terça-feira, 27 de março de 2012

São Bernardo

Escrito por René Guénon








«Protector dos Templários contra o Papa, protector dos Judeus contra o Povo se mostrou outrossim D. Dinis, que contra o Papa e contra o Povo, como este acabou por dizer, fez tudo quanto quis».

Sampaio Bruno («Os Cavaleiros do Amor»).


«O silêncio de René Guénon sobre tudo quanto se passou em Portugal, depois da destruição na Europa da Ordem da Milícia do Templo, tem surpreendido e perturbado os raros investigadores - como José Luís Conceição Silva - que verificaram a relação directa entre o que ele escreveu no Rei do Mundo e os descobrimentos marítimos dos portugueses.

É inverosímil interpretar esse silêncio como desconhecimento da nossa história num homem tão vasta e profundamente informado.

"Fala-se muito do Preste João na época de São Luís, a propósito das viagens de Carpin e de Rubruquis. O que complica as coisas é que, segundo alguns, teria havido quatro personagens com este título: no Tibete (ou sobre o Pamir), na Mongólia, na Índia e na Etiópia (esta última palavra tem um sentido muito vago); é provável que se trate de diferentes representantes do mesmo poder". Eis um exemplo do que escreve René Guénon. Será possível que o autor destas linhas ignorasse que a viagem de Vasco da Gama tenha tido precisamente por fim o contacto com o Reino do Preste João?

Também Julius Evola, outra grande autoridade no assunto, cala tudo sobre Portugal, embora saiba muito bem que "uma nau com cruz vermelha sobre vela branca é a que recebeu Parsifal e o conduziu para um lugar desconhecido, onde estava o Graal e donde Parsifal não voltou mais". Parece que, com a destruição dos Templários nos começos do século XIV, a cobertura que lhes deu D. Dinis através da Ordem da Milícia de Cristo levasse a concentrarem-se na terra do extremo ocidente europeu os últimos prolongamentos de uma organização que tanto Guénon como Evola consideram depositária da tradição primordial e que tinha "por missão principal assegurar a comunicação entre o Oriente e o Ocidente, comunicação cujo verdadeiro alcance se avalia quando se verifica que o centro do mundo sempre foi descrito, pelo menos no que diz respeito aos tempos 'históricos', como situado no Oriente". Quando seria de esperar uma alusão à Ordem da Milícia de Cristo, René Guénon escreve: "Todavia, depois da destruição do Templo, o Rosacrucianismo, ou aquilo que recebeu este nome a seguir, continuou a assegurar a mesma ligação, embora mais dissimuladamente"».


António Telmo («História Secreta de Portugal»).







«Reparem como o patriotismo de Fernando Pessoa é considerado um aspecto menor do que escreveu. Até Afonso V (Pessoa pensava que até D. João III) Portugal foi regido pelos Rosa-Cruzes; tal é, pelo menos, o ensino da Mensagem. A monarquia, com D. João III, passou para as mãos dos seus inimigos. Há o análogo disto na Europa, com a diferença que, nesta, a mutação dá-se mais cedo, quando aqui reinava D. Dinis. É então que se começa a trabalhar para a implantação do socialismo pela propaganda da noção de igualdade. Levou séculos, mas foi fácil. Bastou fazer passar a inveja por generosidade. O socialismo é, pois, obra dos Rosa-Cruzes. Tornou-se necessário para combater aqueles que se tinham apoderado da monarquia.

Hoje, porém, qualquer tentativa de derrubar os governos socialistas é aproveitada por estes últimos, que aparecem como os verdadeiros representantes da Pátria. Compreende-se assim que o monarquismo de Fernando Pessoa e o republicanismo de Sampaio Bruno sejam a mesma coisa...».


Tomé Natanael («Viagem a Granada»).


