, ao chá, ao sisal, à copra e, em menor grau e basicamente para consumo interno, ao tabaco, ao amendoim, a frutas, à batata, ao arroz e ao milho. Estas produções verificavam-se, em muitos casos, em explorações modelares, altamente mecanizadas e modernizadas nos seus métodos de cultura, mas também em numerosas médias e pequenas propriedades menos sofisticadas.

As possibilidades em açúcar e algodão, e potencialmente em arroz, eram, em termos internacionais, imensas e Moçambique mantinha, também mundialmente, o primeiro lugar na produção de castanha de cajú. As decorrentes industrializações - como refinação de açúcar, fabricação de têxteis e descasque de castanha de cajú, algumas constituindo já empreendimentos exemplares pelo seu volume e qualidade - estavam em curso de serem ampliadas e melhoradas, multiplicadas, oferecendo as mais amplas perspectivas.

O chá, com belas plantações em regiões altas e lindíssimas, duplicara em 12 anos a sua produção, oferecendo, também, óptimas perspectivas.

No relativo ao sisal e à copra, apesar da sua recessão geral, planeava-se certa expansão, procurando-se inverter a tendência internacional.

O tabaco, o amendoim, as frutas, a batata, o arroz e o milho, por regra excelentes qualitativamente, tinham também muito interesse e convidavam a grandes realizações.


UMA FAUNA EXUBERANTE. A PECUÁRIA E A PESCA


A fauna moçambicana, exuberante, nas suas espécies e quantitativos, oferecia espectáculos grandiosos e maravilhosos, através da simples observação de sucessivas manadas de milhares de animais. Ela permitia o desporto turístico principesco dos safaris fotográficos e venatórios e permitia a existência de espantosas reservas de caça - como a da Gorongosa - de valor turístico incalculável.

A pecuária, particularmente a dos bovinos, tinha aspectos muito relevantes, mas ainda sobretudo no comércio e consumo internos. Planeava-se o começo de uma exportação significativa e o seu desenvolvimento rápido. As possibilidades eram enormes.

Quanto à pesca, em especial pela exploração, em moldes industriais, de extensos mananciais de crustáceos, iniciava-se uma revolução avassaladora, capaz de conduzir ao abastecimento do Mundo nos melhores mariscos conhecidos. Empresas apropriadas tinham-se instalado e verificavam crescimento acelerado, dezenas de barcos de pesca estavam em construção ou encomendados e desenvolvia-se a adequada rede de frio.


 A INDÚSTRIA EM DESENVOLVIMENTO


Moçambique tinha uma boa tradição industrial, mas foi na década de 70 que o respectivo panorama se tornou verdadeiramente estimulante e promissor.



Kaúlza de Arriaga na Barragem de Cabora-Bassa.










As indústrias extractivas, até então manifestamente atrasadas, experimentavam nova dinâmica. Além do referido relativamente a carvão, gás natural, petróleo e urânio, a prospecção sistemática revelara, particularmente no Vale do Zambeze, novos jazigos de fluorites, reservas notáveis de minério de ferro, titano-magnetites, cobre, manganês, e, até ao momento, indícios de berílio, corindo, crómio, grafite, níquel e bauxite. Próximo, no Malawi, esta bauxite era já uma realidade. E, pelo menos, dois consequentes e interessantíssimos campos de actuação imediata se abriram em Tete - a siderurgia, com base nas respectivas reservas, e a indústria de alumínio, com base no baixo custo da muita energia de Cabora-Bassa e na bauxite do Vale do Zambeze ou na do Malawi.

As indústrias transformadoras eram, já de há muito, activas, verificando-se contudo, ultimamente, investimentos consideráveis sempre em aumento e atingindo, nos anos mais próximos de 1974, a taxa anual de crescimento da sua produção o valor magnífico de 13%. A par das indústrias citadas ou relativas às matérias citadas, como a madeira e pasta de papel, açúcar, café, chá, sisal, tabaco, amendoim, arroz, algodão e têxteis, siderurgia e alumínio, havia a considerar também o vestuário, óleos vegetais, lacticínios, cimento, cerveja e refrigerantes, tipografia, laminagem, mobiliário, tintas, sabões e detergentes, ácido sulfúrico, vagões de caminhos-de-fero e construção naval. E muitas vezes outras aqui não especificadas.


O COMÉRCIO. UM HINO TURÍSTICO


O comércio de Moçambique dispunha de uma rede de distribuição que abrangia todo o seu território e as exportações constituíam realidade palpável.

Como em todas as áreas em desenvolvimento, a balança comercial era deficitária. Contudo, a balança de pagamentos, que em 1970 tinha saído negativo, já em 1972 acusava "superavit".

Isto em consequência das receitas invisíveis, nas quais tinha especial incidência as dos caminhos-de-ferro e portos de mar, as da emigração e as do turismo.

Quanto a este turismo, as suas possibilidades eram praticamente ilimitadas, dadas as extraordinárias potencialidades existentes. Desde o interior à costa e ao próprio mar; desde a selva misteriosa à apurada civilização urbana; desde a beleza da natureza aos locais onde a grandeza histórica se gravou ou o interesse actual se situava em alto nível; desde a majestade das montanhas, à vastidão das planícies e à delícia das praias marítimas tropicais. Desde a flora e fauna aos próprios contactos humanos.

As organizações turísticas proliferavam e os turistas afluíam já, mas, em breve, Moçambique seria um hino turístico.


A CONSTRUÇÃO CIVIL EM EXPANSÃO. GIGANTESCA


Como consequência de todo o crescimento vertiginoso que se vivia, a construção civil experimentava uma expansão gigantesca. E não só em termos de qualidade mas igualmente no relativo à técnica e às concepções e valores arquitectónicos actualizados, modernos e avançados.


UMAS FINANÇAS SÓLIDAS


As finanças moçambicanas, que contribuíam também para o esforço militar e para-militar de contra-rebelião ou contra-subversão, apresentavam grande, crescente e sã solidez.

De 1965 a 1973, as receitas e despesas públicas, sempre com saldo positivo, duplicaram, mantendo-se porém estável o valor da moeda. Mais ou menos no mesmo período, os depósitos bancários quase quintuplicaram, com cerca de 30% de depósitos a prazo, em sinal iniludível de confiança.


O FASCÍNIO DAS ETNIAS, RELIGIÕES E CULTURAS MOÇAMBICANAS. O MILAGRE SOCIAL MOÇAMBICANO


Mas talvez que o expoente mais elevado de Moçambique se exprimisse na sua riqueza em etnias - brancas, amarelas, indianas, negras, estas com numerosos grupos e sub-grupos, e mistas -, religiões e culturas fascinantes na sua diversidade e especificidade, e simultaneamente, perante o Mundo que se vivia e vive de confrontações entre grupos humanos, admiráveis na sua harmonia.

