quarta-feira, 14 de março de 2018

Entradas de leão

Entrevista a Ian Smith






«Lisboa, 27 de Agosto [de 1965] - De um apontamento de conversa entre o Primeiro-Ministro Ian Smith e o nosso homem em Salisbury, Freitas Cruz: "Estamos prontos à independência unilateral", diz Smith, "mas precisamos de saber se Portugal vai connosco até ao fim e está disposto a correr connosco todos os riscos. Declararemos a independência quando Portugal achar mais conveniente". É claro que no mundo ninguém quer saber dos rodesianos para nada, sejam brancos ou pretos, nem dos interesses portugueses; e só contam os interesses das grandes potências. Fingem, é evidente, que tudo é feito para nosso bem, e para nos ajudar a sair das dificuldades, que são aliás suscitadas pelos grandes da terra; e, a ouvi-los, até lhes deveríamos ficar gratíssimos. Esta questão da Rodésia é das mais difíceis que se nos deparou. Que devemos fazer? Encorajar a Rodésia, levá-la à independência, reconhecê-la? Que fará a Inglaterra? Que represálias? A verdade é que da Inglaterra, neste caso, nada temos a esperar. Da Rodésia sempre poderemos, se sobreviver, esperar alguma coisa. Não vejo que a Inglaterra nos queira fazer muita mossa; e de modo nenhum penso que nos dirija qualquer ultimatum como em 1890. E se a Rodésia desaparece? Então perdemos 250 000 amigos dispostos a bater-se, que tantos são os brancos rodesianos; e ficamos com os flancos interiores de Angola e Moçambique abertos à infiltração. Se queremos continuar em África, teremos de aguentar, e de nos encostar aos que querem ficar em África. Todo este problema dá-me bem a noção da continuidade histórica da nação portuguesa. Tivemos um choque com a Inglaterra por causa daquela região, estamos a tê-lo outra vez, e pelo mesmo motivo. Em todo o assunto, Salazar não tem tomado uma posição absolutamente clara: noto hesitação, receio, insegurança no julgamento da situação. Penso que, como qualquer chefe político, me deixará a mim a responsabilidade pública e política do que acontecer - para que eu possa ser sacrificado se as coisas correrem mal, e assim aplacar as forças e os países que houver de aplacar. Também ainda não sabemos o que fará a África do Sul.

Lisboa, 1 de Setembro - Conversa miudinha com Freitas Cruz, chegado de Salisbury. Confirma que Smith está disposto a ir para a independência unilateral, se necessário. À tarde, longa entrevista com Benoy, secretário-geral do MNE da Rodésia: afirma que se torna necessário darmos a nossa concordância explícita à designação de "diplomático" aplicada ao representante rodesiano em Lisboa, sob pena de os ingleses dizerem que Portugal não o aceita. Neste ponto, creio que poderemos satisfazer os rodesianos sem risco excessivo de uma retaliação britânica.

(...) Lisboa, 15 de Setembro - O Observer, de Londres, sugere que, se Portugal reconhecer estatuto diplomático ao representante rodesiano, deverá o Reino Unido suspender relações com o Governo de Lisboa; e pergunta se seria para nós agradável que a Inglaterra reconhecesse estatuto diplomático aos representantes em Londres dos movimentos rebeldes angolanos. Decerto: não. Mas não há analogia nas situações: nós dizemos que Angola é Portugal e não se destina à independência; a Inglaterra diz que a Rodésia não é Inglaterra e se destina à independência. Mas a tese do Observer faz parte de uma campanha de intriga e intimidação para ver se entramos em pânico. Convoquei os elementos principais do corpo diplomático acreditado em Lisboa, e explico-lhes a situação. Entretanto, o representante rodesiano chegou hoje. No aeroporto, jornalistas, rádio, televisão, etc. Um hábil jornalista britânico perguntou à queima-roupa a um jovem secretário do Protocolo português de quem é que estava à espera. Respondeu o imprudente secretário: aguardava o "chefe da missão diplomática rodesiana". Ardeu Tróia! Logo me telefonou o inglês, furioso, de cabeça transtornada, e reclama contra a frase do secretário; e nisso houve que lhe dar razão. Depois são as agências internacionais, os correspondentes estrangeiros, a assediar o ministério. Em Londres, o gesto português é tomado ou apresentado como "aviso sério" aos ingleses. Aproveitei o exagero, e por minha vez peço explicações ao embaixador inglês, que me afirmou ir negar imediatamente o boato. Simultaneamente, dirijo uma circular às nossas missões nos países da NATO, onde a Inglaterra levantou o problema, a repor a verdade da situação: o representante rodesiano é aceite em Lisboa sem estatuto diplomático formal embora se lhe dispensem as cortesias e os privilégios habituais a enviados estrangeiros. Em suma, uma monumental trapalhada.

(...) Lisboa, 18 de Outubro - Apenas hoje leio mais um manifesto da oposição, publicado há dias. De novo defende a autodeterminação, conduzida por Portugal, "de maneira a reconquistar-nos prestígio e a boa-vontade da ONU". E acusam-nos de estar "encostados" à Rodésia e à África do Sul. Quando oiço ou leio coisas destas, fico perplexo. Entregar o Ultramar - para conquistar que prestígio? E o que é e em que se traduz a boa-vontade da ONU? Entregue o Ultramar, e supondo parvamente que isso nos dava prestígio, ficaríamos com esse prestígio para sempre e dele viveríamos? E a boa-vontade da ONU manifestava-se como? Por uma resolução encomiástica? Decerto que seríamos elogiados - porque haveríamos feito o que a ONU queria. E daí? Repetia-se anualmente a resolução laudatória? E isso ajudava a sustentar o povo português? Francamente, equacionar Angola com umas frases hipócritas das Nações Unidas - é tão absurdo que parece não deveria ocorrer a alguém em seu juízo. Mas parece que ocorre.

(...) Lisboa, 23 de Outubro - Marcada para o dia 28 uma reunião do Conselho de Segurança contra Portugal. Mais uma. Começa a ser rotina. Entretanto, Harold Wilson chega a Salisbury: vai convencer os rodesianos brancos a entregarem o seu presente e o seu futuro aos afro-asiáticos.

(...) Nova Iorque, 11 de Novembro - Mais tarde. Notícia de sensação desconjuntou as Nações Unidas e a maioria dos delegados: a Rodésia do Sul proclamou a sua independência unilateralmente. Que furor, o dos afro-asiáticos! E o furor do russo! O desconforto de ocidentais bem-pensantes e bem-falantes, seráficos e hagiológicos, no fundo hipócritas por aí além, que escondem sob os altos e impolutos princípios os seus objectivos de negócio, de conquistar mercados para as suas indústrias, e de obter para estas matérias-primas a preços irrisórios. Espectáculo divertido, se não pudesse levar a resultados trágicos.

Em nome dos afro-asiáticos, U Thant convida-me a participar nas reuniões de emergência que o Conselho de Segurança vai dedicar à questão da Rodésia, para decretar sanções, ao que já corre. É grave o convite, e tem mil implicações a sua aceitação ou rejeição. Por mim, acho de recusar. Dada a seriedade da decisão, consulto para Lisboa o chefe do governo. Salazar, depois de também falar no caso ao Presidente da República, concorda comigo. Comunico a recusa ao secretário-geral. Foi de maravilha o exaspero dos afro-asiáticos: uma bela oportunidade que perdiam de mais uma vez vergastar Portugal.

Quason-Sackey, ministro dos Estrangeiros do Gana e amigo dos meus anos de Londres, veio de urgência a Nova Iorque para o Conselho sobre a Rodésia. Tenho com ele uma conversa aberta. Afirma-me: Harold Wilson foi prevenido das intenções dos rodesianos pelo próprio Ian Smith, está no fundo conluiado com este, e Michael Stewart vem a Nova Iorque, não para levar o Conselho a tomar decisões drásticas, mas para evitar que o faça. É muito capaz de isto ser assim mesmo.

(...) Lisboa, 16 de Novembro - Conselho de Ministros. Durante uma hora faço a habitual exposição externa. Suscita debate o problema da Rodésia: alguns receiam que uma independência branca na Rodésia dê ideias semelhantes a Angola e a Moçambique. Salazar combate a analogia.

(...) Lisboa, 20 de Novembro - Neste momento, segundo as nossas informações, a Rodésia tem reservas de combustível para 65 dias. Por nossa parte, podemos distrair para Salisbury, imediatamente, cerca de 150 000 toneladas. E depois?