«Eu, na verdade, quanto mais longe e mais facilmente me adiantei nos estudos das letras, tanto mais ardentemente a elas me apeguei, e fui seduzido por um tão grande amor por elas que, abandonando aos meus irmãos a pompa da glória militar junto com a herança e a prerrogativa dos primogénitos, renunciei completamente à corte de Marte para ser educado no regaço de Minerva. E, visto que eu preferi as armas dos argumentos dialécticos a todos os ensinamentos da filosofia, troquei as outras armas por essas e antepus os choques das discussões aos troféus das guerras. Por isso, perambulando pelas diversas províncias a travar debates, onde quer que ouvisse dizer que florescesse o estudo dessa arte, tornei-me um émulo dos peripatéticos.

(...) Ora aconteceu que eu me aplicasse, de início, a discorrer sobre o próprio fundamento da nossa fé por meio de analogias propostas pela razão humana, e que eu compusesse para os meus alunos um tratado Sobre a Unidade e a Trindade de Deus. Eles me pediam argumentos humanos e filosóficos, e insistiam mais naqueles que pudessem ser entendidos do que proferidos, dizendo ser supérflua a prolação de palavras sem a compreensão das mesmas, e que não se pode crer naquilo que antes não se entendeu, e que é ridículo alguém pregar aos outros o que nem ele próprio nem aqueles que ensina podem compreender com o intelecto».


Pedro Abelardo («Historia calamitatum»).





SÃO BERNARDO






Entre as grandes figuras da Idade Média há poucas cujo estudo seja mais apropriado do que a de São Bernardo para dissipar certos preconceitos caros ao espírito moderno. Efectivamente, haverá algo mais desconcertante, para esse espírito, do que ver um puro contemplativo, que sempre quis ser assim e continuar a sê-lo, chamado a desempenhar um papel preponderante na condução dos negócios da Igreja e do Estado, e triunfando muitas vezes onde tinha fracassado toda a prudência dos políticos e dos diplomatas de profissão? Haverá algo mais surpreendente, e mesmo mais paradoxal, de acordo com a maneira vulgar de julgar as coisas, do que um místico que só sente desdém por aquilo que ele chama «as argúcias de Platão e as subtilezas de Aristóteles» e, que todavia, vence sem dificuldade os mais subtis dialécticos do seu tempo? Toda a vida de São Bernardo poderia parecer destinada a mostrar, através de um exemplo fulgurante, que existem, para resolver os problemas de ordem intelectual e mesmo de ordem prática, meios totalmente diferentes daqueles que se tornou hábito, desde há muito tempo, considerar como os únicos eficazes, sem dúvida porque eles são os únicos ao alcance de uma sabedoria puramente humana, que nem sequer é a sombra da verdadeira sabedoria. Essa vida aparece, assim, de qualquer modo, como uma refutação antecipada destes erros, aparentemente opostos mas realmente solidários, que são o Nacionalismo e o Pragmatismo; e, ao mesmo tempo, confunde e derruba, para quem as examina imparcialmente, todas as ideias preconcebidas dos historiadores «cientistas» que consideram, com Renan, que a «negação do sobrenatural constitui a própria essência da crítica», o que nós admitimos, aliás, de bom grado, mas porque vemos nessa incompatibilidade o contrário do que eles vêem nela: a condenação da própria «crítica», e não a do sobrenatural. Na verdade, que lições poderiam, na nossa época, ser mais proveitosas do que essas?

Bernardo nasceu em 1090, em Fontaines-lés-Dijon; os seus pais pertenciam à alta nobreza de Borgonha, e se apontamos esse facto é porque nos parece que alguns traços da sua vida e da sua doutrina, de que falaremos seguidamente, podem, até certo ponto, estar ligados a essa origem. Não queremos, somente, dizer que é possível explicar desse modo o ardor por vezes belicoso do seu zelo ou a violência que ele pôs muitas vezes nas polémicas para que foi arrastado, e que era, aliás, meramente superficial, porque a bondade e a doçura constituíam, incontestavelmente, o fundo do seu carácter. Pretendemos, sobretudo, aludir às suas relações com as instituições e o ideal da Cavalaria, aos quais, de resto, se deve sempre dar grande importância caso se queira compreender os acontecimentos e o próprio espírito da Idade Média.

