«(...) não é enquanto Verbo que ele é mediador, porque o Verbo, soberanamente imortal e soberanamente feliz, está longe dos mortais infelizes. Ele é mediador enquanto homem, mostrando por isso mesmo que, para atingir aquele que é, não somente o Bem feliz (beatum) mas também beatificante (beatificum) não é preciso procurar outros mediadores que julguemos encarregados de dispor os degraus da nossa ascensão - pois foi o próprio Deus bem-aventurado (beatus) e beatificante (beatificus), tornado partícipe da nossa humanidade, quem nos forneceu um meio rápido de participarmos na sua divindade. Realmente, ao libertar-nos da mortalidade e da miséria, não foi para os anjos imortais e felizes que nos encaminhou, para nos alcançar uma felicidade e uma imortalidade deles recebida: foi sim para aquela Trindade cuja participação faz a felicidade dos próprios anjos. Por isso, quando quis, para ser mediador, pôs-se abaixo dos anjos na forma de escravo, manteve-se acima deles na sua forma de Deus, fazendo-se caminho de vida entre os inferiores, Ele mesmo que é a vida entre os superiores».
Santo Agostinho
Para conseguir a vida bem-aventurada que consiste na participação do soberano bem, o homem precisa, não de um mediador tal como o demónio, mas apenas de um, tal como é Cristo
É necessário fugir para a pátria muito amada, onde está o Pai, onde estão todas as coisas. Mas em que consiste esta fuga? Em tornarmo-nos semelhantes a Deus.
Se, portanto, quanto mais nos aproximarmos de Deus, tanto mais nos tornamos a Ele semelhantes, a única maneira de nos afastarmos d’Ele será a de nos tornarmos dissemelhantes. Mas a este ser incorpóreo, eterno e imutável a alma humana é tanto mais dissemelhante quanto mais pressa está às coisas temporais e mutáveis.
Para sanar esta situação, como nenhuma relação é possível entre a imortal pureza do alto e os seres mortais impuros cá de baixo, evidentemente que é necessário um mediador. Mas tal mediador não tem que ter um corpo imortal próximo das realidades do alto e uma alma enferma semelhante às coisas cá de baixo (essa enfermidade torná-lo-ia mais cioso da nossa cura do que desejoso de nos curar) – mas sim adaptado à nossa baixeza pela mortalidade do seu corpo – de tal forma que a imortal justiça do seu espírito, que o mantém nas alturas, não pela distância mas pela sua perfeita semelhança com Deus, traga à obra da nossa purificação e da nossa libertação uma ajuda verdadeiramente divina.
Um Deus insusceptível de contaminação não pode recear do homem de que se revestiu – nem, sendo o homem, o dos homens com os quais conviveu. São importantes, na verdade, estes dois ensinamentos, que, graças à sua encarnação, nos mostrou, para a nossa salvação: nem a carne pode contaminar a verdadeira divindade, nem temos que julgar os demónios melhores do que nós porque não têm carne. É Este, como no-lo apresenta a Santa Escritura, o mediador entre Deus e os homens – o homem Cristo Jesus: pela sua divindade, é sempre igual ao Pai; pela sua humanidade, tornou-se a nós semelhante. Mas não é esta a ocasião para, conforme as nossas forças, falarmos disto.
Transfiguração de Jesus Cristo |
(…) Único verdadeiro princípio que purifica e renova a natureza humana
Porfírio, porém, dominado pelas potestades ciosas, das quais sentia vergonha mas que tinha medo de livremente rebater, não quis reconhecer o Cristo Senhor como o Princípio por cuja Encarnação somos purificados. Desprezou-o nessa carne que Cristo assumiu para ser sacrifício da nossa purificação. Não compreendeu este grande sacramento devido ao orgulho que o bom, o verdadeiro mediador abateu pela sua humildade, mostrando-se aos mortais nessa mortalidade que os maléficos e enganadores mediadores não tinham; e por isso com mais arrogância se envaideceram, prometendo, como imortais a mortais, uma ajuda ilusória aos infelizes homens. Mas como bom e verdadeiro mediador mostrou que o mal é o pecado e não a substância ou a natureza da carne; Ele pôde, pois, assumir esta carne e com ela uma alma humana, e conservá-la sem pecado, como pôde depô-la com a sua morte e transformá-la para melhor com a sua ressurreição; mostrou que nem a própria morte – castigo do pecado que Ele, embora sem pecado, sofreu por nós – pode ser evitada ao que peca, mas deve sim ser suportada, quando a ocasião surgir, como coisa justa. Não morreu porque pecou, mas morreu porque, morrendo, pôde pagar os nossos pecados.
O citado platónico não soube que este é que era o Princípio pois, se o soubesse, tê-lo-ia reconhecido como purificador. Não é a carne que há n’Ele que é o princípio – nem a alma humana; é o Verbo por quem tudo foi feito. A carne não purifica, pois, por si própria mas pelo Verbo por quem foi assumida quando
O Verbo se fez carne e habita entre nós.
Também quando falava misticamente da sua carne que devia ser comida e os que o não compreenderam se retiraram ofendidos dizendo:
É dura esta palavra – quem a pode ouvir?