Conselho de Segurança aprova finalmente uma resolução: condena os rebeldes, intima a Inglaterra que ponha termo à independência ilegal, e apoia as sanções limitadas impostas pela Grã-Bretanha. Tudo muito diluído, e inócuo. Smith deve rejubilar. Qual será nisto o jogo britânico e americano? E depois o Conselho aprova também uma resolução contra nós. Reitera as anteriores, pede o boicote a todos os produtos portugueses, ao fornecimento de armas, e assim. É mais uma resolução, e mais nada. Abstiveram-se a França, a Inglaterra, os Estados Unidos, a Holanda. Isto quer dizer que foi reafirmado o limite além do qual os ocidentais não consentem que os afro-asiáticos se afoitem.

(...) Lisboa, 28 de Novembro - Li algumas páginas do velho D. Luís da Cunha. Que perspicácia e penetração! Sustenta que a diplomacia só deve ser confiada aos profissionais de carreira; e já nos princípios do século XVIII teve nítida consciência da ligação Angola-Moçambique, e mandava então desenhar o que, sob Barros Gomes e no fim do século XIX, se haveria de chamar o mapa-cor-de-rosa. É fascinante ler os textos dos nossos grandes homens, e ver como possuíam uma noção exacta dos interesses nacionais permanentes. E a nossa juventude, mesmo a massa dos portugueses, não os conhecem.

Lisboa, 30 de Novembro - Recebi carta de Gilpatric: escreve vagamente e desculpa-se de nada ainda ter acontecido no campo das relações luso-americanas. E finda por dizer que agora vai ocupar-se da Rodésia e da nova situação criada, em relação à qual seria no interesse dos dois países (Portugal e os Estados Unidos, entenda-se) que os programas e as políticas seguissem linhas paralelas. Eu tomo esta carta como uma notificação, amável e oficiosa, de que os Estados Unidos vão procurar impor a sua política quanto à Rodésia. Quer dizer: destruir a Rodésia primeiro, destruir-nos a nós depois. No último domingo, o artigo do Observer é nítido: quem modificar a Rodésia modificará Moçambique e quem modificar Moçambique tirará naquela região "grandes benefícios políticos".

Lisboa, 1 de Dezembro - Tropas inglesas e um contingente da RAF para a Zâmbia, Para quê? Intimidar a Rodésia? Ou intimidar-nos a nós? Regressou de Londres o embaixador britânico e vem ver-me. Diz-me: é inconcebível que Smith possa bater Wilson.

Lisboa, 3 de Dezembro - Vou ao Secretário de Informação para ver a fita de David Nasser e de Manzon sobre Portugal. Fico ao lado de Salazar. Este faz contínuos comentários, quase todos favoráveis. De facto, o filme parece admirável. Depois o chefe do governo leva-me no seu carro até à sua residência e continuamos a trabalhar até às 10 horas da noite. E ainda vou a correr jantar à embaixada da Alemanha. Um inferno! Em Adis Abeba, os países africanos perdem a guerra contra a Rodésia. Circulam boatos: aviões de combate sul-africanos estariam presentes na fronteira da Zâmbia. Estou certo de que é falso este rumor. Mas prova a tremenda capacidade de enredo das forças em presença.






(...) Lisboa, 21 de Dezembro - (...) Com Jorge Jardim vou à residência de Salazar, e aí encontro Silva Cunha: tratámos do problema da Rodésia e do seu abastecimento por fontes que não sejam nossas. Tudo parece complicado, dada a imprevidência dos rodesianos. Já pelo mundo se fala num bloqueio ao porto da Beira, em Moçambique. Archibald Ross, entretanto, pediu autorização para dois voos diários, de 5 aviões, transportando gasolina para a Zâmbia, como parte de uma ponte aérea a lançar para aquele país. Perguntei: é um pedido formal do governo de Sua Majestade? Sim. Então o governo português vai considerar o assunto. Curioso: ao mesmo tempo, em Washington, o ministro dos Estrangeiros da Zâmbia visita o Vasco Garin, e faz-lhe o mesmo pedido. Não há dúvida: em África somos uma potência de tomo.

Lisboa, 27 de Dezembro - Como eu dissesse que todos os problemas, em conjunto e ao mesmo tempo, formam um inferno, Salazar comentou: "Ah! sim, muito pior do que no tempo da guerra de Espanha, muito pior do que durante a Grande Guerra. Nada então se comparava com a dificuldade e complexidade com os anos actuais. Ah! eu só queria ter menos vinte anos, porque então levava isto ao fim". Como o Silva Cunha e eu disséssemos que decerto levaria isto ao fim, Salazar replicou: "Hum! não levarei: mas se eu tivesse menos vinte anos! Ah! então havia de pôr os pretos contra os brancos, e os brancos contra os brancos, e todos embrulhados". E Salazar, revolve, uma sobre a outra, as duas mãos fechadas como para dar um murro, significando que punha todos em bulha. Depois, concentra-se e diz: "Mas gosto disto, gosto, gosto da luta, do combate". Comentei que por mim já estava satisfeito de tanta luta, Salazar riu-se, e concordou que efectivamente tem sido um bocado de luta a mais.

Lisboa, 31 de Dezembro - Findo o ano em trabalho com o Presidente do Conselho. Como eu lhe desejasse um bom 66, replica: "Tenho muitos receios para 1966. Vai ser um ano muito difícil, Talvez mais do que os anteriores. Isto da Rodésia vai ser uma crise grave, complexa, prolongada. Quem sabe se, por acto do Ocidente, não estaremos a assistir ao princípio do fim do homem branco em África? Talvez seja propósito dos Estados Unidos e da Inglaterra destruir toda a África, utilizando para o efeito a subversão e a autodterminação e o comunismo, sabendo que depois de tudo destruído a África há-de voltar a apelar para a Europa e para o Ocidente - mas então só para os grandes. E assim se eliminaria Portugal da África. Sinto alguma revolta quando penso que já não existirei para denunciar isso". Podê-lo-á Salazar ainda fazer?


(...) Lisboa, 11 de Janeiro [de 1966] - Mais uma reunião com os directores dos jornais diários. Causou emoção o meu relato sobre o problema da Rodésia e possíveis consequências para Portugal. À saída, Alfredo Guisado, representando a República, disse-me: "Mas oh! senhor ministro, as grandes potências são umas canalhas!" Curioso que um homem da oposição comece a compreender que o nosso problema ultramarino se cifra, a longo prazo, em saber se sim ou não entregamos o Ultramar às forças e aos interesses imperiais.

Lisboa, 19 de Janeiro - Wilson é insultado na Conferência de Lagos, e acusado de ofender a democracia em cumplicidade com Smith. E meia dúzia de dias mais tarde é a revolta na Nigéria. Em nome da democracia e dos direitos humanos é assassinado o Primeiro-Ministro, Sir Abubakar; são mortos os ministros regionais; é assassinado o ministro das Finanças, Festus, personalidade obesa e pitoresca que conheci em Adis Abeba; e o exército toma conta do poder, salvo na região onde se organiza uma guerrilha rebelde. Tudo isto após a Conferência de Lagos haver decidido apressar a liquidação da Rodésia para que se preservasse a democracia no seio da Comunidade Britânica. Será possível que os ingleses acreditem em tudo isto? Estará Harold Wilson honestamente convencido de que, destruído Smith, implanta na Rodésia um regime democrático, livre e pluralista? Não verá que, entregue o poder aos afro-asiáticos, se instalará na Rodésia uma feroz ditadura de um só partido baseado numa só tribo? Tudo em África se está liquidando em desastre - mas não se admite isso porque o Ocidente confia no desastre para melhor dominar e explorar o continente.

(...) Chega-me a notícia de que os ingleses constroem na Bechuanalândia uma poderosa estação de rádio que se atribui o objectivo de fazer propaganda no interior da Rodésia. Todavia, as antenas e demais instalações técnicas indicam que se pretende atingir Luanda e Lourenço Marques. Quando menciono o facto ao embaixador, Ross diz que o seu governo não tem nada com isso: deve tratar-se de uma dependência da BBC. Também acreditei. Como se pode duvidar da afirmação de um embaixador em nome do seu governo? Chamar mentiroso ao embaixador seria criar um conflito.