Foi por volta dos seus vinte anos que Bernardo concebeu o projecto de se retirar do mundo; e em pouco tempo conseguiu fazer com que a sua visão fosse partilhada por todos os seus amigos. Nesse primeiro apostolado, a sua força de persuasão era tal, apesar da sua juventude, que brevemente «ele se tornou, diz o seu biógrafo, o terror das mães e das esposas; os seus amigos temiam vê-lo abordar os seus amigos». Há já aí qualquer coisa de extraordinário, e seria seguramente insuficiente invocar o poder do «génio», no sentido profano desta palavra, para explicar uma influência semelhante. Não será melhor reconhecer aí a acção da graça divina que, penetrando de qualquer modo toda a pessoa do apóstolo e irradiando exteriormente pela sua superabundância, se comunicava através dele como por um canal, de acordo com a comparação que ele próprio utilizará, mais tarde, aplicando-a à Santa Virgem, e que se pode também, restringindo mais ou menos o seu alcance, aplicar a todos os santos?

Mosteiro de Alcobaça


É portanto, acompanhado por uma trintena de jovens que Bernardo em 1112 entrou no mosteiro de Cister, escolhido por ele em virtude do rigor com que aí era observada a regra, rigor contrastante com o desleixo que se tinha introduzido em todos os outros ramos da Ordem beneditina. Três anos mais tarde, os seus superiores não hesitavam em lhe confiar, apesar da sua experiência e da sua saúde periclitante, a direcção de doze religiosos que iam fundar uma nova abadia, a de Claraval, que ele deveria governar até à sua morte, repelindo sempre as honrarias e as dignidades que lhe ofereceriam tantas vezes, ao longo da sua carreira. O renome de Claraval não tardou a estender-se até longe e o desenvolvimento que essa abadia adquiriu em breve foi verdadeiramente prodigioso: quando morreu o seu fundador, ela abrigava, diz-se, cerca de sessenta novos mosteiros.

O cuidado que Bernardo trouxe à administração de Claraval, regulando ele próprio até os mais significativos pormenores da vida quotidiana, a parte que ele teve na direcção da Ordem cisterciense, como chefe de uma das suas primeiras abadias, a habilidade e o êxito das suas intervenções para aplanar as dificuldades que surgiam frequentemente com Ordens rivais, tudo isso basta já para provar que aquilo que se designa por sentido prático pode muito bem aliar-se, por vezes, à mais alta espiritualidade. Havia aí mais do que suficiente para absorver toda a actividade de um homem vulgar; e, no entanto, Bernardo em breve veria abrir-se diante de si um outro campo de acção, aliás bem contra a sua vontade, porque ele temia, mais do que qualquer outra coisa ser obrigado a sair do seu claustro para se misturar com os assuntos do mundo exterior, do qual ele tinha julgado poder isolar-se para sempre, a fim de se poder entregar inteiramente à ascese e à contemplação, sem que qualquer coisa o viesse distrair do que era, aos seus olhos, segundo as palavras evangélicas, «a única coisa necessária». Nisso ele tinha-se enganado redondamente; mas todas as «distracções» no sentido etimológico, às quais ele não pôde escapar e de que chegou a lamentar-se com alguma amargura, não o impediram de alcançar os pontos mais altos da vida mística. Isso é notável; e o que não o é menos é que, apesar de toda a sua humildade e de todos os esforços que empreendeu para ficar na sombra, fez-se apelo à sua colaboração em todos os assuntos importantes, e que, embora ele nada fosse aos olhos do mundo, todos, incluindo os mais altos dignitários civis e eclesiásticos, se inclinaram sempre espontaneamente diante da sua autoridade espiritual – e nós não sabemos se esse facto é mais um louvor do santo ou da época em que viveu. Que contraste entre o nosso tempo e aquele em que um simples monge podia, pela simples irradiação das suas virtudes eminentes, tornar-se de certo modo o centro da Europa e da Cristandade, o árbitro incontestado de todos os conflitos em que o interesse histórico estava em jogo, tanto na ordem política como na ordem religiosa, o juiz dos mestres mais reputados da filosofia e da teologia, o restaurador da unidade da Igreja, o mediador entre o Papado e o Império, e ver, por fim, exércitos de muitas centenas de milhar de homens reunirem-se com a sua pregação!