Respondeu Ele aos que ficaram:
É o espírito que vivifica, mas a carne para nada serve.
O Princípio, portanto, tomando uma alma e uma carne, purifica a alma e a carne dos crentes. Por isso, aos judeus que lhe perguntavam quem era Ele, respondeu que era o Princípio. E nós – carnais, enfermos, sujeitos ao pecado, envolvidos nas trevas da ignorância – seríamos totalmente incapazes de compreender isso, se não fôssemos purificados e curados por Ele por meio do que éramos e do que não éramos. Realmente, éramos homens mas não éramos justos e na sua encarnação. Ele tinha uma natureza humana, mas justa e não pecadora. É esta a mediação pela qual foi estendida a mão aos que tinham caído e jaziam por terra; é esta a descendência preparada pelos anjos em cujas palavras se promulgava a lei que mandava prestar culto a um só Deus e prometia o mediador que havia de vir.
(…) A impiedade dos platónicos envergonha-se de confessar a encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo
Proclamas o Pai e seu Filho, a quem chamas «Intelecto ou Mente Paterna», assim como o que está no meio dos dois que, julgamos nós, será, na tua maneira de dizer, o Espírito Santo, e a quem, segundo os vossos hábitos, chamas três deuses. Nisso, embora usando de termos imprecisos, sabeis de algum modo e como que através das sombras duma frágil imaginação, qual o alvo que se deve atingir. Mas a encarnação do Filho imutável de Deus – pela qual nos salvamos e a qual nos permite chegarmos ao que cremos, ou, por pouco que seja, compreendemos – não quereis vós reconhecer. Assim, pois, vedes, embora de longe e com a vista obnubilada, a pátria onde devemos permanecer; mas não sois senhores do caminho por onde se deve seguir.
Contudo, confessas a graça, pois dizes que só a poucos foi concedido chegar a Deus pelo poder da inteligência. Realmente, não dizes: «aprouve a poucos» ou «poucos quiseram», mas, dizendo, «foi concedido», não há dúvida de que confessas a graça de Deus e não a ciência do homem. Falas ainda da graça em termos mais claros quando, segundo a opinião de Platão, não duvidas de que é impossível ao homem chegar à sabedoria perfeita, mas o que falta aos que vivem segundo a inteligência, pode pela providência e pela graça de Deus completar-se depois desta vida.
Oh! Se tivesses conhecido a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor, se tivesses podido ver na encarnação, em que Ele tomou uma alma e um corpo de homem, a mais bela das graças! Mas que hei-de fazer? Sei que é em vão que falo a um morto, pelo menos no que a ti se refere. Mas talvez não seja em vão que me dirijo, mais do que a ti, aos que te admiram e te amam devido a certo apego à sabedoria ou à curiosidade pelas artes que não devias ter estudado. A graça de Deus não podia ser mais graciosamente realçada do que no Filho único de Deus que, mantendo-se em Si imutável, se revestiu do homem e deu aos homens pela mediação do homem, o espírito do seu amor, para que, por este amor, possam os homens chegar a Ele, tão afastado dos mortais pela sua imortalidade, pela sua imutabilidade dos que mudam, pela sua justiça dos ímpios e pela sua beatitude dos infelizes. E porque na nossa própria natureza infundiu o desejo de felicidade e de imortalidade, permanecendo bem-aventurado ao assumir o homem mortal para nos conferir o que amamos, ensinou-nos pelos seus sofrimentos a desprezar o que receamos.
Mas, para poderdes aceitar esta verdade, tendes necessidade de humildade, virtude bem difícil de vencer cabeças como as vossas. Realmente, que é que há de incrível – sobretudo para vós, cuja doutrina vos convida a voltar-vos para esta crença – que é que há de incrível – sobretudo para vós, repito, em ouvir-nos afirmar que Deus assumiu a alma e um corpo de homem? Certamente formais da alma intelectual, que é sem dúvida humana, uma tão elevada ideia que ela pode, na vossa opinião, tornar-se consubstancial àquela Inteligência Paterna em que reconheceis o Filho de Deus. Que há, pois, de incrível se uma destas almas intelectuais, duma forma inefável e excepcional foi assumida para a salvação de muitos? O corpo está unido à alma para constituir o homem total e completo; sabemo-lo pelo testemunho da nossa natureza; se isto não fosse um facto tanto da experiência corrente, seria com certeza um facto bastante difícil de crer; realmente, é mais fácil crer na união do humano com o divino, do mutável com o imutável, e até de um espírito ou, segundo a vossa maneira de falar, do incorpóreo com o incorpóreo, do que na união de um corpo com um incorpóreo.
