Sean Connery, no fime The Name of the Rose (1986). |
«(...) Era a maior biblioteca da cristandade - disse Guilherme. - Agora - acrescentou - o Anticristo está verdadeiramente próximo, porque nenhuma sapiência lhe fará mais de barreira. Por outro lado vimos o seu vulto esta noite.
- O vulto de quem? - perguntei, aturdido.
- Jorge, quero eu dizer. Naquele rosto devastado pelo ódio contra a filosofia vi primeira vez o retrato do Anticristo, que não vem da tribo de Judas, como pretendem os seus anunciadores, nem de um país longínquo. O Anticristo pode nascer da própria piedade, do excessivo amor de Deus ou da verdade, como o herege nasce do santo e o endemoninhado do vidente. Teme, Adso, os profetas e aqueles que estão dispostos a morrer pela verdade, que de costume fazem morrer muitíssimos com eles, frequentemente antes deles, por vezes em seu lugar. Jorge cumpriu uma obra diabólica porque amava de modo tão lúbrico a sua verdade que ousava tudo com a condição de destruir a mentira. Jorge temia o segundo livro de Aristóteles porque ele ensinava talvez a deformar deveras o rosto de toda a verdade, a fim de que não nos tornássemos escravos dos nossos fantasmas. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprender a libertar-nos da paixão insana pela verdade...».
Umberto Eco («O Nome da Rosa»).
«O próprio divide-se em quatro acepções. (...) A quarta é quando se verifica o concurso simultâneo de todas as referidas condições - predicar-se de uma só espécie, a toda a espécie, e sempre, como relativamente a homem se predica a faculdade do riso. De facto, mesmo que ele não se ria sempre, o homem é, no mínimo, capaz de rir, não por estar sempre a rir, mas porque naturalmente é capaz de rir; é um predicado que faz sempre parte da sua natureza, tanto como do cavalo faz parte a capacidade de relinchar...».
Porfírio («Isagoge. Introdução às Categorias de Aristóteles»).
«Eis o primeiro ponto para o qual chamaremos a atenção: não existe cómico fora do que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas nunca será risível. Poderemos rir-nos dum animal mas somente porque surpreendemos nele uma atitude de homem ou uma expressão humana. Poderemos rir-nos dum chapéu, mas do que a gente se ri não é do bocado de feltro ou de palha, mas da forma que os homens lhe deram, do capricho humano que o modelou. Como se explica que um facto tão importante na sua simplicidade, não tenha chamado há mais tempo a atenção dos filósofos? Alguns definiram o homem como "um animal que sabe rir". Bem o poderiam ter definido também como um animal que faz rir, porque se o mesmo acontece com qualquer outro animal ou objecto inanimado é por semelhança com o homem, pelo sinal com que o homem o marca ou pelo uso que o homem dele faz.
Notemos agora, como um sintoma não menos digno de atenção, a insensibilidade que, normalmente, acompanha o riso. Dir-se-ia que o cómico não pode produzir a sua vibração senão caindo numa superfície de alma bastante uniforme, bastante calma. A indiferença é o seu meio natural. O riso não tem maior inimigo do que a emoção. Não quero dizer que não possamos rir duma pessoa que, por exemplo, nos inspira piedade ou mesmo afeição: simplesmente, nessa altura, precisamos de esquecer por instantes essa afeição, fazer calar essa piedade. Uma sociedade de puras inteligências talvez não chorasse, mas rir provavelmente ainda riria; ao passo que almas sempre igualmente sensíveis, continuamente integradas no ritmo uníssono da vida, onde todos os acontecimentos se prolongassem em ressonância sentimental, não conheceriam nem compreenderiam o riso. Procurai, por momentos, interessar-vos por tudo que se diz e que se faz, agi em imaginação com aqueles que agem, senti com aqueles que sentem, dai enfim o máximo de expansão ao vosso poder de simpatia; como se obedecessem a uma batuta mágica logo vereis ganhar peso os objectos mais leves e uma coloração severa passar sobre todas as coisas. Despersonalizai-vos agora e presenciai a vida como espectador indiferente: quantos dramas passarão a comédia! Basta taparmos os ouvidos ao som da música numa sala onde se dança para que os dançarinos nos pareçam logo ridículos. Quantas acções humanas resistiriam a uma prova deste género? Não as veríamos nós passar, de repente, do grave ao divertido se as isolássemos da música do sentimento que as acompanha? O cómico exige, pois, finalmente para produzir todo o seu efeito, qualquer coisa como uma anestesia momentânea do coração. Dirige-se à inteligência pura».
Bergson («O Riso. Ensaio sobre o significado do cómico»).