Aparição da Virgem a S. Bernardo de Claraval (Filippino Lippi).



(…) Todavia, o abade de Claraval não tinha só que lutar no domínio político, mas também no domínio intelectual, em que os seus triunfos não foram menos fulgurantes, visto que foram marcados pela condenação de dois elementos adversários; Abelardo e Gilbert de la Porrée. O primeiro tinha adquirido a reputação de ser um dos mais hábeis dialécticos, graças aos seus ensinamentos e aos seus escritos; chegava mesmo a abusar da dialéctica, porque em vez de ver o que ela é na realidade, um simples meio para chegar ao conhecimento da verdade, encarava-a quase exclusivamente como um fim em si mesmo, o que resultava, naturalmente, numa espécie de verbalismo. Parece também que havia nele, seja no método, seja no próprio fundo dos ideais, uma procura de originalidade que a aproxima um pouco dos filósofos modernos; e numa época em que o individualismo era quase desconhecido, este defeito não podia arriscar-se a passar por uma qualidade, como acontece nos nossos dias. Assim, em breve, alguns se mostraram inquietos com estas novidades que tendiam a estabelecer uma verdadeira confusão entre o domínio da razão e o da fé; não que Abelardo fosse propriamente um racionalista, como por vezes se afirmou, porque não houve racionalistas antes de Descartes; mas não soube distinguir entre o que era do domínio da razão e o que lhe é superior, entre a filosofia profana e a sabedoria sagrada, entre o saber puramente humano e o conhecimento transcendente – e essa foi a raiz de todos os seus erros. Não ia ele ao ponto de sustentar que os filósofos e os dialécticos gozam habitualmente de uma inspiração que seria comparável à inspiração sobrenatural dos profetas? Compreende-se facilmente que São Bernardo, quando foi chamada a sua atenção para teorias semelhantes, se tenha levantado contra elas em força e mesmo com um certo arrebatamento, e também que tenha censurado amargamente ao seu autor ter ensinado que a fé não era mais do que uma simples opinião. A controvérsia entre estes dois homens tão diferentes, começada em encontros particularmente, teve em breve imenso eco nas escolas e mosteiros; Abelardo, confiando na sua habilidade para manejar o raciocínio, pediu ao arcebispo de Sens que reunisse um concílio, perante o qual ele se justificaria publicamente, porque pensava poder conduzir a discussão de tal modo que confundisse facilmente o seu adversário. Mas as coisas passaram-se de outra maneira: o abade de Claraval, efectivamente, concebia o concílio como um tribunal diante do qual o teólogo suspeito iria comparecer como acusado; numa sessão preparatória, apresentou as obras de Abelardo e as suas afirmações mais temerárias, de que provou a respectiva heterodoxia; no dia seguinte, já com o autor presente, e depois de ter enunciado essas afirmações, intimou-o a retratar-se ou a justificá-la. Abelardo, pressentindo logo uma condenação, não esperou o juízo do concílio e declarou imediatamente que apelaria para o tribunal de Roma; nem por isso o processo deixou de seguir o seu curso normal e, assim que a condenação foi anunciada, Bernardo escreveu a Inocêncio II e aos cardeais cartas de uma eloquência premente, de tal modo que, seis semanas mais tarde, a sentença era confirmada em Roma. Abelardo tinha apenas que se submeter; refugiou-se em Cluny, junto de Pedro o Venerável, que conseguiu marcar um encontro entre ele e o abade de Claraval, conseguindo reconciliá-los.