(...) Lisboa, 28 de Janeiro - Adensa-se a crise na Rodésia. Deram-se hoje desenvolvimentos da mais alta importância: a missão zambiana que se encontrava na Beira para negociar connosco o transporte de gasolina para Lusaca, despediu sem mais, subitamente, sem explicação, sem uma palavra à nossa gente; o Primeiro-Ministro Smith pergunta-nos se, no caso de chegar à Beira um navio com petróleo para a Rodésia, nós o descarregaríamos e ligaríamos o depósito de descarga ao oleoduto directo; o Primeiro-Ministro Verwoerd mandou-nos dizer, por intermédio do seu embaixador aqui, que vai enviar um emissário especial e altamente secreto para falar com Salazar, no seguimento da iniciativa por nós tomada há dias para abrir uma comunicação directa com o chefe do governo sul-africano; numa eleição parcial, em Hull, os Trabalhistas ingleses ganharam o lugar, e a sua posição parlamentar e política fica um tanto fortalecida; a conversa de Sir Hugh Beaddle (governador da Rodésia, que não acompanhou Smith em Londres) parece ter enfurecido Harold Wilson por acentuar a necessidade de o governo britânico negociar com os rodesianos. Como deslindar toda esta trapalhada? Pelo telefone, falei nisto tudo a Salazar. Este fez também as suas reflexões, e a certa altura interrompe-se e diz: "note, dum ponto de vista profissional, o problema é fascinante e tem o máximo interesse". Observei-lhe que tinha interesse em excesso. Sublinhei depois que a Inglaterra havia expedido algumas forças militares para a Zâmbia e Bechuanalândia. Em tom de descaso, diz o chefe do governo: "Mas nós somos mais, não somos?"







(...) Lisboa, 18 de Fevereiro - Conversa miúda com Hernâni Cidade. Disse-me que, para ajudar a Rodésia, havia a ideia de se constituir uma Sociedade dos Amigos da Rodésia. Não convinha que esta surgisse como inspirada pelo governo; e por isso parecia que os seus membros deveriam ser homens da oposição, respeitados pelo seu prestígio intelectual e pela sua integridade. Tratava-se de auxiliar a Rodésia, forma indirecta de auxiliar o ultramar português. Reacção instantânea de Hernâni Cidade, de olhos com lágrimas: "estou pronto, para esse fim faço o que o governo quiser". Mais tarde, igual conversa com Armando Cortezão, a quem disse que eu pensava no seu nome para presidir à Sociedade. Reacção de Armando Cortezão, não de lágrimas nos olhos mas de voz rouca de exaltação: "Tudo, mas tudo o que o senhor quiser! A nossa África é sagrada. Ah! se eu tivesse idade para pegar numa arma". E este é um homem que, na guerra civil de Espanha, arriscou a vida nas brigadas internacionais. Hernâni Cidade, por seu lado, é o homem que na I Grande Guerra, como capitão miliciano, foi feito prisioneiro pelos alemães e fugiu - para poder tornar a combater.

(...) Lisboa, 9 de Março - Ingleses têm violado o espaço aéreo de Moçambique, rasaram com aviões o navio dos pilotos e o paquete Moçambique. Há neste caso da Rodésia um progressivo adensar de medidas contra nós. Há que reagir.

Lisboa, 10 de Março - Crise séria no seio da NATO. Foi discutida a carta de De Gaulle para Johnson sobre um hipotético directório atlântico. Ingleses estão a reagir, e circulou em Paris um projecto de declaração anti-francesa. Se aprovada, seria a criação de um bloco contra a França. Não há dúvida de que o Presidente francês é a raiz de um sobressalto quase permanente. De Gaulle é muito claro em tudo que é negativo. Mas não diz nada de verdadeiramente construtivo. É o homem dos grandes frescos históricos, da grande intuição telúrica, dos riscos totais para alcançar resultados totais. Quanto à NATO, Salazar prevê para 1969, ano em que expira o actual tratado, uma crise de alto bordo, e pergunta-se se Portugal deverá continuar a pertencer à aliança. Diz: "Posso falar com isenção porque nessa data já não estarei vivo e em qualquer caso já não serei com certeza Presidente do Conselho".

Lisboa, 11 de Março - Jornais da tarde noticiam a reunião de uma importante esquadra britânica ao largo das costas de Moçambique - incluindo os porta-aviões Ark Royal e Eagle - para melhor controlar o acesso à Beira e mesmo Lourenço Marques. Praticamente, trata-se de um bloqueio, por enquanto feito à distância, Neste momento, não nos convém de todo a crise da NATO causada pela França: não nos interessa tomar partido por esta contra a Inglaterra e a Alemanha, nem por estas contra a França.

(...) Lisboa, 29 de Março - Telegrama urgente de Salisbury, do Freitas Cruz. Este foi chamado por Ian Smith, que lhe disse: tudo considerado, o governo rodesiano havia resolvido mandar seguir para a Beira um ou vários petroleiros; não se ignoravam os riscos, mas não se via outra solução; e era preferível pôr desde já as cartas na mesa. É evidente que vamos ter uma crise de alto bordo; e se as cartas são dos rodesianos, a mesa é nossa; e é sobre esta que se ganha ou se perde a vasa. Às seis horas, reunião do Conselho de Ministros. No fim, e à parte, mostro a Salazar o telegrama de Salisbury. Sorriu e ficou tranquilo.

(...) Lisboa, 31 de Março - Antoine Pinay: personalidade da maior simpatia e vivacidade, e aliciante, e que irradia agrado e boa disposição. Contou uma conversa recente com Harriman. Este afirmara, repassado de convicção, que o regime português era medieval, e que Salazar precisava de ser abatido. Perante os argumentos, de Pinay, em defesa de Salazar, Harriman admitiu que se deixasse aquele em paz, se os portugueses o queriam; mas então haveria que o forçar a abrir mão de Angola, pois era intolerável que um país tão pequeno possuísse um território tão grande. Perguntei a Pinay que comentário lhe sugeria esta atitude de um americano responsável. Trata-se de um descarado imperialismo, diz Pinay, típico dos anglo-saxónicos: que haverá nestes que os superioriza em relação aos latinos? Por que razão têm mais e podem mais do que os latinos? Serão aqueles efectivamente uma raça superior, como aliás se julgam, e os latinos uma farandolagem decadente? Estará o mundo ocidental condenado a ser um mundo apenas anglo-saxónico?

Lisboa, 3 de Abril - Fim-de-semana em Sintra, no casarão abandonado da velha Quinta da Abelheira. Com a neblina de Sintra, uma maravilha. Silva Cunha e Jorge Jardim previnem-me de que está prevista para pouco a chegada de um petroleiro à Beira com combustível para a Rodésia. Que tremendas dores de cabeça vamos ter.

(...) Lisboa, 5 de Abril - Crise com a Inglaterra, e da grossa. Chegada à Beira de um navio-tanque com petróleo para a Rodésia; em Londres, Michael Stewart manda chamar com urgência o nosso Encarregado de Negócios; e ao entrar no ministério hoje de manhã esbarro com o embaixador de Inglaterra praticamente atravessado à minha frente. Sir Archibald exige que não seja descarregado o combustível do navio-tanque, e que este se faça ao mar, e isso já; caso contrário, o governo de Sua Majestade receia que se produza uma situação muito grave. Digo ao embaixador que ele não exige nada, e que se acalme, e que vou informar-me, e voltaremos a falar. Ainda que exausto, vou à noite ao Teatro Vasco Santana para distribuir os prémios do II Encontro Europeu de Estudantes. Está o embaixador da Bélgica, e pergunta-me ansiosamente: "o navio descarrega para a Rodésia ou não?" "Leia amanhã a nota-oficiosa", replico eu. Rádio e Imprensa internacional têm dado a maior repercussão a todo este enredo. Ingleses ameaçam-nos com o Conselho de Segurança, e uma resolução que autorizasse o uso da força contra nós. Eu perguntei ao inglês quem forneceria às Nações Unidas a força a ser empregue contra Portugal, ou contra a Rodésia. Anderson, que acaba de regressar dos Estados Unidos, telefonou-me para sugerir que terá chegado o momento da mediação, e que nós poderíamos ser os mediadores. Na nota oficiosa, rejeitamos categoricamente qualquer responsabilidade em todo este trabalho.






Lisboa, 6 de Abril - Lord Walston, ministro de Estado no Foreign Office, vem a Lisboa para conversar sobre a Rodésia. Já o conheço dos encontros da NATO. Recebi-o às seis da tarde. Vinha prazenteiro, de cravo ao peito, com aquele jeito muito britânico de aparentar que tudo corre no melhor dos mundos, quando tudo está a correr no pior dos mundos. Walston repetiu o que Ross já me tinha dito. Sublinhou os aspectos económicos; e aludiu às relações históricas e à amizade entre os dois países. Walston repisou que até aqui tinha sido impecável a nossa conduta. Em resumo: "Vinha pedir-nos para deixarmos de ser neutrais em favor de Smith e passarmos a ser neutrais em favor de Wilson". Sorri a este humor britânico. Acrescentou Walston que seria do nosso interesse provocar a queda rápida de Smith. Pedi-lhe que nos permitisse sermos os juízes do nosso interesse. Walston afirmou que apenas um governo de maioria negra conseguiria fazer da Rodésia um grande centro industrial da África Meridional. Conclui por meu lado sublinhando quanto era delicioso ver os ingleses não perderem o sentido humorístico, mesmo nas crises graves e situações embaraçosas. Walston riu sem constrangimento. Com algum descaso, comentei ainda ser absolutamente intrigante que a África do Sul fosse a maior potência industrial de África - sob uma minoria branca.