O riso ou sobre o significado do cómico
É incontestável que algumas disformidades têm sobre outras o triste privilégio de, em certos casos, poderem provocar o riso. Inútil entrar em pormenores. Passe apenas o leitor em revista as várias disformidades, dividindo-as em dois grupos: para um lado as que a natureza orientou no sentido do risível e para outro aquelas que dele inteiramente se afastam. Estamos certos que acabareis por estabelecer a lei seguinte: Tem possibilidade de se tornar cómica toda a disformidade que uma pessoa normal pode imitar.
Não nos parece o corcunda uma pessoa que não sabe andar direito? Dir-se-ia que as costas apanharam um mau jeito. Por obstinação material, por rigidez, persiste no hábito adquirido. Procurai observar apenas com os olhos. Não reflictas e, sobretudo, não raciocineis. Esquecei o adquirido; procurai a impressão ingénua, imediata, original. É, nem mais nem menos, uma impressão deste género que colhereis. Verás diante de vós um homem que quis teimar numa certa atitude e, assim se pode dizer, obriga o corpo a fazer caretas.
Voltemos agora ao ponto que queríamos esclarecer. Atenuando a disformidade risível obteremos a fealdade cómica. Portanto, uma expressão facial risível será a que nos dá a impressão de qualquer coisa parecida com a condensação, a cristalização da mobilidade normal da fisionomia. Um tique consolidado, uma careta que se torna permanente, eis o que nós vemos. Poder-se-á dizer que qualquer expressão habitual do rosto, graciosa ou bela, nos deixa também esta mesma impressão duma máscara que para sempre se fixou. Mas há aqui uma distinção importante a fazer. Quando falamos duma beleza, e até duma fealdade expressivas, quando dizemos que uma cara tem expressão, trata-se de uma expressão talvez estável, mas cuja mobilidade nós adivinhamos. Ela conserva, na sua fixidez, uma indecisão em que confusamente se descobrem todos os cambiantes possíveis do estado de alma que ela exprime, tal como as quentes promessas dum dia se respiram em certas manhãs vaporosas de Primavera. Mas a expressão cómica do rosto é aquela que não promete mais do que aquilo que patenteia. É uma máscara única e definitiva. Dir-se-ia que toda a vida moral do indivíduo cristalizou naquele sistema. E é por isso que uma cara é tanto mais cómica quanto melhor nos sugere a ideia de qualquer acção simples, mecânica, em que a personalidade ficasse para sempre condensada. Há caras que parecem estar sempre a chorar, outras a rir ou a assobiar, outras ainda a soprar eternamente numa trombeta imaginária. São as mais cómicas. Ainda aqui se verifica a lei segundo a qual o efeito é tanto mais cómico quanto mais facilmente podemos explicar a sua causa. Automatismo, rigidez, jeito adquirido e conservado, eis os motivos por que uma fisionomia nos faz rir. Mas este efeito ganha em intensidade quando podemos ligar estas características a uma causa profunda, a uma certa distracção fundamental do indivíduo, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar pela materialidade duma acção simples.
Henrique Bergson |
Em resumo: qualquer que seja a doutrina a que a nossa razão adira, a imaginação tem a sua filosofia bem assente: em toda a forma humana ela percebe o esforço duma alma que dá forma à matéria, alma infinitivamente maleável, eternamente móvel, subtraída à gravidade, por não ser a terra que a atrai. Da sua ligeireza alada esta alma comunica alguma coisa ao corpo que ela anima: a imaterialidade que desta maneira é comunicada à matéria é aquilo a que se chama a graça. Mas a matéria resiste e obstina-se. Atrai-se a si própria, o seu desejo seria converter à sua própria inércia e fazer com que degenere em automatismo a actividade sempre desperta deste princípio superior. Ela quereria fixar os movimentos inteligentemente variados do corpo em tiques estupidamente contraídos, solidificador em esgares duráveis as expressões instáveis da fisionomia, imprimir, enfim, a toda a criatura uma atitude tal que a faça parecer mergulhada e absorvida na materialidade de qualquer ocupação mecânica em lugar de se renovar incessantemente ao contacto dum ideal vivo. Nos casos em que a matéria consegue assim triunfar, a ponto de apagar exteriormente a vida da alma, de cristalizar os seus movimentos, de contrariar enfim a graça, obtém do corpo um efeito cómico. Se se quisesse portanto definir aqui o cómico pelo seu contrário, bastaria opô-lo antes à graça do que à beleza. É mais rigidez do que fealdade.
Vamos passar do cómico das formas ao cómico dos gestos e dos movimentos. Enunciemos em primeiro lugar a lei que nos parece governar os factos deste género. Facilmente se deduz das considerações que acabam de ser lidas.
Mas deixemos por agora as aplicações imediatas do princípio e insistamos apenas sobre as consequências mais longínquas. A visão duma mecânica funcionando no interior do indivíduo aparece numa imensidade de efeitos cómicos; mas a maior parte das vezes é uma visão fugidia, que se perde imediatamente no riso que provoca. É preciso um esforço de análise e de reflexão para a fixar.