Abelardo e Heloísa



O concílio de Sens decorreu em 1140; em 1147, Bernardo obteve igualmente do concílio de Reims a condenação dos erros de Gilbert de la Porrée, bispo de Poitiers, respeitantes ao mistério da Trindade; estes erros provinham de que o seu autor aplicava a Deus a distinção real entre essência e existência, a qual só é aplicável aos seres criados. Gilbert, aliás, retratou-se sem dificuldades; assim, foi simplesmente proibido de ler ou de transcrever a sua obra antes de ela ser corrigida; a sua autoridade, à parte os pontos particulares que estavam em causa, não foi atingida, e a sua doutrina, continuou a ter grande crédito nas escolas durante a Idade Média.

Dois anos antes deste último caso, o abade de Claraval tivera a alegria de ver subir ao trono pontifical um dos seus antigos monges, Bernardo de Pisa, que tomou o nome de Eugénio III, e que continuou sempre a manter com ele as mais afectuosas relações; e é o novo Papa que, logo no começo do seu reinado, o encarrega de pregar a segunda cruzada. Até aí, a Terra Santa não ocupava, pelo menos aparentemente, senão um lugar menor nas preocupações de São Bernardo; seria, no entanto, um erro julgar que ele era inteiramente estranho ao que se passava aí, e a prova está num facto acerca do qual normalmente se insiste muito menos do que conviria. Falamos da sua participação na constituição da Ordem do Templo, a primeira das Ordens militares pela data e pela importância, e que iria servir de modelo a todas as outras. Foi em 1128, cerca de dez anos após a sua fundação, que esta Ordem recebeu a sua regra do concílio de Troyes e foi Bernardo que, na sua qualidade de secretário do concílio, foi encarregado de a redigir, ou pelo menos de traçar as suas linhas gerais, porque parece que somente mais tarde foi chamado a completá-la e que só terminou a sua redacção definitiva em 1131. Comentou seguidamente essa regra no tratado «De laude novae militiae», em que expôs em termos de magnífica eloquência a missão e o ideal da cavalaria cristã, do que ele chamava a «milícia de Deus». Estas relações do abade de Claraval com a Ordem do Templo, que os historiadores modernos encaram como um episódio bastante secundário da sua vida tinham certamente uma outra importância aos olhos dos homens da Idade Média, e nós mostrámos já que elas constituem sem dúvida a razão pela qual Dante deveria escolher São Bernardo para o guiar nos últimos círculos do Paraíso.