Com ineficiências e deficiências inerentes às grandes construções humanas e também decorrentes de alguma carência de meios e de certas incompreensões e interferências negativas, internas e externas, todas aquelas etnias, com os seus credos e culturas, de acordo com as suas tradições e tendências, viviam e trabalhavam numa actividade, cada vez mais integrada, de desenvolvimento comum.

Esforço máximo possível incidia, sobretudo nos últimos tempos do Portugal do Ultramar, numa evolução orientada para a rápida dignificação paritária do homem e para uma plenitude de cidadania, traduzida em objectivos de equivalentes posições iniciais e iguais oportunidades, de vigência dos mesmos direitos e deveres, e de acesso a situações políticas, económicas e sociais em geral, conseguido apenas em face do valor real, da iniciativa havida e da actividade desenvolvida. E se tal evolução ainda não tinha atingido o estádio desejável, trilhava-se aceleradamente o caminho certo, situando-se Moçambique já na frente de muitos, muitíssimos, territórios e países africanos e de todo o Terceiro Mundo.

Estava bem em curso o milagre social moçambicano.


O ALDEAMENTO. O FENÓMENO URBANO. A VILA PROTÓTIPO


De particular importância, a obra de aldeamento e o fenómeno urbano.

A primeira constituía processo incomparável de promoção rápida de populações, então em pleno curso. Em 1973, tinham-se preparado mais de um milhar de aldeias, abrangendo cerca de um milhão de pessoas. Algumas delas em fase embrionária, a completar e aperfeiçoar, e estimava-se faltarem ainda cerca de quatro a cinco mil. O fenómeno urbano teve, em Moçambique, especial acuidade. Existiam não poucas e magníficas cidades, mesmo as mais modestas talhadas com largueza, visando o futuro. E, no topo de tal fenómeno, situava-se Lourenço Marques, cidade maravilhosa em qualquer parte do Mundo.

No relativo a vilas, cuja carência se verificava, construía-se a vila-tipo de Nangade, trabalho racionalizado em termos modernos. Nangade era ou seria a primeira de uma grande série de aglomerados populacionais médios.


A ASSISTÊNCIA EM GENERALIZAÇÃO. A REVOLUÇÃO CULTURAL


E, naturalmente, na base de todo o presente e futuro, estavam a assistência e a educação e instrução - primária, técnica média, liceal e universitária - generalizadas.



Diploma da 4.ª Classe, emitido a 7 de Agosto de 1953, em Lourenço Marques.







Liceu António Enes em Lourenço Marques



Inauguração do Liceu António Enes. Ver aqui









Baile dos Finalistas do Liceu António Enes




A assistência, em particular a médica e para-médica, progredia rapidamente, para isso muito contribuindo, não só a obra do aldeamento e o fenómeno urbano referido, mas também os Serviços Militares Fixos e Itinerantes, estes em aproveitamento periódico e intensivo das linhas aéreas terciárias.

No relativo à educação e instrução, verificava-se uma sua expansão extremamente veloz no sentido de atingir, tão depressa quanto o possível, o conjunto da população, o que era também facilitado pela multiplicação das aldeias e pelas numerosas cidades, e pela cooperação dos Serviços Militares e das Missões Religiosas.

Em 1973, aos 7287 docentes específicos, juntavam-se os pertencentes àqueles Serviços e Missões, perfazendo um total impressionante. No mesmo ano, 693 mil alunos frequentavam 5300 estabelecimentos de ensino primário, 47 191 frequentavam 168 escolas técnicas médias e liceais, e 2500 frequentavam a Universidade de Lourenço Marques. A percentagem de alunos de etnia negra, na população escolar, crescia em espiral, sendo já, em 1972, de 90% no ensino primário, de 57% no técnico médio e de 62% no liceal, preparando-se para breve a grande afluência negra ao ensino superior.

Encontrava-se em marcha uma autêntica revolução cultural».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade e dos Anos Decisivos»).


«Por autêntica e surpreendente coincidência, o industrial e financeiro António Champalimaud chegava (...) a Johannesburg, instalando-se no mesmo hotel em que eu me encontrava.

Vinha da Europa e deslocava-se, com curta demora, a Moçambique, onde se iria ocupar dos vultuosos empreendimentos que ali tinha. Encontrámo-nos, por mero acaso, na sala de jantar.

Havíamos tido estreitas relações de trabalho dado que eu administrara o seu grupo de empresas em Moçambique, vindo a afastar-me voluntariamente por divergência de critérios. Isso, porém, não havia afectado a nossa ligação pessoal que vinha desde os bancos da escola.

Nunca estivemos associados em propósitos políticos e nem nunca vislumbrei essa tendência em António Champalimaud, sempre absorvido por actividades para que o arrastava a sua apaixonada vocação industrial. O que a imprensa, nacional ou estrangeira, publicou sobre os nossos pretensos planos políticos, não passou de especulação urdida pelos que me queriam apresentar como agente do capitalismo e colonialismo.

É certo que trabalhei em importantes grupos capitalistas e creio que o fiz com a eficiência que se impunha. Mas nunca ocultei a minha antipatia pelas estruturas monopolistas a que o capitalismo tantas vezes conduz. Não transigia com os defeitos do sistema, mas não deixava de reconhecer as vantagens que apresentava, sobretudo em países carecidos de capacidade empresarial e de meios financeiros próprios.

A experiência de "participação socializante" que, com tanto êxito foi tentada no Malawi, era a que me parecia mais apropriada para o caso moçambicano. Acompanhei activamente o Dr. Banda na edificação dessa fórmula em que se conservava, ao grande capital, participação, dominante ou significativa, nos empreendimentos considerados essenciais, mas em que as instituições locais se associavam com influência progressivamente crescente na condução das empresas.

Por este caminho evitava-se a possibilidade do capitalismo se impor como força opressora ou, mesmo, de evitar vias de pressão.

Aliás, não creio que seja do interesse das próprias estruturas capitalistas praticarem tais desmandos e confiava em que, seguindo o exemplo do Malawi, pudéssemos contar em Moçambique com colaboração do capitalismo esclarecido para reconstrução e fomento do país.

António Champalimaud (há que reconhecê-lo e afirmá-lo) tinha marcada predilecção por Moçambique que se poderia dizer que "amava à sua maneira", parafraseando palavras do Dr. Almeida Santos. Este, aliás, trabalhara comigo para essas empresas com um zelo profissional em que nunca descortinei indícios de aversão pelo capitalismo ou colonialismo que tão veementemente viria a atacar.