Lisboa, 8 de Abril - Pela meia manhã, Salazar telefona-me de Santa Comba, onde foi num salto. Quis saber o que "há de Rodésia". Informo-o dos últimos desenvolvimentos. Em Nova Iorque, o Conselho de Segurança não conseguiu reunir-se com a urgência desejada pela Inglaterra - porque os africanos e os russos se opuseram.

Lisboa, 9 de Abril - Em Nova Iorque, é finalmente lançado o Conselho de Segurança. Está em causa a Rodésia, decerto; mas é o Ocidente que se tem em mente, e é neste que os russos, afro-asiáticos e alguns outros desgarrados malham o seu gládio sem mercê. Serra Leoa e Argélia pediram para se juntar ao coro geral; e Uganda, Nigéria e Mali defenderam que no texto a aprovar pelo Conselho fosse inscrita uma verdadeira declaração de guerra à África do Sul, à Rodésia e a Portugal em Moçambique. E parece que se encaminha para a Beira mais um petroleiro. Ora bem: os petroleiros são estrangeiros, navegam sob bandeira estrangeira, o petróleo não é de procedência portuguesa mas estrangeira, são estrangeiros os capitais envolvidos e os bancos que os movimentam, destina-se o combustível a firmas estrangeiras - mas os culpados somos nós. Realmente, a sinceridade do mundo é - admirável. Mas sinto-me preocupadíssimo. Teremos a vontade que baste para usar a força que possuímos? Como se portará a África do Sul? Se Pretória nos faltar, então melhor será fazer as malas; mas também as deve fazer a África do Sul, porque a sua hora chegará a curto prazo. Encontro Salazar muito sereno, muito firme: e disposto a ir às últimas consequências.

Lisboa, 10 de Abril - Domingo de Páscoa. Telefona-me Salazar: que se passou no Conselho de Segurança em Nova Iorque? Resumi-lhe os últimos telegramas, e combinámos uma reunião para as sete da tarde com Silva Cunha e Jardim. Este lançou uma solução para a crise de modo a salvar a face de todos: levar Smith a dizer que não precisa do combustível do petroleiro, pelo que dispensa este, que assim pode abandonar a Beira. Silva Cunha aplaudiu. E Salazar concordou. Jardim partirá imediatamente para Salisbury para persuadir Smith. Ainda que este concorde, teria sido preferível evitar este episódio: vamos exibir uma prova de fraqueza. Quanto a Salazar, fez uma retirada estratégica: é uma expressão do seu realismo. Parece que há em Salazar uma tendência inata que o leva a não ver o mal, a não acreditar no pior, a não querer prever actos imorais ou torpes de outros. Lembro-me de que, perante os preparativos da agressão contra Goa, Salazar nunca acreditou que Nehru avançasse: só viu essa realidade dois ou três dias antes de o facto se produzir. E em princípio Salazar tinha razão: na lógica pacifista de Nehru, foi um erro a anexação violenta de Goa, como aliás o admitiu depois».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se - Diário: 1960-1968»).


«O que se poderia pretender das forças terrestres e navais que constituíam a guarnição militar do Estado da Índia era, não uma vitória - impossível dada a desproporção de meios -, mas sim uma resistência brilhante, a todo o custo, que permitisse o tempo necessário - oito dias segundo Salazar - a uma actuação política e diplomática a nível internacional com êxito, ou, falhada esta, pelo menos, honrasse e ilustrasse as Forças Armadas Portuguesas.

A verdade, porém, é que aquela guarnição militar não estava em condições de tal resistência. E isto por diversas razões.

Primeiro, porque as regras, que tinham presidido à reconstrução financeira do País, criaram a psicose de estrita economia, que se mantinha nos anos 50, época onde já não era generalizadamente indispensável e, pelo contrário, era, em não poucos casos, prejudicial. Por esta razão, as forças militares da Índia Portuguesa nunca foram dotadas financeiramente por forma bastante e pretendia-se ainda diminuir tal apoio financeiro. Mais de uma vez, o Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, disse ao Subsecretário da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, - que de resto nada tinha directamente com a defesa da Índia Portuguesa por nela não participar a Força Aérea - não poder o País suportar continuamente o encargo de cerca de 240 000 contos anuais, então verificado com aquelas forças, e que se tornara necessário reduzir esse encargo para a ordem dos 100 000 contos anuais, nível que poderia suportar-se indefinidamente.

Segundo, porque as mesmas forças estavam assombrosamente mal equipadas. Como exemplos, podem referir-se os seguintes, bem característicos: a maioria dos postos rádio das comunicações militares não funcionava por falta de pilhas e outras razões; as munições de armas ligeiras, demasiado velhas, falhavam frequentemente, o que tornava precaríssimo o tiro das espingardas e fazia encravar constantemente as metralhadoras; as basookas, tão necessárias face aos carros indianos, não tinham munições; para a artilharia anti-aérea, igualmente muito necessária face à aviação indiana, não havia pessoal que a soubesse manejar. Mas, pior ainda: quando, já em vésperas da invasão, foram finalmente enviadas munições para as basookas e os militares locais se precipitaram para o avião que as transportava ou devia transportar, encontraram, espantosa e misteriosamente, em lugar daquelas desejadas munições, chouriços; também, quando, na mesma ocasião, a Força Aérea foi encarregada de transportar o pessoal para a artilharia anti-aérea, o que fez já com grandes dificuldades de passagem no Paquistão, constatou-se, após a chegada do pessoal a Goa, que, por engano incrível e não menos misterioso, este pessoal não sabia manejar o tipo de artilharia anti-aérea ali existente.

Terceiro, porque, como era de sobejo conhecido no meio militar, as principais figuras do Alto-Comando, incluído o Estado-Maior das forças em causa, poderiam ter e talvez tivessem outras grandes qualidades, mas não eram militares valorosos.

Nestes termos, o conjunto da guarnição do Estado da Índia não poderia estar e não estava, como se referiu, minimamente preparado para uma resistência brilhante, a todo o custo, que honrasse e ilustrasse. A sua capacidade de combate avizinhava-se do zero. Em verdade, sentia-se abandonada pela Metrópole e admitia que esta fazia "bluff" internacionalmente.

Em reunião ministerial, presidida pelo Presidente do Conselho de Ministros e na qual estava presente o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Gomes de Araújo, para análise do problema militar da Índia Portuguesa, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, terminando a sua intervenção sobre o assunto, afirmou, com ênfase, que as tropas portuguesas da Índia não possuíam condições mínimas para se baterem. Ninguém contestou nem comentou esta afirmação, com excepção de um dos Ministros civis que, um pouco agastado, declarou, julgando resolver a questão, que os militares portugueses se batiam sempre heroicamente, quaisquer que fossem os lugares e as circunstâncias.

Assim, a derradeira mensagem de Salazar, de 14 de Dezembro de 1961, enviada ao General Vassalo e Silva, apelando a uma luta até à morte, teve a falha, de resto inexplicável, de o Presidente do Conselho, ou, pelo menos, o seu principal conselheiro militar, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Gomes de Araújo, não poder deixar de saber que ela cairia totalmente em falso, sendo em absoluto inexequível. Quando o Ministro de Estado, Corrêa de Oliveira, pouco antes ou pouco depois da expedição de tal mensagem, mostrou cópia ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, este considerou tratar-se de uma mensagem certamente muito nobre, mas sem qualquer sentido realista, pois que praticamente ninguém estava em condições de se bater e ninguém se bateria.

A guarnição militar do Estado da Índia rendeu-se, no dia 18/19 de Dezembro de 1961, por forma militarmente indecorosa, como, em face do exposto, era previsível. [Em cerca de 3000 homens, houve duas excepções conhecidas: o Primeiro-Tenente Oliveira e Carmo e o Alferes Santiago de Carvalho, que se bateram e morreram heroicamente].

Um inquérito foi instaurado e levado a efeito por uma comissão composta por oficiais-generais. As suas conclusões foram apresentadas em Conselho de Ministros, pelo já Ministro da Defesa Nacional, Gomes de Araújo, e delas resultou a punição dos principais chefes da mesma guarnição.