Desde 1145 que Luís VII tinha formado o projecto de socorrer os principados latinos do Oriente, ameaçados pelo emir de Alepo; mas a oposição dos seus conselheiros tinha-o obrigado a adiar a sua realização e a decisão definitiva tinha sido remetida para uma assembleia plenária que deveria realizar-se em Vezelay, durante as festas da Páscoa do ano seguinte. Eugénio III, retido em Itália por uma revolução suscitada em Roma por Arnaldo de Bréscia, encarregou o abade de Claraval de o substituir nessa assembleia; Bernardo, depois de ler a bula que convidava a França a juntar-se à cruzada, pronunciou um discurso que foi, a julgar pelo efeito produzido, a maior acção oratória da sua vida: todos os assistentes se precipitaram a receber a cruz das suas mãos. Encorajado por este sucesso, Bernardo percorreu as cidades e as províncias, pregando por toda a parte a cruzada com zelo infatigável; onde não podia ir pessoalmente enviava cartas não menos eloquentes do que os seus discursos. Passou seguidamente à Alemanha, onde a sua pregação teve os mesmos resultados do que em França; o imperador Conrado, depois de resistir algum tempo, teve que ceder à sua influência e integrar-se na cruzada. A meio do ano de 1147, os exércitos francês e alemão puseram-se em marcha para essa grande expedição que, apesar da sua aparência formidável, acabaria por redundar num desastre. As causas deste fracasso foram múltiplas: as principais parecem ter sido a traição dos gregos e a falta de entendimento entre os diversos chefes da cruzada; mas alguns procuraram injustamente lançar a responsabilidade sobre o abade de Claraval. Este foi obrigado a escrever uma verdadeira apologia da sua própria conduta, que era ao mesmo tempo uma justificação da acção da Providência, mostrando que as desgraças ocorridas eram imputáveis apenas às faltas dos cristãos, e que, desse modo, «as promessas de Deus permaneciam intactas, porque elas não prescreviam contra os direitos da sua justiça»; essa apologia está contida no livro «De Consideratione», dirigido a Eugénio III, livro que é como que o testamento de São Bernardo e que contém, nomeadamente, a sua visão acerca dos deveres do Papado. Aliás, nem todos se deixaram desencorajar, e Sugar concebeu, em breve, o projecto de uma nova cruzada, de que o abade de Claraval deveria ser o chefe; mas a morte do grande ministro de Luís VII suspendeu a execução desse projecto. O próprio São Bernardo morreu pouco depois, em 1153, e as suas últimas cartas testemunham que ele se preocupou até ao fim com a libertação da Terra Santa.

Se o objectivo imediato da cruzada não tinha sido alcançado deveria, por isso, dizer-se que essa expedição tinha sido completamente inútil e que os esforços de São Bernardo tinham redundado em pura perda? Não o cremos, apesar do que poderiam pensar os historiadores que se agarram apenas às aparências exteriores, porque havia nestes grandes momentos da Idade Média, que tinham simultaneamente carácter político e religioso, razões mais profundas, das quais uma, a única que queremos indicar, era a de manter na Cristandade uma viva consciência da sua unidade. A Cristandade era idêntica à civilização ocidental, baseada então em bases essencialmente tradicionais, como toda a civilização normal, e que iria alcançar o seu apogeu no século XIII; a perda deste carácter tradicional devia necessariamente seguir-se à ruptura da própria unidade da Cristandade. Essa ruptura, que foi efectuada no domínio religioso pela Reforma, ocorreu no domínio político pela instauração das nacionalidades, precedida pela destruição do regime feudal; e pode dizer-se, segundo este último ponto de vista, que aquele que desferiu os primeiros golpes no grandioso edifício da Cristandade medieval foi Filipe o Belo, o mesmo que, por uma coincidência que não tem certamente nada de fortuito, destruiu a Ordem do Templo, atacando por aí, directamente, a própria obra de São Bernardo.






No decurso de todas as suas viagens, São Bernardo apoiou constantemente a sua pregação em numerosas curas milagrosas, que eram para as multidões como que sinais visíveis da sua missão; estes factos foram contados por testemunhas oculares, mas ele referiu-se muito pouco a eles e contra vontade. Talvez essa reserva lhe fosse imposta pela sua extrema modéstia; mas também certamente atribuía a esses milagres apenas uma importância secundária, considerando-os somente como uma concessão feita pela misericórdia divina à fraqueza da fé na maior parte dos homens, de acordo com as palavras de Cristo: «Felizes aqueles que acreditam sem terem visto». Essa atitude estaria de acordo com o desdém que ele manifestava, em geral, por todos os meios exteriores e sensíveis, tais como a pompa das cerimónias e a ornamentação das igrejas; foi mesmo possível censurarem-no, com alguma aparência de verdade, por ter manifestado desprezo pela arte religiosa. Os que formulam esta crítica esquecem, todavia, uma distinção necessária, a que ele próprio estabelece entre o que chama arquitectura episcopal e arquitectura monástica: só esta última deve ter a austeridade que ele preconiza; somente aos religiosos e aos que seguem o caminho da perfeição ele proíbe o «culto dos ídolos», ou seja, das formas, acerca das quais, pelo contrário, ele proclama a sua utilidade como meio de educação para os simples e os imperfeitos. Se ele protestou contra os abusos das figuras desprovidas de significado e tendo apenas valor ornamental, não podia querer, como falsamente se afirmou, abolir o simbolismo da arte arquitectural, quando ele próprio o utilizava frequentemente nos seus sermões.