O que estou, é em posição de garantir que os avultados lucros angariados em Moçambique pelo "grupo Champalimaud", foram ali reinvestidos, recorrendo-me mesmo ao reforço da sua vasta capacidade de crédito externo para lançar novos empreendimentos. Era essa a posição do "grupo" quando ocorreu o "25 de Abril"».

Jorge Jardim («Moçambique, Terra Queimada»).


«(...) António de Champalimaud não deixa de me procurar e até me oferece de jantar no seu sumptuoso palácio da Lapa. Como outrora, ficamos longas horas a conversar, sentados frente a frente a uma mesa enorme numa sala forrada de magníficas tapeçarias Aubusson.


(...) Veio, como há cinco anos, preparar a candidatura. Pergunto-lhe: "Vai ganhar?" Fica perplexo. Depois responde: "O importante é fazer saber ao povo português que pode contar comigo..." E logo, mais forte: "...saber que eu invisto dinheiro, que é meu, na minha candidatura. É isso que eu quero que os Portugueses saibam". E vai prevendo o dia já próximo em que se desmoronará toda esta organização socialista que se apossou de Portugal. Nesse dia, os Portugueses irão recorrer a ele, dar-lhe-ão os poderes para pôr em prática as soluções que lhes vai agora propor na sua campanha eleitoral. Interrompo-o: "Admita que ganha? Que fará nesse caso?" Parece apossar-se dele uma espécie de delírio que, no entanto, logo controla. Mas acentua-se o seu modo de falar aos sacões, com expressões ora imperativas ora quase infantis e sempre em termos e vozes rudes. A minha pergunta leva-o a imaginar-se e descrever-se a si próprio subindo as escadarias do Parlamento para a cerimónia da posse, pisando tapetes vermelhos, entre alas de guardas republicanos fardados de luxo. Eu, cínico, insinuo:" Terá de jurar a Constituição". Reprime-se. Desenha com o braço um gesto largo, a apagar a imagem em que se estava vendo. E passa das grandezas imaginárias para as grandezas reais. Está, como ele diz, "outra vez rico". E enquanto eu fico a tentar imaginar o que seja, para este homem, a medida da riqueza, ele descreve a luta que acaba de travar com toda a indústria cimenteira do Brasil, como foi repetidamente acusado por Comissões parlamentares, o que teve de ouvir, o que soube responder. Por fim venceu. Descreve o combate e a vitória com imagens napoleónicas. No mais aceso da batalha, reuniu os seus homens de mercado e ordenou: "Damos tudo, menos dinheiro!" Passaram quarenta e oito dias e oito noites. Ao fim delas, fez-se um grande silêncio. Champalimaud esperou. Champalimaud subiu à torre. Não avistou viv'alma até onde a vista podia alcançar. O inimigo abandonara o campo de batalha. Era a vitória.

Está, pois, outra vez rico. Ri-se. Bate com a mão magra e longa no bolso: "Eu cheio de dinheiro, eles a tinir". Eles: o Estado, os políticos, os Partidos... "Vêm à minha porta, como pedintes. Há aí um Partido (parece-me entender o PSD) que quer que eu lhe dê as "obrigações" com que o Estado deles entendeu pagar-me as empresas que me roubou. Depositaram-nas num Banco, em meu nome. Mas eu não lhes toco. Porque hei-de ser eu a fazer um dia as contas. E como não lhes toco, os tipos imaginam que lhas posso dar". Ri-se e eu leio no seu riso: "o que os pobres diabos imaginam quando estão a tinir..."».

Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).


«Plutocrata é o homem que alia, a uma grande disponibilidade de dinheiro, o poder de com ela dominar a sociedade, não à maneira do político que a oprime ou liberta, nem à do militar que a disciplina, nem à do clérigo que a apascenta. O domínio que o plutocrata exerce é o de definir as hierarquias que compõem a sociedade, preservar as posições ou planos que tem cada hierarquia, designar as pessoas que ocupam essas posições.

Ernesto Palma tem todas as razões para entender que as sociedades estão em constante alteração, isto é, que continuamente se vão alterando as hierarquias, mudando as posições nas hierarquias e substituindo as pessoas nessas posições. Ora quando se pôs a observar a sociedade portuguesa verificou que ela se mantém incólume há quase dois séculos, desde quando as "guerras liberais" a ergueram sobre os escombros da sociedade anterior.

O fenómeno torna-se enigmático quando se observa que, na última metade destes longos dois séculos, se deram três revoluções: a de 1910, a de 1926 e a de 1974, todas três feitas para, como é próprio da revolução, revolver a sociedade como o arado revolve a terra pondo em baixo o que está em cima, pondo em cima o que está em baixo. Ora aquelas três revoluções substituíram decerto o regime político: a monarquia pela república, a república pela ditadura, a ditadura pela democracia. Mas permaneceu inabalável a sociedade: as mesmas hierarquias, as mesmas posições nas hierarquias, os mesmos nomes, as mesmas famílias, a mesma gente nessas mesmas posições dessas mesmas hierarquias. Esse o enigma.

A atenção de Ernesto Palma fixou-se na última revolução, a de 1974. Por ser a mais próxima, portanto a mais fácil de observar, e por ter sido, das três, aquela que mais precisa e expressamente se propunha revolver a sociedade, exterminando os burgueses ociosos e exploradores para, depois, a nivelar pelo proletariado explorado e oprimido. A revolução triunfa mas logo assegura a perduração das mesmas hierarquias e, à frente delas, os mesmos burgueses ociosos e exploradores. Para só dar um exemplo da hierarquia política: lá tem ela à sua frente grandes burgueses como Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro. Estes entre o peixe graúdo. Porque, entre o peixe miúdo, é interminável a lista dos Teotónios Pereiras, Franciscos Balsemão, Galvões Teles, Rebelos de Sousa, Afonsos de Barros, Veigas Simão que passaram, sem sobressalto, dos seus privilégios na sociedade da ditadura para iguais privilégios na sociedade da democracia.

Ernesto Palma pergunta-se: para que se faz, então, a revolução? Mas depressa conclui que a pergunta só tem resposta se se souber quem faz a revolução. E isso procura investigar.

Claro que os triunfadores e beneficiários das revoluções afirmam sempre que quem as faz é o povo. Nada de mais falso porque o povo não faz revoluções, o povo faz guerras.

Posta de lado esta hipótese que, no entanto, o leva a distinguir entre o povo como um todo uno e as populações ou as sociedades, Ernesto Palma percorre os possíveis suspeitos de fazerem a revolução e vai-os eliminando um a um: o político, porque só aparece depois da revolução ter triunfado; as grandes instituições com seus representantes ou agentes infiltrados em todos os centros de decisão, como a Igreja, a Maçonaria ou a Universidade, porque se encontram elas a braços com ameaças internas e sem forças para se defenderem; os argentários, porque sempre estão possessos da febre de entesourarem o dinheiro.