Contudo, os responsáveis maiores, aqueles que não conferiram à guarnição militar do Estado da Índia as condições qualitativas minimamente necessárias a um combate digno, foram, sem dúvida, as Autoridades Metropolitanas. É um facto indiscutível e os exemplos que se citaram evidenciam-no suficientemente.

Há que admitir que o Presidente Salazar que então acumulava com o cargo de Ministro da Defesa Nacional, não conhecesse tudo o que em verdade se passava relativamente à guarnição militar da Índia Portuguesa, e mesmo que, apesar da intervenção em reunião ministerial do Subsecretário de Estado da Aeronáutica atrás citada, muito lhe fosse escondido. Mas, o General Gomes de Araújo, Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, primeira Autoridade Militar Nacional, nos meses que precederam e durante o desastre da Índia Portuguesa, não podia deixar de estar no pleno conhecimento de toda a realidade.

E era sua indeclinável obrigação moral propor a Salazar um inquérito às Autoridades Militares Metropolitanas, inquérito a que ele próprio deveria submeter-se e fazer submeter outras entidades.

Só assim, se poderia fazer justiça completa e eliminadora do opróbio que incidiu sobre as Forças Armadas Portuguesas.

Mas não teve lugar inquérito algum sobre tais Autoridades e, pelo contrário, Gomes de Araújo foi mesmo nomeado Ministro da Defesa Nacional, substituindo Salazar. [O Subsecretário de Estado da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, foi consultado, em Novembro de 1962, sobre esta nomeação, pelo Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, tendo-se abstido, o que equivalia a uma não concordância]. Foi nesta qualidade que, como se disse, propôs em Conselho de Ministros, a punição dos principais chefes da guarnição militar do Estado da Índia».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).







«Lisboa, 14 de Abril - Pela tarde vem Duncan Sandys. Não nos entendemos por aí além. Ross acompanhava-o. Estava pálido e claramente embaraçado. Pediu constrangido desculpa pelo que se passou com Walston: haver convocado o Conselho de Segurança enquanto decorriam conversas, em Lisboa, e sem nos prevenir. Pelo cair da noite, Ross telefona-me ansioso: está de posse de uma mensagem pessoal de Wilson para Salazar e quer entregá-la com urgência: que fazer? Digo-lhe que a entregue na residência do chefe do governo: alguém ali estaria para a receber.

Lisboa, 15 de Abril - Telefona-me Salazar pelas 10 horas e pede-me que passe por sua casa pelas 11 horas para se ler em comum a mensagem de Wilson. Lemo-la e relemo-la. É revoltante de sofisma, de injúria à inteligência; e é ameaçadora. Fala em tudo que se sabe não ser exacto: paz e estabilidade em África; governo da maioria; defesa dos interesses portugueses; etc. Salazar ficou sempre muito calmo, e pediu-me para preparar um projecto de resposta - "muito fria". À noite, nova reunião, agora com Silva Cunha também. Enquanto se trocam impressões, chega-me do ministério um telegrama recebido de Salisbury: Smith anunciou em público que prescindia do combustível carregado no petroleiro acostado na Beira. Um alívio.

Lisboa, 18 de Abril - Pediu para me ver com urgência o embaixador da África do Sul. Mostrou-me uma carta de Verwoerd para Wilson: aquele diz a este que a África do Sul irá para a guerra se a Grã-Bretanha tentar destruir Smith pela força. Afeiam-se as coisas. Esperemos que em Londres prevaleça o bom-senso.

Lisboa, 20 de Abril - De Londres, Rocheta informa que nas últimas 48 horas numerosos tanques foram embarcados em Portsmouth e Southhampton, como nunca se havia visto depois de Suez: e que Wilson estaria à procura de um motivo de disputa com Portugal para ocupar a Beira, e desta base esmagar a Rodésia. Wilson parece ser um extremista e radical que, no fundo, é muito mais imperialista do que os conservadores; e, como não sente limitações morais, nem tem princípios inibidores, é muito mais implacável e brutal do que um clássico vitoriano. Salazar não tem dúvidas de que a Inglaterra se propõe atacar a Beira, e em futuro breve. Vamos praticar diligências em Washington, Paris, Rio e Pretória. Se nós conseguíssemos montar na Beira uma operação militar de grande estilo, em que a Inglaterra sairia decerto vencedora mas apenas depois de arranhar muito a garganta e a pele, estou seguro de que Londres recuaria.

Lisboa, 25 de Abril - Inaugurada na Sociedade de Geografia, à noite, a Semana do Ultramar. Através de falas e discursos, só pensei numa coisa: no silêncio equívoco de ingleses e americanos quanto à Rodésia. Podem produzir-se acontecimentos de gravidade. E o país encontra-se na maior indiferença. Não me ocorre nada que se deva fazer. E bater-nos-emos? Salazar parece confiar num milagre, mas eu não vejo como este se possa dar. É verdade que os milagres se caracterizam por não se saber como se possam produzir - e produzem-se. E depois - tenho sempre a sensação de que somos um povo subserviente, amedrontado, curvado perante os outros com a espinha a tremer espavorida ao menor bater de pé de uma qualquer potência, ao menor bocejo abespinhado de um qualquer governo estrangeiro.

Lisboa, 30 de Abril - Em carta pessoal, Salazar praticamente formula a Verwoerd esta pergunta: se a Rodésia e Moçambique forem atacados, a África do Sul mete-se no barulho para defesa daqueles, ou deixa-os ser batidos se ela própria não for atacada?

(...) Lisboa, 6 de Maio - À noite, Silva Cunha telefona-me para me dizer que, segundo notícia difundida pelo Lupi, os ingleses haviam transferido os gurkas para a África Oriental, e que eram de esperar operações no decurso da próxima semana. Perante notícias destas, já estou embotado, e fico igual. Quanto a sermos ou não envolvidos, e até directamente atacados, é uma interrogação a que ainda não é possível responder; mas no meu espírito não vejo como as novas forças imperiais podem deixar de, mais tarde ou mais cedo, tentar a destruição de Moçambique. Porque na lógica de qualquer política imperial em África, não pode aceitar-se Portugal em Moçambique: isso impossibilitaria o livre domínio dos três países interiores (Zâmbia, Malawi, Rodésia). Pela mesma razão por que estes sentem a necessidade de se encostar a nós e de procurar apoio junto de nós, amanhã procurarão apoio junto de Moçambique ou de quem dominar um Moçambique supostamente independente. Outra solução imaginável: a partilha de Moçambique por aqueles três países.

Lisboa, 10 de Maio - Mais notícias de Londres: foram transferidos para outras unidades os soldados e oficiais que, na brigada de reserva estratégica, tenham família ou ligações com a Rodésia; e a brigada foi posta em estado de alerta a 24 horas quando normalmente é de 7 dias. Se isto não preludia um ataque à Rodésia (com envolvimento de Moçambique), então devo estar a padecer de alucinações. Jantar em casa de Alexandre Pinto Basto: estão vários homens de consequência: ninguém acredita na gravidade da situação. Também - não lhes disse metade do que sabia.


(...) Lisboa, 16 de Maio - Chegou resposta de Verwoerd. Entende, em suma, que a Inglaterra deve ter desistido de usar a força contra a Rodésia. Será assim?

Lisboa, 21 de Maio - Entretanto, em Nova Iorque, mais Conselho de Segurança sobre a Rodésia. Afro-asiáticos batem na Inglaterra como ferreiro em brasa - e já perceberam que não somos nós quem sustenta a Rodésia. Como vai tudo isto terminar?


Ian Douglas Smith



Tropas rodesianas na fronteira de Moçambique (1974).