A doutrina de São Bernardo é essencialmente mística: queremos dizer que ele encara sobretudo as coisas divinas sob o aspecto do amor, o que seria, aliás, errado interpretar aqui num sentido simplesmente afectivo, como o fazem os modernos psicólogos. Tal como muitos dos grandes místicos, ele foi especialmente atraído pelo «Cântico dos Cânticos», que comentou em numerosos sermões, formando uma série que prosseguiu através de quase toda a sua carreira; e este comentário, que ficou por terminar, descreve todos os graus do amor divino até à paz suprema que a alma alcança no êxtase. O estado de êxtase, tal como ele o compreende e certamente alcançou, é uma espécie de morte para as coisas deste mundo; com as imagens sensíveis todo sentimento natural desaparece, tudo é puro e espiritual na alma como no seu amor. Este misticismo devia naturalmente reflectir-se nos tratados dogmáticos de São Bernardo; o título de um dos principais, «De diligendo Deo», mostra efectivamente o lugar aí ocupado pelo amor; mas seria errado acreditar que isso aconteça em detrimento da verdadeira intelectualidade. Se o abade de Claraval quis sempre permanecer estranho às vãs subtilezas da escola é porque não tinha qualquer necessidade dos laboriosos artifícios da dialéctica; resolvia de um só golpe as questões mais árduas, nunca procedendo segundo uma longa série de operações discursivas; aquilo que os filósofos se esforçam em alcançar através de um desvio, e como que tacteando, ele atingia-o imediatamente pela intuição intelectual, sem a qual nenhuma metafísica real é possível, e fora da qual só se pode colher uma sombra da verdade.

Um último traço da fisionomia de São Bernardo que é ainda necessário assinalar é o lugar eminente ocupado na sua vida e nas suas obras pelo culto da Santa Virgem e que deu lugar a um florescer de lendas que são talvez o seu traço mais popular. Ele gostava de dar à Virgem o título de Nossa Senhora, tendo-se esse uso generalizado desde então, e sem dúvida em grande parte graças à sua influência; é que ele era, como se disse, um verdadeiro «Cavaleiro de Maria» e via-a realmente como a sua «dama» no sentido cavalheiresco desta palavra. Se se aproximar este facto do papel que desempenha o amor na sua doutrina, e que desempenhava também, sob formas mais ou menos simbólicas, nas concepções próprias das Ordens de Cavalaria, compreender-se-á facilmente a razão pela qual nós tivemos o cuidado de mencionar as suas origens familiares. Mesmo depois de se fazer monge continuou a ser cavaleiro, como eram todos os da sua raça; e por isso mesmo se pode dizer que ele estava de certo modo predestinado a desempenhar, como o fez em tantas circunstâncias, o papel de intermediário, de conciliador e de árbitro entre o poder religioso e o poder político, porque havia na sua pessoa como que uma participação na natureza de um e de outro. Monge e cavaleiro, simultaneamente, estes dois caracteres eram os dos membros da «milícia de Deus» da Ordem do Templo; eram também, e primeiro que tudo, os do autor da sua regra, do grande santo que foi chamado o último dos Padres da Igreja e em quem alguns querem ver, não sem alguma razão, o protótipo de Gallaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói vitorioso da «demanda do Santo Graal» (in O Esoterismo de Dante, Vega, 1995, pp. 83-87 e 91-99).




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