Mas é ao analisar o argentário que Ernesto Palma descobre o plutocrata. Distingue um do outro. Enquanto o argentário detém a posse do dinheiro que utiliza para o aumentar, o plutocrata detém a disponibilidade do dinheiro que utiliza para exercer o seu domínio sobre a sociedade. Este domínio começa por lhe ser dado pelo deslumbramento universal que a disponibilidade, não a posse, do dinheiro sempre provoca. Ernesto Palma socorre-se do exemplo de A. Champalimaud que, detendo a posse de apenas trezentos milhões de contos, recentemente adquiriu, numa só operação financeira, a disponibilidade sem posse de cinco mil milhões de contos. Uma tal disponibilidade dá efectivamente a possibilidade, que A. Champalimaud exerce ou não exerce, de fazer a revolução.

Disponibilidade sem posse do dinheiro detêm-na, por sua natureza institucional, a Banca e o Estado. A Banca detém a disponibilidade do dinheiro que os depositantes lhe confiam livremente, o Estado a do dinheiro que os contribuintes são obrigados a confiar-lhe. Com a Banca, faz o plutocrata, mediante os accionistas, um jogo que tem regras estabelecidas pela lei, pelo mercado e pelo costume. Com o Estado faz o plutocrata um jogo sem regras, mais propriamente um jogo com o político do que com o Estado. Descreve Ernesto Palma alguns exemplos ou casos deste jogo: o dos Mellos e M. Bullosa com Mário Soares, o do mesmo Bullosa com os "capitães de Abril", o de Champalimaud com Salgado Zenha e o Marechal Spínola, o da alta finança internacional (Nelson Rockefeller, Edmundo Rothschild entre outros) reunida na Suíça para lançar a revolução socialista em Portugal».

Ernesto Palma («O Plutocrata»).







Fundação Champalimaud



Pioneiro e Capitão


Iniciou em 1944 a sua saga africana e durante três décadas o seu grupo empresarial não cessou de crescer e de promover o desenvolvimento económico-social de Moçambique e Angola. Foi pioneiro das vastidões tropicais, um dos grandes capitães de indústria do pós-guerra, construtor de impérios. O Grupo Champalimaud controlava, em 1970, dois terços da capacidade instaladora da indústria e arrecadava três quartos das receitas da indústria em Portugal, agregava em 1973 doze empresas industriais, cinco companhias de seguros e um grande banco. As suas maiores empresas - Siderurgia Nacional, Cimentos de Leiria, Banco Pinto & Sotto Mayor, A Mundial e Cimentos Tejo - valiam em 1972, na Bolsa de Lisboa, mais de 40 milhões de contos. Do cimento ao alumínio, do aço ao carvão, da banca aos seguros, os seus interesses em África foram-se multiplicando e contribuíram muito para o boom económico dos territórios em guerra. António de Sommer Champalimaud, um homem de rasgos e visão estratégica, acreditou no futuro da África portuguesa quando Kennedy fez oposição a Salazar, tornou-se socialmente controverso devido a um famoso processo judicial, teve ambiciosos planos de expansão bloqueados por Caetano e por membros do seu Governo, viveu cinco anos exilado no México e voltou para Portugal algum tempo antes do golpe de Estado.


Interessou-se por África em conversas com o pai. O seu primeiro investimento em Moçambique remonta a 1944. Comprou então a Portland Cements, com uma fábrica de cimento na Matola, e fez dela a base da sua expansão estratégica. Em 1961 indignou-se com a posição de Kennedy quanto à África portuguesa e decidiu construir uma fábrica de cimento em Nacala, como prova de confiança na relação entre Portugal e Moçambique.

A minha paixão por África deveu-se, em parte, à influência do meu pai, que teve interesses em São Tomé e trabalhou em Angola e contou-me histórias fascinantes sobre o continente. Lembro-me de ele me ter falado num livro, escrito pelo pai ou pelo tio de Franklin Roosevelt, que foi presidente dos Estados Unidos, sobre a caça e as aventuras vividas em África. Depois da morte do meu pai, em 5 de Maio de 1937, tinha eu 19 anos de idade, concluí uma grande empreitada que a sua empresa, a Companhia Geral de Construções, tinha em curso em Angola, para a modernização do caminho-de-ferro entre Luanda e Vila Carmona. Ainda concorri depois a uma extensão de cerca de vinte quilómetros dessa linha férrea, entre Cassoalala e o Dondo, e concluí-a. Entretanto, em 1942, fui eleito para a direcção da Cimentos de Leiria, uma empresa fundada por um irmão da minha mãe, Henrique Sommer, que veio a falecer em Março de 1944. Os restantes administradores escolheram-me para presidir à empresa, como seu director-delegado. Depressa entrei em contacto com o Banco Nacional Ultramarino, com o intuito de negociar a compra da Portland Cements, uma empresa com uma fábrica de cimento na Matola, em Moçambique, e que o banco decidira fechar e vender. Tinha aparecido um comprador estrangeiro e as negociações estavam adiantadas. Um ano antes de falecer, o meu tio Henrique Sommer recusara a proposta do Banco Nacional Ultramarino para adquirir a Portland Cements. Mas eu tinha África no meu horizonte e dispus-me a ir para a frente.

Recorri então à intervenção do Presidente do Conselho de ministros, Dr. Salazar, através do seu chefe de gabinete, Dr. Alexandre Ribeiro da Cunha, meu amigo pessoal. Esse foi o meu primeiro contacto de ordem profissional, embora indirecto, com o Dr. Salazar, e também foi a primeira vez que, de seguida, eu vi ser resolvido a meu favor um problema que considerava de interesse nacional. Isto porque, entre o comprador estrangeiro e nós, o Dr. Salazar inclinou-se para que a fábrica da Matola ficasse em mãos portuguesas. Aberto o caminho, adquiri ao Banco Nacional Ultramarino a fábrica da Matola, depois de vencer hesitações do maior grupo accionista que a Cimentos de Leiria tinha naquela época, o ramo Sommer, da Quinta da Cardiga, que tinha como seu representante, na presidência do conselho fiscal, o Dr. Rui d'Andrade, descendente de italianos e, dir-se-ia, um verdadeiro artista da Renascença. Lembrava-me ele a recusa de Henrique Sommer em fazer aquela transacção que lhe tinha sido proposta no ano anterior pelo Banco Nacional Ultramarino. Mas a minha opinião era diferente. Embarquei em 21 de Outubro de 1944 no vapor Angola, com destino a Lourenço Marques, onde cheguei em 23 de Novembro. Demorei dois dias no Lobito, onde aproveitei para fazer os primeiros reconhecimentos, com base nos quais decidi mais tarde ali construir uma fábrica de cimentos. Fundei em Lourenço Marques a Companhia de Cimentos de Moçambique (CCM), cujo capital social era detido em 90 por cento pela Cimentos de Leiria e em 10 por cento pelo Banco Nacional Ultramarino. A CCM veio a desenvolver-se através da construção de três fábricas de cimento, do impulso a actividades correlativas e da tomada de participações maioritárias em várias empresas.