Salisbúria, 1997



(...) Lisboa, 18 de Outubro - Veio conversar Julian Amery, antigo ministro no governo conservador de MacMillan. Não falou de nada, salvo de África, Rodésia e política britânica. Pontos a reter: atribui a política britânica, em grande parte, à pressão americana, e disse que contra dinheiro os americanos conseguem muita coisa na Inglaterra (por exemplo, a eliminação da indústria aeronáutica britânica); mostrou-se apavorado com o abandono de Aden pelo governo de Wilson e pediu-me que tentássemos impressionar os americanos no sentido de estes não deixarem os ingleses sair daquele porto arábico, e isso porque a partida destes significará a entrega do Mar Vermelho e de toda a costa oriental de África aos comunistas; criticou a política de Londres na Rodésia e na África do Sul e, quanto a esta última, confirmou a importância vital que representa para a economia britânica; finalmente, mostrou-se muito agradado e como que tranquilizado quando lhe afirmei a minha convicção de que, para além de Salazar, se manteria a mesma política africana, e Amery pediu que não mudássemos de orientação. Depois, no decurso de uma conversa em que os temas surgiram ao acaso, Amery prestou ainda algumas informações de registar. Disse que Michel Debré, pouco antes de ser nomeado Primeiro-Ministro, lhe falara sobre África e lhe perguntara, a ele, Amery, se os ingleses abandonariam ou não aquele continente, tendo Debré afirmado que, se os ingleses ficassem também ficariam os franceses, e que, se partissem, também os franceses partiriam. Amery replicara que não podia responder a tão magna questão, e que esta deveria ser posta a MacMillan. Logo que Debré foi designado Primeiro-Ministro, avistou-se com MacMillan. Este indicou que, não podendo a Inglaterra manter em África as centenas de milhar de soldados necessários para garantir a ordem, resolvera abandonar e enveredar pelo caminho da descolonização. Debré disse que a França faria então o mesmo. Eu fiquei com dúvidas de que tudo se haja passado com esta simplicidade. Mas Amery (que fala lindamente francês) afirma que se encontrava na sala onde se realizou a entrevista Debré-MacMillan, e que assistiu a tudo, havendo mesmo ocasionalmente feito de intérprete. Assim terá sido, pois.

(...) Lisboa, 25 de Outubro - No Forte do Estoril, com Gomes de Araújo, conversámos a três. Tema inevitável: África e Tschombé. Araújo referiu o resultado da entrevista que o oficial que mandámos a Madrid teve com Tschombé. Para além dos aspectos de organização material, há que reter isto: a Rodésia parece disposta a cooperar, a África do Sul declara-se totalmente afastada. Ora, quanto a esta última, estamos perante uma profunda e grave mudança de orientação política. Do isolamento, a África do Sul passa à intervenção, por verificar que para manter a guerra afastada das suas fronteiras lhe convinha ajudar os que contribuíssem para tanto; e agora parece regressar ao isolamento. Porquê? Pressão dos americanos? Ou dos Ingleses? Arranjos ou combinações com ambos? À nossa custa? Contra nós? Há que tentar elucidar tudo isto. Salazar lançou-se numa exposição sobre o momento que se atravessa. Nunca o vi tão pessimista. De forma geral, receia que não tenhamos recursos - e sobretudo vontade - para nos aguentarmos. Teme que a opinião pública da metrópole, se se convencer de que o Ultramar absorve os recursos para o seu desenvolvimento, se desinteresse e até repudie a política ultramarina. Não acredita que os Estados Unidos alguma vez possam mudar de política. Mas apesar de tudo acha que não podemos ceder. E afirmou: "Ceder é perder. Formula-se uma política e há que executá-la rigidamente. Só é possível ceder e ter flexibilidade depois da política estar vitoriosa. Antes disso, é perder por completo". É curioso, é dramático: tenho a sensação de que, em Portugal e com os portugueses, o tempo corre contra a política actual, porque nos podem falecer a força de vontade e a persistência; no mundo, o tempo corre a nosso favor.

(...) Lisboa, 21 de Novembro - De tarde, visita do embaixador da África do Sul. Informa-me de que o Primeiro-Ministro Vorster fizera um novo e urgente apelo a Wilson e a Smith para chegarem a acordo. Ao mesmo tempo, Schoeman, ministro dos Transportes, pronunciou no Transvaal um discurso áspero avisando a Inglaterra de que, se hostilizasse a África do Sul, o facto constituiria um golpe fatal para a economia do Reino Unido. Tanto o embaixador como eu concordámos em que, para muito breve, deveriam dar-se acontecimentos graves que nos afectariam. Eu disse ao embaixador que não me surpreenderia se surgissem dentro de uns quinze dias.

Leio o relatório da reunião da NATO acerca de África. O delegado americano fez esta pergunta espantosa ao delegado português: por que não dividimos Angola em vários territórios e Estados independentes? É que assim dominaríamos depois tudo mais facilmente. Realmente!

Lisboa, 22 de Novembro - Recebo um grupo de senadores americanos, acompanhados pelo embaixador. No fim da conversa, em que embora correcto fui rudemente franco, um dos senadores abraçou-me e disse: "You are a good man, and we better have you on our side than against us". Santa inocência, como diria o Malhadinhas.


Lisboa, 29 de Novembro - Veio o embaixador de Inglaterra pedir que usássemos a nossa influência junto de Smith para que este aceite o ponto de vista de Londres. Disse-lhe que não sabia bem qual era o ponto de vista de Londres, e que assim não podíamos fazer nada. Aliás, era assunto que não nos dizia respeito, e em que não queríamos intervir; e não desejaríamos ser arrastados para o torvelinho. Depois falámos de muita coisa - e concluiu-se coisa nenhuma. Quanto à Rodésia, a nossa opinião pública tem-se revelado bem triste e palerminha ao julgar, segundo parece, que actuamos por capricho ou animadversão, apenas para nos entretermos a pregar uma boa peça ao Reino Unido. Muitos pensam que poderíamos fazer um "jeitinho" para comprazer com a nossa "velha aliança", sem entender que a Rodésia desejada por Wilson nos seria profundamente hostil. Aliás, Wilson é mestre em golpes de teatro - e devemos estar em vésperas de mais um.

Lisboa, 30 de Novembro - Harold Wilson vai encontrar-se com Ian Smith: eis o golpe de teatro. Levará a qualquer coisa?

Lisboa, 5 de Dezembro - Pelas duas e meia da madrugada, Salazar telefona-me. Confessou-se muito admirado por eu ainda estar de pé. Relatou-me a conversa de Wilson com o Correia de Oliveira, de momento em Londres por questões da EFTA. Wilson de novo apelou para o governo português no sentido de que interviesse na Rodésia e exercesse pressão sobre Smith para este aceitar o acordo a que se haveria chegado em Gibraltar; e Wilson acrescentou que teria de recorrer à ONU, com inevitável confrontação com a África do Sul e Portugal, se Smith recuasse. Depois, Salazar continuou a conversar, sobre isto e aquilo, com ar repousado e inteiramente lúcido, até cerca das 4 horas da manhã. Chego ao ministério e expeço para Salisbury um telegrama dando conta de tudo, mas sem pressão num sentido ou noutro. Aliás, pareceu-me desde logo, que o acordo de Gibraltar equivalia a uma rendição incondicional de Smith. Durante toda a manhã, chegam notícias em catadupa até que ao fim da tarde se soube que o governo rodesiano rejeitara as propostas britânicas. Recebi de Salisbury o texto completo das mesmas: de facto, constituem um documento para liquidar Smith ou criar um pretexto para de novo ir perante as Nações Unidas. E vamos assim mais uma vez para o Conselho de Segurança, que mais uma vez se entreterá a debicar em Portugal e na África do Sul.



Sede das Nações Unidas em Nova Iorque




(...) Lisboa, 28 de Junho [de 1967] - Jantar no Ritz. Todos os grandes nomes da banca, da finança, da indústria e da economia portuguesa. Durante e depois do jantar, debate generalizado. Pontos que suscitaram interesse: Mercado Comum, Médio Oriente, política russa. Poucas perguntas sobre a política ultramarina. Falei da Rodésia, da nossa suposta falta de maleabilidade, de flexibilidade, e no falsamente alegado isolamento externo. Para alguns, segundo me confessaram, os horizontes passaram a ser outros.

(...) Lisboa, 6 de Julho - O inferno em África! Mais uma revolta no Catanga. Mobutu decreta mobilização geral; acusa-nos de armarmos e treinarmos mercenários em Angola; pede a convocação urgente do Conselho de Segurança. Segundo a nossa polícia, por detrás da operação estão a África do Sul e a Rodésia. Entretanto, Tschombé continua preso em Argel, e seu irmão Daniel chega a Lisboa para nos solicitar armas e munições. Deve ser grave a situação: Dean Rusk, que estava para vir a Lisboa no dia 13, adiou a visita. Por que razão não nos teriam prevenido a África do Sul e a Rodésia desta vez? Quando nós estávamos dipostos a ir para a frente no Congo, recuaram e deixaram-nos sós; agora, ao que parece, metem-se na aventura e põe-nos de parte. Há aqui qualquer coisa que ainda não descobri. E jantar no Tavares com Ulisses Cortez e Soares da Fonseca. Cada um procura apurar o que os outros dois sabem, e ocultar-lhes o que sabe.