Será que o extraordinário parto de um filho por uma virgem nos repugna? Mas isso não vos deve espantar; pelo contrário: o facto de um ser admirável vir ao mundo duma maneira admirável deveria levar-nos a experimentar um sentimento de piedade. Será que vos recusais a acreditar que este corpo, abandonado com a morte, passado pela ressurreição a um estado melhor, doravante incorruptível e imortal, Ele o tenha arrebatado para as alturas? Tendes, sem dúvida, os olhos postos em Porfírio, nos seus livros acerca do Regresso da Alma (De regressu animae), de que já citei muitas passagens, onde ele repete tantas vezes: «Deve-se fugir de todo o corpo para que a alma possa manter-se bem-aventurada com Deus». Mas a sua opinião é que ele devia corrigir, sobretudo porque partilhais com ele tantas ideias incríveis acerca da alma deste mundo visível, desta imensa massa corporal. Encostados à autoridade de Platão, chegais mesmo a dizer que o mundo é um ser animado, um ser vivo, todo felicidade, e até, acrescentais vós, eterno. Como é, então, que a alma nunca se separará do corpo e nunca deixará de ser feliz, se, para ser feliz, precisa de evitar todo o corpo? E o Sol e os outros astros, também reconheceis nos vossos livros que eles são corpos e toda a gente o constata e concorda convosco sem hesitar. Todavia, acrescentais em nome de uma ciência mais profunda, parece-vos, que eles são seres vivos felicíssimos e, com esses corpos, eternos. Mas, então, porque é que, quando vos é exposta a fé cristã, esqueceis ou fingis ignorar o que costumais sustentar e ensinar? Porque é que, em nome dessas vossas opiniões que vós próprios desmentis, não quereis ser cristãos, senão porque Cristo apareceu humildemente e vós sois orgulhosos?
Quais serão as qualidades dos corpos dos santos na ressurreição – os mais doutos nas Escrituras cristãs podem discuti-lo com grande precisão. Não temos a menor dúvida de que ele será imortal e de que Cristo mostrou dele o modelo na ressurreição. Mas quaisquer que sejam as qualidades que tenham os corpos ressuscitados, se por um alado se diz que são absolutamente incorruptíveis e imortais e que não criarão qualquer obstáculo à contemplação que fixa a alma a Deus e, por outro lado, afirmais que há corpos imortais entre os imortalmente felizes – porque é então que julgais que, para sermos felizes, devemos fugir de todo o corpo, acreditando encontrar nisto uma boa razão de fugir à fé cristã? Porque será senão, volto a dizê-lo, porque Cristo é humilde e vós sois orgulhosos? É esse, precisamente, o vício dos orgulhosos. Causa de facto vergonha aos sábios abandonarem a escola de Platão e fazerem-se discípulos de Cristo que, pelo seu Espírito, ensinou um pescador a dizer com sabedoria:
No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. No princípio estava em Deus. Tudo foi feito por Ele e nada do que foi feito, foi feito sem Ele. N’Ele estava a vida e a vida era a luz dos homens; e a luz brilhou nas trevas e as trevas não o compreenderam.
É este o princípio do Santo Evangelho que nós chamamos «segundo João». Conforme ouvimos muitas vezes contar ao santo velho Simpliciano (que posteriormente, como bispo, presidiu à Igreja de Milão) houve um platónico que dizia dever este princípio ser escrito em letras de ouro e colocado em todas as igrejas no lugar mais destacado. Mas, entre os orgulhosos, Deus, o Doutor por excelência, perdeu todo o crédito desde que
O Verbo o fez carne e habitou entre nós.
Para estes infelizes é pouco estarem doentes; é preciso ainda que eles se vangloriem da sua doença e se envergonhem dos remédios que os poderiam curar. Não procedem assim para se elevarem mas para que, caindo, agravem mais o seu mal.
(…) Ao conhecimento de Deus nenhum homem chega senão pelo Mediador entre Deus e os homens – o homem Jesus Cristo
Compreende muito bem o homem ou, se não chega a compreendê-lo, pelo menos crê que foi feito à semelhança de Deus. Certamente que está mais perto de Deus, seu superior pela parte superior de si mesmo, feita para dominar as partes inferiores que tem de comum com os animais. Mas como a própria parte mental, sede natural da razão e da inteligência, está muito debilitada pelos vícios inveterados que a obscurecem, necessitava, antes de tudo, de ser purificada pela fé para aderir à luz imutável e dela gozar, ou mesmo para lhe suportar o esplendor, até que, renovada e curada dia a dia, se torne capaz duma tão grande felicidade.
E para caminhar mais confiadamente nessa fé para a verdade – a própria verdade, Deus Filho de Deus, assumindo o homem sem anular a Deus, fundou e estabeleceu essa mesma fé para que o homem tivesse um caminho para o Deus do homem por intermédio do homem-Deus. Esse é que é, realmente, o Mediador entre Deus e os homens – o homem Jesus Cristo: é Mediador por ser homem e como tal é caminho. Porque, se entre o que caminha há no meio um caminho, há esperança de lá chegar; se, porém, falta ou se desconhece por onde se deve seguir, que interessa que se saiba para onde se deve seguir? Só há, portanto, um caminho que exclui todo o erro: que o próprio Deus e o homem sejam o mesmo – Deus para onde se vai, homem por onde se vai (in A Cidade de Deus, Fundação Calouste Gulbenkian, Vol. II, 1993, pp. 863-864; 965-969; 989-990).
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