A fábrica da Matola estava obsoleta e ultrapassada. Os jazigos da sua matéria-prima, a noroeste de Lourenço Marques, encontravam-se em vias de esgotamento, o que levou à sua substituição por um outro jazigo de calcário nas margens do rio Maputo. A CCM promoveu simultaneamente a sua ligação com a fábrica da Matola, por meio do lançamento de um ramal ferroviário, com cerca de 110 quilómetros de extensão, e por esta via foi a fábrica abastecida até 1974, quando já contava com três linhas de fabrico. Em 9 de Janeiro de 1945, requeri uma licença para a instalação de uma nova fábrica de cimentos na região da Beira, que deu lugar a um longo conflito administrativo e judicial com a Companhia de Moçambique, que tinha perdido havia pouco tempo os poderes majestáticos que detivera sobre a província de Manica e Sofala. Vencidas essas dificuldades, começou-se a construir a fábrica no Dondo, nome da Vila que, a 30 quilómetros da cidade da Beira, era o entroncamento das linhas férreas que se dirigiam para a Rodésia do Sul e para a Rodésia do Norte, futura Zâmbia. A partir desta última via, a CCM promoveu na estação de Moanza a construção de um ramal com a extensão de cerca de 45 quilómetros, até aos jazigos de matéria-prima que se descobriram naquela região para o abastecimento da nova fábrica. A minha determinação, que segui à risca e que continua a ser a minha norma de trabalho, era fazer uma coisa de cada vez e não me dispersar em pequenos negócios que me desviassem dos objectivos essenciais. Foi-se criando assim o maior agrupamento empresarial do território, onde, durante três décadas, José Luís Torres Fevereiro foi meu representante na Companhia de Cimentos de Moçambique, como seu director.



Inauguração da Siderurgia Nacional













Champalimaud com Salazar



Zona industrial da Matola


A partir de 1957, uma questão de família, conhecida da opinião pública como «o caso da herança Sommer», afectou alguma coisa as minhas iniciativas empresariais e alargou o campo dos meus adversários. Mas deu-me também muita força para continuar a lutar. Em 1961, depois dos massacres dos brancos em Angola, tive oportunidade de dizer ao Dr. Salazar quanto me revoltava a posição da Administração Kennedy e que estava decidido a fazer demonstrações de confiança na nossa relação com África e reforçar ali as minhas posições. Foi para responder aos ataques da Administração Kennedy que acelerei a execução do projecto de construção da fábrica de cimentos de Nacala, na província do Niassa, que fazia fronteira com a Tanzânia, de onde seria alimentada em grande parte a guerrilha de Moçambique. Decidi avançar com a construção da fábrica, que foi inaugurada em 3 de Novembro de 1963, pelo então governador-geral de Moçambique, almirante Sarmento Rodrigues, que enalteceu no seu discurso (pp. 157-164, vol. III de Discursos, de M. M. Sarmento Rodrigues - contra-almirante) o valor e o alto significado político da minha iniciativa. Deu assim uma boa resposta àquele que tinha, no Ministério do Ultramar, omitido o meu nome da lista de condecorações com a Ordem do Infante, a serem concedidas às pessoas que colaboraram na implantação da fábrica, um marco de progresso no Ultramar, em tempo de tão grave crise política, ameaçadora do futuro de Portugal. Devo dizer, aliás, que o almirante Sarmento Rodrigues foi o único homem com responsabilidades na administração portuguesa que teve um gesto de simpatia e de apreciação pública para comigo. Lembro-me de que o almirante Sarmento Rodrigues, ao constatar que o meu nome tinha sido omitido da lista de condecorações, me manifestou a sua grande estranheza e disse-me que já não tinha tido tempo para reagir à injustiça.


As suas fábricas de cimento possibilitaram a concretização de muitas obras públicas em Moçambique, incluindo a barragem de Cahora Bassa. Champalimaud expandiu-se entretanto para os países vizinhos. Usou o cartão de Moatize nas fábricas do Dondo e de Nacala. Produziu peças de fundição e de aço, adubos, cal, farinha, papel e preparava-se para produzir alumínio. Tinha projectado o fabrico de aço laminado em Moçâmedes. Quis formar duas companhias de navegação. Fez do Banco Pinto & Sotto Mayor o banco com maior expansão em Moçambique e em Angola.

Ainda na década de sessenta, e no intuito de penetrar nos mercados dos países limítrofes de Moçambique - Suazilândia, Malawi e África do Sul - construí na Suazilândia um entreposto de moagem de clínquer, semiproduto a ser explorado pela fábrica da Matola. Segundo essa visão de penetração no exterior, também enviei uma missão técnica e comercial a Madagáscar, com o propósito de ali vir a estabelecer uma fábrica de cimento. As três fábricas de Moçambique, situadas estrategicamente nas regiões Sul, Centro e Norte, asseguravam as necessidades dos mercados e contribuíram de forma decisiva para o progresso do território. São de mencionar, na área das grandes obras públicas, os contributos dados à construção de estradas em solo-cimento, segundo técnicas que foram desenvolvidas localmente, e à construção da barragem de Cahora Bassa, ao tempo uma das mais importantes do mundo. Começou-se também a operar com o carvão de Moatize, uma hulha que ia sendo explorada com dificuldades, inclusivamente por falta de mercado. A CCM não só passou a utilizar esse carvão nas suas fábricas do Dondo e de Nacala como também foi anunciada em 1961, ano em que foi inaugurada a Siderurgia Nacional no Seixal, a possibilidade de virmos a empregar essa hulha na produção do coque necessário para a alimentação do respectivo alto-forno. Nessa altura, a Siderurgia Nacional importava de Goa uma parte dos minérios de ferro de que necessitava. E este plano global de utilização das matérias-primas oriundas de territórios portugueses foi posto em destaque como exemplo do valor da nossa actuação, em confronto com a atitude americana, que oferecia como único apoio válido de substituição da nossa política de ocupação generalizada a aridez dos furos das suas companhias petrolíferas.