(...) Lisboa, 6 de Setembro - Notícias de mais uma origem não deixam dúvidas de que o Reino Unido se prepara para provocar uma nova reunião do Conselho de Segurança. Harold Wilson deve querer apaziguar a irrequieta ala esquerda trabalhista, evitar que o assunto Rodésia seja debatido por toda a irresponsável Assembleia Geral da ONU, e aproveitar o facto de a presidência ser exercida, durante este mês, pela delegação indiana, que se prestará às manobras britânicas. Por último, Wilson deve pretender, para embaraçar os conservadores, demonstrar a falência da missão de Lord Alport. Chegam-nos informações de que a Inglaterra está a reunir novos meios navais no canal de Moçambique, para um bloqueio completo. Falo no assunto a Salazar. Sinto-o imperturbável, e acima dos acontecimentos: "Não nos precipitemos, não nos alarmemos, e havemos de vencer tudo isso". Está sobejamente olímpico, e observo que consegue inspirar em seu torno uma grande calma. Salazar comenta: "É minha convicção que a Inglaterra acabará por reduzir a zero as suas relações com Portugal". E conclui: "Como pode Wilson bloquear Lourenço Marques e ao mesmo tempo pretender tomar para as firmas inglesas a construção de Cabora-Bassa?"

(...) Lisboa, 20 de Outubro - Nova e extensa prática com Arthur Levin, o inglês que é agente secreto do Presidente Kaunda. Trata-se de um emissário duplo, como é óbvio, e mesmo triplo, pois vai comunicar ao governo britânico quanto eu lhe disser. Aliás, não mo ocultou. Depreendi da conversa de hoje que se prepara a Zâmbia para um entendimento connosco: Kaunda quer uma nova ligação ferroviária com Angola que ultrapasse Catanga, pretende uma ligação aérea pela TAP. Quanto à Rodésia, diz Levin: é a Índia, mais do que os africanos, que está a fazer pressão junto da Inglaterra para que esta busque novas sanções contra Salisbury, e mais drásticas, e para que se aperte o bloqueio a Lourenço Marques, até ao uso da força. Não cabe dúvida, se alguma subsistisse: tem matizes sinistras a conjuntura internacional que nos rodeia: e quantos tão levianamente discorrem na matéria não se dão conta de como estão afastados da realidade, e são simplistas.

(...) Lisboa, 30 de Março [de 1968] - (...) Recebo o embaixador de Inglaterra: vem dizer-me que o Reino Unido não deseja uma "confrontação com a África do Sul e Portugal a propósito da Rodésia". Entretanto, crise política na Grã-Bretanha: na sequência de derrotas trabalhistas em quatro eleições parciais, há quem peça a cabeça de Harold Wilson.

(...) Lisboa, 6 de Abril - Expedi instruções ao nosso homem em Pretória para sondar o governo sul-africano quanto à sua atitude: se forem decretadas novas sanções contra a Rodésia? se for ampliado a Lourenço Marques o bloqueio? se forem votadas sanções totais contra Portugal e a África do Sul? ou só parciais? Reacção do Primeiro-ministro Vorster: não acatarão nada, não cumprirão nada, não aplicarão nada, e ajudar-nos-ão em tudo que necessitarmos. Em particular, afirmam haver já dito aos ingleses que considerariam o bloqueio a Lourenço Marques como acto hostil à África do Sul.

(...) Lisboa, 16 de Junho - Colóquio no Instituto de Altos Estudos Militares. Presentes o Luz Cunha e o João Pinheiro. Assuntos tratados: integração europeia; Vietname; NATO e sua revisão; Rodésia e a problemática da África Austral; investimentos americanos em Cabinda; transportes para a Zâmbia e em toda a África Meridional; situação na Guiné. Ambiente escorreito, atmosfera responsável. Queixavam-se os generais de que os responsáveis por outros sectores da vida do Estado não se deslocam ao Instituto para sessões semelhantes. Particularmente a Economia».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se - Diário: 1960-1968»).



Ian Smith, em Lisboa, com Salazar, antes da proclamação da Independência da Rodésia (5 de Setembro de 1964).




Entradas de leão


O seu pai, ido da Escócia, chegou à Rodésia em 1896 e ele nasceu lá, em 1919, sentindo a terra como sua. Serviu como piloto na Royal Air Force britânica e conserva uma cicatriz de ferimentos em combate. Em 1962 foi um dos fundadores da Rhodesian Front, partido vencedor das eleições. Ganhou a liderança partidária e tornou-se primeiro-ministro em 1964. Substituiu Winston Field, que mostrou relutância em demarcar-se dos ingleses e cortar o cordão umbilical. Ele encarregou-se da tarefa: em 11 de Novembro de 1965, num gesto espectacular que abalou a África e o Mundo, proclamou a independência unilateral da Rodésia (UDI). Reagiram o Governo de Harold Wilson com um bloqueio de combustíveis e as Nações Unidas com pesadas sanções económicas, cujo efeito Portugal ajudou a esbater. Ian Douglas Smith, um rebelde incontrolável, gostou de Salazar e da sua desconfiança em relação à Inglaterra, ficou inquieto com a progressão da guerrilha na zona fronteiriça e tentou convencer Caetano a uma cooperação militar mais acentuada, enviou repetidamente grupos de tropas eficazes a Moçambique para atacar os guerrilheiros da Frelimo e do Zimbabwe African National Liberation Army (ZANLA).


Salazar aconselhou Ian Smith a não confiar na Inglaterra, que já tinha traído Portugal na questão de Goa. Os seus olhos brilharam quando Ian Smith lhe disse que a Rodésia proclamaria a independência se Londres não respeitassse os acordos. Depois, Portugal ajudou a Rodésia a furar o bloqueio imposto pelo trabalhista Harold Wilson.

O Governo português foi muito favorável à Rodésia e à nossa causa, devido principalmente a Moçambique. Pouco tempo depois de me tornar primeiro-ministro, em 1964, fiz uma viagem a Inglaterra para falar com o Governo britânico. Fui também nessa altura a Lisboa e tive um encontro com Salazar. Devo dizer que Salazar foi um dos homens mais impressionantes que eu conheci. Gostei do homem, da sua calma e da sua simplicidade. Não vi guardas, não vi armas, não vim um grande palácio. Íamos por uma rua, de repente parava-se em frente a um pequeno portão de uma casa parecida com muitas outras casas das redondezas. Havia uma sentinela no portão, mas parecia estar sobretudo a controlar as coisas e estava desarmada. Estou a referir-me ao local onde salazar vivia, suponho que não era um palácio, suponho que era um antigo convento. Havia lá algumas raparigas que o ajudavam, que olhavam por ele e o alimentavam. Eu estava muito impressionado com a dignidade daquele homem, a sua presença calma, os seus olhos cristalinos, os seus cabelos brancos. Sabia que ele, nos anos 30, não tinha querido ser primeiro-ministro de Portugal mas foi forçado a aceitar a tarefa porque havia problemas graves no vosso país. Salazar era professor na universidade e houve um apelo das pessoas em Portugal, que lhe disseram que o queriam no Governo para ele repor um pouco a ordem, uma vez que era muito respeitado. E foi nestas condições que Salazar formou governo.

Tive com ele uma longa conversa, de grande interesse para a Rodésia, uma vez que Moçambique estava ligado a nós. Era óbvio para mim que ele não confiava nos ingleses. Aliás, ele disse-me isso. Os ingleses já uma vez tinham deixado Portugal ficar mal no caso de Goa. Tivemos então uma longa conversa antibritânica. Ele ficou satisfeito por ver a minha força, e disse-mo. Perguntou-me: «E se no final os ingleses continuarem a ser desonestos consigo e não honrarem o acordo que fizerem?» E eu disse: «Nesse caso, conquistaremos a nossa independência». Reparei que esta resposta lhe deu grande satisfação e que os olhos dele brilharam. Depois, à saída, Salazar apertou-me a mão de forma calorosa e disse-me: «Os ingleses vão continuar a decepcioná-lo. Tenha cuidado com os ingleses. Eles estão apenas a pensar nos seus próprios interesses, nunca pensarão nos interesses da Rodésia». Nessa altura tive também um encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira. Era também um homem impressionante, muito inteligente e que dominava perfeitamente a língua inglesa. A mulher de Franco Nogueira, uma sino-portuguesa charmosa, falava também inglês fluentemente.