Vejamos, por exemplo, este gesto dum orador que rivaliza com a parábola. Ciumento da palavra, o gesto acode logo por trás do pensamento e também ele quer servir de intérprete. Seja; mas que se sujeite então a seguir o pensamento nos pormenores da sua evolução. A ideia é coisa que progride, brota, floresce, amadurece do começo ao fim do discurso. Nunca pára, nunca se repete. É preciso que a cada instante mude, porque deixar de mudar seria deixar de viver. Como ela, o gesto deve, portanto, ser vivo; deve aceitar a lei fundamental da vida que é a de nunca se repetir. Mas eis que um certo movimento de braços ou de cabeça, o mesmo sempre, eu vejo repetir-se periodicamente. Se eu o noto, se é suficiente para me distrair, se o espero num determinado momento e ele vem quando eu o espero, involuntariamente rio. Porquê? Porque tenho agora diante de mim uma mecânica que funciona automaticamente. Já não é a vida: é o automatismo instalado na vida. É o cómico.
É esta também a razão por que certos gestos que nem de longe despertam o riso, se tornam risíveis quando uma pessoa diferente os imita. Procuraram-se explicações complicadas para este facto simples. Por muito pouco que sobre o caso se reflicta, veremos que os nossos estados de alma mudam de momento a momento e que se os nossos gestos seguissem fielmente os nossos movimentos interiores, se eles vivessem a vida que nós vivemos, nunca se repetiriam e por isso desafiariam todas as imitações. Por isso é que só nos começamos a tornar imitáveis na medida em que deixamos de ser nós próprios. Quero com isto dizer que, dos nossos gestos, só podem ser imitados aqueles que têm qualquer coisa de mecanicamente uniforme e, por isso mesmo, estranhos à nossa personalidade vivente. Imitar alguém é pôr em evidência a parte de automatismo que essa pessoa deixou introduzir em si. É, pois, por definição, torná-la cómica; e, assim, já não nos admiramos que a imitação faça rir.
Mas se a imitação dos gestos é já por si risível, tornar-se-á mais ainda quando os consegue amoldar, sem os deformar, ao sentido de qualquer operação mecânica como, por exemplo, serrar madeira, bater numa bigorna, puxar continuamente o cordão duma campainha imaginária. Não quer isto dizer que a vulgaridade seja a essência do cómico (apesar de participar dele por qualquer coisa). É que o gesto captado parece mais francamente maquinal quando se pode ligar a uma operação simples como se o seu destino fosse ser mecânico. Sugerir esta interpretação mecânica deve ser um dos processos favoritos da paródia. É certo que estamos a deduzir a priori, mas os palhaços há muito tempo que têm a intuição disto mesmo.
E assim se resolve o pequeno enigma proposto por Pascal numa passagem dos pensamentos: «Duas fisionomias parecidas, apesar de nenhuma delas fazer rir em separado, fazem rir juntas, pela sua parecença». Igualmente se poderia dizer: «Os gestos dum orador, nenhum deles sendo risível em separado, fazem rir pela repetição». É que a vida bem viva não poderia repetir-se. Onde há repetição, semelhança completa, suspeitamos do mecânico funcionando por detrás da vida. Analisai a vossa impressão diante de duas caras que se pareçam muito: imediatamente vereis que estais a pensar em dois exemplares obtidos com o mesmo molde, em dois cunhos do mesmo sinete ou em duas reproduções da mesma chapa, enfim, num processo de fabrico industrial. Este desvio da vida na direcção da mecânica é, aqui, a verdadeira causa do riso.
E o riso será bastante mais forte ainda se não nos apresentarem em cena apenas duas personagens, como no exemplo de Pascal, mas várias, o maior número possível, parecendo-se todas entre si, que vão, que vêm, dançam e se agitam ao mesmo tempo, tomando ao mesmo tempo as mesmas atitudes, gesticulando da mesma maneira. Neste caso já pensamos abertamente nos fantoches. Fios invisíveis dão-nos a impressão de ligar braços a braços, pernas a pernas, cada músculo duma fisionomia aos músculos análogos da outra: a inflexibilidade da correspondência faz com que a maleabilidade das formas se solidifique sob o nosso olhar e que tudo se torne rígido como coisa mecânica. Tal é o artifício deste divertimento um pouco grosseiro. Os que o executam certamente que nunca leram Pascal, mas apesar disso outra coisa não fazem, com certeza também, do que ir até ao fim duma ideia que o texto de Pascal sugere. E se a causa do riso é a visão dum efeito cómico no segundo caso, da mesma maneira o era já, mas mais subtilmente, no primeiro.
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