Começámos também a trabalhar com o aço, através da Companhia Industrial de Fundição e Laminagem (Cifel), que tinha fábricas na região industrial de Lourenço Marques e produzia peças de fundição e aço sob a forma de fio-máquina e vergalhão para a construção civil. Em 1974, estava iminente a instalação pela Cifel de uma nova unidade de fundição e laminagem, à ilharga da fábrica de cimento do Dondo, integrando um forno eléctrico para a fusão de sucata de aço. Visava-se, assim, a aceleração do consumo de energia eléctrica em Manica e Sofala e o consequente estabelecimento de uma linha de transporte de energia de Cahora Bassa. A indústria dos adubos foi outro objectivo do nosso grupo. Construímos a Química Geral, SA, unidade situada ao lado da fábrica de cimentos da Matola, e que produzia fertilizantes, como sulfato de amónio, usado nas grandes açucareiras do território, e também adubos compostos. Depois de negociações com o Governo da Rodésia, que na época me levaram a Salisbúria, onde tive contacto directo com o primeiro-ministro Ian Smith, foi construído um enorme tanque para receber pelo porto da Matola a amónia necessária à Química Geral, SA, e à Rodésia do Sul, para onde aquele produto era transportado por via férrea em vagões-tanques. O custo do investimento neste tanque foi todo suportado pela Rodésia, mas a circunstância de também sermos consumidores de amónia foi um trunfo de apoio muito importante para a Rodésia na sua luta contra o bloqueio que lhe era imposto, ao tempo, pela Grã-Bretanha.

Tendo como base a Sociedade Industrial do Maputo, estendemos a nossa actividade ao fabrico de cal com destino à neutralização da acidez dos solos, principalmente das grandes empresas açucareiras. Esse fabrico era assegurado pelo segundo forno rotativo implantado na fábrica de cimento do Dondo e pelo forno vertical erigido na propriedade que a companhia detinha na margem sul do rio Maputo, onde tinha sido aberta a nova exploração de calcário para abastecimento da fábrica de cimento da Matola. Nessa propriedade também se produzia arroz, facto que induziu a uma tomada de posição na indústria alimentícia. Tínhamos igualmente a Moagem da Beira, SA (Mobeira). Concluímos importantes instalações no início da década de setenta, próximo à fábrica de cimento do Dondo. A Mobeira recebia nos seus grandes silos, nomeadamente do estrangeiro, cereais que transformava em farinha. Uma parte dessa farinha era destinada, por sua vez, ao fabrico de pão e bolachas e a restante, que era a maior parte, à generalidade do mercado consumidor. Era muito vasto o plano de desenvolvimento da Mobeira quando ocorreu o 25 de Abril. Por outro lado, e à semelhança do que tínhamos feito na Metrópole, iniciámos em Moçambique o fabrico de sacaria para embalagem de produtos próprios, como o cimento, a cal e a farinha da Mobeira, um programa com vista ao fabrico de papel kraft e de escrita e, finalmente, a produção de pasta de papel na região dos Libombos, na fronteira de Moçambique com a Suazilândia, um país com vastas florestas de pinheiros das melhores espécies.

Champalimaud discursando no Congresso Internacional do Cimento (1960).


Apostámos também na indústria do alumínio. A aspiração de ser consumida em Moçambique uma parcela substancial da energia a produzir por Cahora Bassa fez-nos idealizar a produção local de alumínio em lingotes. O novo produto iria dar lugar ao surgimento de múltiplas oficinas para a transformação do metal, na imensa variedade de artigos utilizados no dia-a-dia da vida moderna, e seria também orientado para os mercados externos. Para desenvolver este meu novo projecto, e como habitualmente fazia antes de apelar ao concurso de quadros técnicos, meditei, li e viajei pelo mundo. Depois anunciei o projecto da construção de uma refinaria de alumínio nas margens do Zambeze, por onde o caminho-de-ferro com origem no porto da Beira atravessava o grande rio. Naquela altura falava-se na existência de bauxites, a matéria-prima indispensável, no Malawi, mas havia dúvidas quanto à viabilidade económica do seu aproveitamento. Tínhamos projectado o fabrico de 600 000 toneladas/ano de aço laminado em Mocâmedes, com base nos minérios de Cassinga e no carvão coquificável sul-africano, ainda hoje um dos de melhor qualidade e de mais novo baixo preço que se encontra no mercado internacional. Entretanto, tínhamos adquirido a Parceria Marítima do Xai-Xai, uma empresa dedicada à cabotagem de passageiros e mercadorias, como as produzidas por nós próprios, entre os diversos portos ao longo da extensa costa moçambicana. Utilizávamos para isso um moderno navio adquirido na Alemanha, que substituiu o antigo barco, que estava prestes a ter de ir para a sucata. Foi com base nesse pequeno núcleo de actividade marítima que projectámos a constituição de duas companhias de navegação transoceânica, uma para ser sediada em Lourenço Marques e a outra no Lobito, ambas no propósito de fazer passar para mãos portuguesas uma parcela do transporte de minérios que da África Central se exportavam através dos nossos portos. O porto de Lourenço Marques já tinha um movimento muito considerável, aproximando-se dos vinte milhões de toneladas por ano. Porém, o Governo de Marcello Caetano decidiu indeferir o nosso pedido de licença, na mesma linha de conduta, dir-se-ia patológica, que manifestou contra as minhas iniciativas empresariais, quando estas pudessem vir a ferir, de perto ou de longe, interesses de terceiros por ele abençoados.

Investi também na promoção da caça, uma velha paixão minha, através da empresa Marromeu Safaris, SA. Estavam abertos 150 quilómetros de picadas e numerosos açudes que logo permitiram à fauna a sua permanência continuada, evitando a migração na procura de água na época seca. Numa área onde a caça tinha sido praticamente exterminada, as nossas duas coutadas contíguas da concessão, uma de 91 000 e outra de 73 000 hectares, eram talvez as mais ricas reservas particulares conhecidas no mundo. O facto mais expressivo da preocupação da defesa a todo o custo da vida animal era porventura representado pelo pagamento, pela própria empresa ao Estado, das taxas que a concessão impunha aos turistas que a frequentassem, em número a que a concessão obrigava como contingente anual mínimo. Isto quer dizer que, até final de 1974, nunca nenhum turista obteve licença para caçar na reserva. No sector da imprensa, a CCM detinha uma participação não maioritária no jornal Notícias, o maior orgão da imprensa moçambicana. Entretanto, tínhamos decidido levar o Banco Pinto & Sotto Mayor para África, tendo eu designado João Raposo de Magalhães como seu adminstrador para desenvolver as actividades em Moçambique e em Angola. E no que respeita à empolgante obra executada, lembra-me ele o que passo a relatar. O banco abriu em Março de 1966 a sua filial de Lourenço Marques, na Avenida da República, a artéria mais importante da zona comercial da cidade. Nesse mesmo ano abriu-se uma agência na cidade da Beira e ainda uma dependência urbana em Lourenço Marques, no populoso bairro de Malhangalene. No relatório do exercício de 1967 dizia-se que a expansão do Banco Pinto & Sotto Mayor no Ultramar significava que queríamos ser, e passo a citar «... uma grande instituição de crédito a nível nacional, sem contudo deixar de ter em conta que os mercados monetários metropolitanos e ultramarinos têm características e dimensões bem diversas». Foi um caso único na banca comercial portuguesa: operávamos em Angola e em Moçambique através do Banco Pinto & Sotto Mayor, enquanto outros decidiram criar bancos diferentes só para África.