Bem, depois chegou a altura em que tivemos que tomar o destino da Rodésia nas nossas mãos. Mas certificámo-nos de que não teríamos problemas com os portugueses. Portugal ajudou-nos, forneceu-nos a ajuda que pedimos, deram-nos acesso à Beira e a Lourenço Marques. Tiny Rowland tinha o pipe-line da Beira e queria mantê-lo a funcionar. Quase que conseguimos descarregar na Beira um navio petroleiro, o Joanna V, com crude. Só que depois eram tantos os problemas que Portugal ia ter com o resto do Mundo por causa disso que decidimos que havia formas mais fáceis, nomeadamente fazer o suprimento através de Lourenço Marques, através da linha de caminho-de-ferro. E isto foi basicamente um esquema organizado por uma companhia petrolífera de Lourenço Marques. Não era eu pessoalmente que tratava do problema do petróleo. Era Charles Coock. Tínhamos um especialista em quebrar sanções e toda uma equipa fantástica a trabalhar nisso. Tínhamos documentos forjados na África do Sul. Forjar, naquele contexto, é uma palavra antipática porque nós estávamos apenas a confirmar o nosso direito à livre troca. De acordo com as Nações Unidas tinham regras para os amigos e regras diferentes para nós. Tinham regras para os países fortes e outras regras para os países fracos. Como nós éramos um pequeno país, eles sabiam que podiam fazer o que quisessem connosco, para nos forçarem e empurrarem. Eu costumava dizer frequentemente às pessoas na Grã-Bretanha: «Porque é que vocês não fazem à Rússia o mesmo que nos estão a fazer a nós?».



Kaúlza de Arriaga



Com P. W. Botha, ministro da Defesa da África do Sul, Smith partilhou inquietações sobre a forma como as Forças Armadas portuguesas estavam a conduzir a guerra. Salisbúria queria aumentar o grau de cooperação militar, Lisboa via desvantagens numa aliança aberta. Smith visitou Moçambique, guiado por Kaúlza, e mais tarde tentou convencer Caetano da ineficácia militar dos portugueses.

Havia terroristas a operar contra a Rodésia a partir de Moçambique. Deixe-me só notar que não foi P. W. Botha que me instigou a essa posição. Eu apenas quis falar com ele para ver como é que as coisas estavam e para me certificar de que a sua posição se mantinha forte. Nós não estávamos desesperados. Tínhamos ali um problema com os terroristas na fronteira com Moçambique, como é evidente, mas conseguíamos contê-lo. As forças militares e de segurança da Rodésia eram eficientes, tremendamente eficientes. Nós tínhamos uma elevada killing rate, matávamos muito e muito rapidamente. Costumávamos matar terroristas a uma média de um em dez. Não havia apenas uma força de segurança na Rodésia, tínhamos a SA5, os Selous Scouts, helicópteros, navios armados, a RAO. Havia negros a trabalhar para nós em Moçambique e foi por causa disso que criámos os escuteiros civis, os Selous Scouts, para podermos agir dentro de Moçambique. Eu promovi pessoalmente a criação de escuteiros civis porque achei que tínhamos que fazer o que eles depois fizeram e bem. Caetano era um homem muito razoável e demo-nos muito bem. Não houve qualquer fricção, nem sequer diferenças de opinião. Era um homem sossegado e pensei que podíamos trabalhar em conjunto. Não havia problemas demasiado sérios porque nós tínhamos o controlo da situação no que se referia à segurança.

Eu só estava um pouco preocupado porque os portugueses não tinham tanto controlo como deviam. E foi por causa disso que eu me encontrei com o general Arriaga em Moçambique. Os meus homens da segurança disseram que estava tudo bem, que as coisas não eram tão boas como deviam nem como nós queríamos, mas que conseguiam viver com aquela situação em Moçambique. Os portugueses tinham construído os aldeamentos estratégicos. Eu pensei que, eventualmente, os terroristas se iam cansar. De acordo com as minhas informações, sempre tivemos excelentes comunicações e entendimento com os comandantes militares em Moçambique. Eu apenas estava um pouco preocupado porque a situação não era tão boa como deveria ser em Moçambique, mas alguns dos meus conselheiros diziam que era assim-assim e outros diziam que não era má de todo. Eu tinha acesso a pontos de vista diferentes. Mas nenhum deles era extremo. Talvez tivesse havido diferenças de opinião entre nós e os portugueses, mas só isso. De formas diferentes, as forças portuguesas costumavam vir aqui e falar connosco. Também operavam em conjunto connosco. Os meus homens costumavam dizer-me que os portugueses vinham para Moçambique por pouco tempo, a ideia deles era voltar para Portugal um dia. Portanto, havia uma grande diferença na psicologia dos dois povos. Eu sabia isso e aceitávamos isso, mas o nosso caso era diferente. Esta era a nossa terra, não tínhamos outra. Era por isso que a nossa gente era tão eficiente. Alguns portugueses costumavam encolher os ombros e dizer: «Nunca conseguiremos que os militares portugueses se comportem como os militares rodesianos!».

Arriaga veio aqui, a Salisbúria. Eu também me encontrei com ele em Cahora Bassa, com ele e com os generais que lá estavam. Passámos lá um dia inteiro, estivemos com ele, almoçámos. Ele explicou-me a sua ideia e mostrou tudo nos mapas, falou-me dos aldeamentos que estavam a organizar. Os meus homens da segurança disseram-me que os portugueses nunca conseguiriam controlar toda a área como nós controlávamos a Rodésia, porque era uma área muito vasta e porque a atitude dos militares portugueses era completamente diferente da dos rodesianos. Se houvesse terrorismo na Ródésia, os rodesianos não dormiam até acabar com ele. Nós tínhamos muita prática de matar terroristas e éramos muito bem sucedidos. Claro que os portugueses não podiam dominar toda a situação em Moçambique, visto ser uma área tão vasta. Alguns homens dos meus serviços pensavam que Arriaga estava a fazer um trabalho razoavelmente bom, dadas as circunstâncias. Nunca seria o mesmo se fossem os rodesianos a agir, mas os homens do meu sistema de segurança achavam que, se os portugueses conseguissem ao menos segurar a situação, e enquanto tivéssemos o apoio da África do Sul, poderíamos destruir as bases terroristas. Arriaga autorizava as forças de segurança da Rodésia a entrar em Moçambique, para operações que os portugueses sozinhos não conseguiam fazer. Houve bases da Frelimo em Moçambique que foram destruídas em conjunto. Trabalhámos com os portugueses e, em muitas ocasiões, entrámos bem no interior de Moçambique, sempre com a cooperação e concordância dos portugueses. Os portugueses tinham um posto do Exército aqui, com o qual estávamos em constante comunicação. Quando havia necessidade de entrar em Moçambique entrávamos, mas informávamos sempre os portugueses.

A tragédia só aconteceu com a mudança da política em Portugal. Achei que a mudança de regime em Portugal era uma tragédia para nós, porque sabíamos que ia haver uma mudança tremenda. Aquele tipo de monóculo - como é que é o nome dele? -, Spínola, eu recebi logo relatórios que diziam que ele era uma pessoa péssima e que ia trair aquilo que Portugal defendeu e aquilo em que Portugal acreditou. E o que ele ia fazer era tirar os portugueses de África, rapidamente. Antes da mudança de regime em Portugal, soubemos que havia pessoas em Moçambique, como Arriaga e Jardim, que queriam trabalhar connosco para tomar conta de Moçambique. Não nos pediram ajuda, porque não chegou a haver uma situação de isso vir a acontecer. Mas se tivessem pedido ajuda, teríamos respondido de forma positiva. Tudo o que eu soube foi que a nossa gente falou com os portugueses, com pessoas como Arriaga e Jardim. É verdade que houve algumas situações, mesmo antes dos problemas em Portugal, houve planos feitos e poderia ter chegado a altura em que teríamos que nos mover rapidamente. Eu sabia que este tipo de conversações estava a ter lugar e incentivei a que as conversas continuassem. Quem sabe o que poderia acontecer na Europa? As coisas aconteciam por todo o mundo. Isto deu-se antes do Spínola ascender ao poder e também depois. Por alguma razão, as conversas depois foram interrompidas. Mesmo antes de falar com o P. W. Botha, eu falei com o John Vorster sobre este assunto e ele disse-me que a independência de Moçambique seria uma boa ideia. Vorster passou aqui uma noite, a caminho de ir encontrar-se com o Banda no Malawi. E mais tarde conversei com Botha sobre a independência de Moçambique. Qualquer pessoa que combatesse os nossos inimigos era nossa amiga. Esse é que é o ponto - eu não vim para aqui, eu nasci aqui. Eu e quatro gerações da minha família. Quando eles vieram, isto era o nosso país. A Grã-Bretanha deu-nos e disse: «Este é o vosso país». Nunca fomos uma colónia. (Testemunho oral de Ian Douglas Smith em Harare - antiga Salisbúria -, a 4 de Outubro de 1994: in José Freire Antunes, A Guerra de África - 1961-1974, Círculo de Leitores, Vol. II, 1995, pp. 601-604).









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