No final de 1967, o banco tinha já doze agências em Moçambique e, por outro lado, iniciara a sua actividade em Angola. Em Moçambique, a agência de Polana, no bairro do mesmo nome, estava instalada num edifício moderno, com excelentes instalações, e foi a primeira agência do sistema bancário nacional em que todo o quadro de pessoal era feminino. Tratou-se de uma experiência-piloto, em que se começara a admitir o êxito possível de uma especialização de serviços. A agência de Polana tinha por objectivo principal a recolha de poupanças. Na prática recolhia depósitos - principalmente de particulares - e havia um atendimento personalizado. Os clientes, para além de movimentarem as suas contas, tinham acesso directo ao cartão de crédito Americard, compravam cambiais, e serviam-se do banco como prestador de serviços para pagamentos periódicos. Posteriormente, em Moçambique e em Angola, abriram-se outras agências com os mesmos objectivos. No ano de 1967, para além da abertura em Angola da filial de Luanda, iniciaram a sua actividade as agências de Cassinga e de Moçâmedes. Demos simbolismo à abertura da agência de Cassinga, logo a seguir à de Luanda, querendo com isso significar de forma inequívoca a nossa intenção de nos instalarmos junto dos maiores empreendimentos, a quem queríamos dar apoio e serviços de qualidade. Em 1968 o Banco Pinto & Sotto Mayor abriu mais 24 agências em Angola e em Moçambique, e tinha no final desse ano 39 agências no Ultramar. Entre 1969 e 1974 o banco desenvolveu um grande esforço no sentido de conseguir dar a cobertura de uma eficiente rede de agências a Angola e Moçambique. Nenhum outro banco conseguia ter uma expansão tão significativa naqueles territórios portugueses. No final de 1970, o banco tinha já cem agências no Ultramar.

Terminara a primeira fase da nossa expansão em África, o que nos permitia estar presentes em todos os distritos e dar apoio a todos os sectores de actividade que se espalhavam por aqueles territórios, imensos em riquezas e em expansão. Angola e Moçambique iam desenvolvendo com enorme êxito as suas grandes potencialidades. Toda a máquina produtiva, apoiada em excelentes estruturas, com destaque para a rede de estradas, os caminhos-de-ferro, os portos e aeroportos, explodia em todas as vertentes, tornando aqueles territórios africanos parcelas a que se adivinhava um sólido e promissor futuro. Naturalmente, o Banco Pinto & Sotto Mayor, que apoiava todos os grandes empreendimentos que se expandiam de forma espectacular em Angola e em Moçambique, acompanhava com grande entusiasmo o crescimento do Grupo Champalimaud que tinha terminado nos anos 60 a consolidação do seu sector cimenteiro em África, e ia desenvolver projectos em curso e novas iniciativas na década de setenta. O Banco Pinto & Sotto Mayor e as companhias de seguros Mundial e Confiança, no início da década de setenta, cobriam efectivamente os territórios de Angola e Moçambique. Mas o crescimento da actividade económica obrigava-nos a empreender novas acções no sentido de podermos fomentar e acompanhar o desenvolvimento e mantermos uma posição de liderança no mercado. Intervínhamos noutros empreendimentos, que, para além dos sectores bancário e segurador, abrangiam outras importantes áreas: cimentos, ferro e aço, adubos, indústrias do ramo alimentar e navegação. Os anos de 1971, 1972, 1973 e 1974 foram de grande crescimento de todos os sectores produtivos em Angola e Moçambique, o que obrigava naturalmente o Banco Pinto & Sotto Mayor a continuar a sua expansão, por forma a permitir-lhe manter a sua posição no mercado, onde apenas os bancos emissores de Angola e de Moçambique dispunham de maiores recursos. Quando o Estado em 1975 interveio no sector bancário, e depois de consumado o roubo pelo Governo de Lisboa, o BPSM perdeu a sua verdadeira identidade. Em África, como em outras latitudes, o banco perdeu o seu esplendor. Para trás ficavam dez anos de fulgurante actividade em Angola e em Moçambique, onde a presença do banco se exprimia pela existência de 150 balcões. O banco sentia-se preparado para corresponder aos nossos grandes planos de expansão, sobretudo os investimentos no vale do Zambeze, a navegação no rio do mesmo nome, o alumínio, os minérios de Angola, as duas companhias de navegação intercontinental. Foram alguns dos projectos que a maldade e a mesquinhez dos homens tornaram impossíveis.

Uma das duas reservas de caça de Champalimaud em Moçambique.



Plataforma de petróleo em Angola


Com o 25 de Abril tudo acabou de forma dramática e a obra realizada deixou de poder aproveitar ao porvir de Moçambique e Angola, como nações independentes.


A Polícia Judiciária emitiu contra António Champalimaud um mandado de captura, devido ao caso de herança Sommer. Refugiou-se no México. Apresentou um projecto petroquímico para Sines que implicaria um investimento de dez milhões de contos e quis ter uma companhia de navegação em Moçambique e Angola. Mas deparou com obstáculos que atribui à má vontade pessoal de Caetano.

Fui para o México em Fevereiro de 1969 para estar perto dos Estados Unidos e porque na altura tive a informação, que depois verifiquei que era errada, de que seria perigoso ir para o Brasil, tendo em conta a cooperação entre as polícias brasileira e portuguesa. Só depois soube que não era assim e que, afinal, podia ter permanecido sem problemas no Brasil. Até o Dr. Salazar ter caído da cadeira estive para aí uma meia dúzia de vezes com ele, e as causas que lhe submeti e que eu considerava de interesse nacional, vieram sempre a conhecer um desfecho favorável para mim, apesar das fricções havidas. Mas já Marcelo Caetano quis prejudicar-me e contrariar as minhas iniciativas empresariais, boicotando a minha expansão. Marcello Caetano era uma pessoa com quem tinha relações amistosas, que começaram quando lhe pedi um parecer. Numa primeira fase do seu Governo, ele não me hostilizou e até me defendeu quando o almirante Armando Reboredo atacava a Siderurgia Nacional na Assembleia Nacional, porque tinha andado a insistir connosco para fazermos investimentos em Moncorvo, região de onde, tanto quanto me recordo, ele era natural, e nós não víamos utilidade num investimento desses. Mas depois Marcello Caetano fez tudo para bloquear os meus investimentos, certamente influenciado por gente que o rodeava, nomeadamente de empresas concorrentes e que se viam ameaçadas pelo desenrolar da minha actividade.

Começou logo por rejeitar os meus planos petroquímicos para Sines. Apresentei a Marcello Caetano, através de Jorge Jardim, um completo programa petroquímico para Sines. Eu já tinha abordado essa possibilidade, no tempo de Salazar, com o Eng.º Manuel Rafael Amaro da Costa, que era secretário de Estado da Indústria quando o ministro da Economia era José Gonçalo Correia de Oliveira. Amaro da Costa, que era natural de Sines, chamou-me e pediu-me para eu arranjar um projecto na região. Na altura disse-lhe: «Les beaux esprits se rencontrent». Porque eu andava a pensar numa refinaria de petróleo, que substituísse a de Cabo Ruivo, que já estava completamente ultrapassada, e Sines poderia ser uma boa solução. Eu parti para o meu exílio mexicano em Fevereiro de 1969 e em Agosto apresentei a Marcello Caetano o plano petroquímico completo para Sines, para uma refinaria de petróleo de dois milhões de toneladas, com base, em grande parte, nas ramas de características especiais de Cabinda, e que envolvia um investimento total de dez milhões de contos. Através de Jorge Jardim, chegaram-me ainda os ecos de que Marcello Caetano tinha perguntado, com admiração, como é que eu tinha coragem de investir tanto dinheiro. Mas posteriormente Marcello Caetano tirou-me esse plano das mãos para o dar a outros. E o resultado foi que, em vez da execução de um plano racional, Sines se tornou um monstruoso elefante branco. O que aconteceu foi típico de Marcello Caetano: tomou a sua decisão com base na opinião do último com que falou. Era um homem sem coerência e sem confiança nele próprio. Ele, por exemplo, privilegiava altamente interesses que me eram antagónicos, com o apoio de gente a ele chegada, caso, nomeadamente, de João Dias Rosas, ministro das Finanças, e de Rogério Martins, secretário de Estado da Indústria, que me fizeram toda a espécie de tropelias. Além de bloquear o meu projecto para Sines, o Governo de Marcello Caetano tomou, por manifesta má vontade contra mim, outras atitudes. Foi o caso do Decreto-Lei 1/73, um decreto com efeitos retroactivos, e especialmente feito contra a minha pessoa, que anulou a compra por mim efectuada da maioria do Banco Português do Atlântico, assinada em Paris, seis meses antes, entre mim e Artur Cupertino de Miranda. Qualquer jurista sabia que não podia fazer isto. Foi também o caso de mandar parar, enviando para lá a Guarda Nacional Republicana, obras em curso nas fábricas de cimento em Alhandra e no Cabo Mondego, e que se destinavam a aumentar as suas capacidades de produção. Outro boicote que Marcello Caetano fez à minha actividade consistiu na recusa de autorizar a constituição de companhias de navegação que operassem a partir dos portos de Angola e Moçambique, como já disse atrás. As companhias que detinham aqui o monopólio da navegação mexeram-se para impedir esse meu projecto, e foi o Dr. Marcello Caetano, pessoalmente, quem o vetou.

Dentro da coerência da minha administração, e em relação ao futuro, o meu projecto era fixar parte da produção da Cahora Bassa dentro de Moçambique. E não havia melhor maneira de fixar essa produção do que através de uma fábrica de alumínio. O alumínio era, por excelência, a indústria que consumia energia. Como as bauxites do Malawi se revelaram de qualidade duvidosa, assentei o projecto sobre as outras origens, porventura australianas, que viessem já tratadas em maior ou menor grau de processamento. Então, para avançar com a fábrica de alumínio, fui a Pittsburg, onde havia grandes empresas produtoras. O alumínio seria a base do meu projecto para o vale do Zambeze, que estava a ser negociado e que teria sido uma coisa extraordinária para Moçambique. Também através da Parceria Marítima do Xai-Xai, ou por outro meio, seria possível trazer de Angola uma matéria-prima para a nossa produção de adubos em Moçambique, na fábrica da Matola, que estava à ilharga da nossa fábrica de cimento e, no retorno, transportar o adubo já pronto para Angola. Quando passei por Angola, depois do meu regresso do México, falei com o governador-geral, Santos e Castro. Foi ele que me disse que tinha falado em Lisboa com Marcello Caetano e que este lhe tinha dito que a companhia de navegação não seria autorizada. Falei ainda sobre esse assunto com o almirante Henrique Tenreiro, que se tinha empenhado a favor do meu projecto sem ter aceite um tostão por isso, mostrando-se um homem sério e desinteressado por dinheiro.

Marcello Caetano sempre quis contrariar-me, prejudicar-me. No caso do Banco Pinto & Sotto Mayor prejudicou-me muito. Marcello Caetano acusou-me depois de ter um flirt com a esquerda. Mas isso era mentira, até porque a esquerda nunca teve confiança em mim. Por outro lado, eu entendia que não tinha vocação para a política e que não era minha função intrometer-me na política activa. Por exemplo, nunca quis aderir à SEDES, apesar das sondagens que me fizeram para isso. Quando desembarquei em Moçambique, vindo do exílio mexicano, em 1973, tive a sensação de que as coisas se poderiam salvar se Marcello Caetano fosse substituído. Em Angola praticamente já não se dava um tiro, a situação militar era boa para o nosso lado, os chefes guerrilheiros estavam internacionalmente desacreditados. Em Moçambique, eu tinha a convicção de que, quando as águas de Cahora Bassa chegassem à fronteira com a Zâmbia, a infiltração da guerrilha acabaria. Só a Guiné se apresentava como um caso distinto, no tempo de Spínola. Mas eu acreditava numa política de relacionamento de Portugal com o Ultramar estabelecida em estatuto diferente daquele então em vigor. Quando regressei do meu exílio mexicano, no final de 1973, fiz questão de vir através de Moçambique, e não directamente para Lisboa, onde tinha sido muito maltratado. Foi isso que referi então ao presidente da República, o almirante Américo Tomás, para lhe fazer sentir que nesta altura ainda seria possível salvar África se Marcello Caetano fosse substituído. Tomás, quando ouviu isto, pôs um ponto final na conversa. E passou então a falar das perdizes da minha Herdade do Belo, no Baixo Alentejo, onde por vezes tinha ido caçar a meu convite. (Testemunho oral de António de Sommer Champalimaud em Lisboa, a 12 de Maio de 1995, in José Freire Antunes, A Guerrra de África - 1961-1974, vol. I, Círculo de Leitores, 1995, pp. 77-88).















António de Spínola e Costa Gomes









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