«Os biógrafos de Porfírio noticiam que ele redigiu comentários e introduções a todos os livros do Organon de Aristóteles. Perderam-se, ou ignora-se o seu paradeiro, mas, da iniciação à lógica aristotélica, a posteridade recebeu dois textos: In Aristotelis Categorias Expositio per Interrogationem et Responsionem; e a epístola a Crisaório, intitulada Isagoge, que significa introdução, iniciação.
(...) Redigida na Sicília, enquanto se curava da neurastenia, ou do cansaço cerebral que o afectara, a Isagoge constitui uma epístola, endereçada a Crisaório, um presumível discípulo da escola de Plotino, fornecendo as chaves para a compreensão do primeiro livro do Organon, ou Categorias. Embora extenso, e sistematizado em sete livros, o Organon é, por vezes, muito esquemático, como se compendiasse os tópicos que o mestre, ou prelector, desenvolveria na aula, mediante exemplos de ocasião, ou glosas, ou comentos suscitados pelo auditório. Haja em vista que, no Categorias, Aristóteles utiliza termos universais, como género e espécie, demonstra-os como exemplos, mas não define os termos, pelo que os estudantes encontravam certo obstáculo no caminho através da combinação das dez categorias, por não lhes ser dado, desde logo, o elenco das vozes, nominações ou universais, e sendo tolhidos no passo por carência de uma prévia definição dos conceitos de universal, geral, particular e singular, ou individual. Com efeito, Aristóteles só versaria, (e de modo exaustivo quanto aos exemplos, mas de forma sintética quanto à explanação teórica), só versaria, dizemos, estas vozes no primeiro livro dos Tópicos limitando-se a definir, não as cinco vozes, mas apenas quatro: a definição, o género, o próprio e o acidente. Excluindo a espécie e a diferença, sendo estes os modi praedicandi, ou predicamentos com os quais, segundo Aristóteles, se constroem as proposições e os argumentos. Quer isto significar que o aparentemente mais fácil dos lógicos de Aristóteles propunha dificuldades aos aprendizes. Quem sabe se o próprio Porfírio não sofreu essas dificuldades em devido tempo, e se dispôs a socorrer, ou a ir em socorro, dos que viviam análogo entrevamento.
(...) A Isagoge de Porfírio é o intermediário da Lógica de Aristóteles para a Idade Média e para a Renascença. Ainda se estava longe do renascimento da filosofia de Aristóteles, mal se conhecia a sua obra, mas ela estava sendo de algum modo transmissa pela inicição porfiriana. Esta afirmação vale sobretudo quanto ao Ocidente, onde este textozinho ganhou o direito de fazer parte do corpus aristotelicus, conforme se prova pelo facto de, a partir do Renascimento, se haver criado o costume de iniciar todas as grandes edições do Organon com a iniciação segundo Porfírio.
(...) No Ocidente, o primeiro tradutor de Porfírio foi o retórico neoplatónico Mário Vitorino (fal. cerca de 380), o africano, que entrou na Igreja nos meados do século IV. A sua tradução, aliás comentada, perdeu-se, mas foi com fudamento nela que Anício Manlio Severino Boécio, ou Boethius (480-525) se tornou o iniciador da Medievalidade na Lógica de Aristóteles. Baseado na tradução de Mário Vitorino, corrente ainda na sua época, Boécio elaborou um comentário à tradução de Vitorino, intitulado In Porphyrium Dialogi a Victorini Translati, em que, pela primeira vez, apresentou um esquema da chamada escala predicamental, ou árvore de Porfírio, que era o desenho, ou esquema, para ainda mais facilmente o aprendiz dos Universais obter uma percepção, e claríssima, das vozes aristotélicas segundo a arquitectura porfiriana. Este Comentário de Boécio teve uma utilidade extra: a de, em tempo, tornar possível a reconstituição do texto da tradução de Mário Vitorino, embora tal reconstituição mereça algumas reservas, quanto à plenitude textual, não deixando, em todo o caso, de se apresentar como um exercício de credibilidade.
Insatisfeito, porém, com a versão vitorina, Boécio efectuou uma outra tradução, muito conotada à anterior, que intitulou de Porphyrii Introductio in Aristotelis Categorias a Boethio Translata, destinada a servir de compêndio, ou de manual iniciativo, em todas as escolas medievais, antes de se conhecer todo o Organon, ou logica nova, e mesmo depois deste integral descobrimento de Aristóteles por virtude da filosofia arábica. O elenco de autores em que Porfírio é apresentado como chave, desde A Fonte do Conhecimento, ou Dialéctica, de S. João Damasceno, é vastíssimo, havendo traduções árabes, hebraicas, latinas, e em muitas línguas da modernidade.
O costume de abrir as edições do Corpus Aristotelicum com o tratadinho de Porfírio foi introduzido pelo comentador Giovanni Argiropulo (Constantinopla, 1410 - Florença, 1491), florentino por adopção, mestre de Marcílio Ficino, que assim procedeu para a edição intitulada Aristotelis Stagiritae Opera (Lugduni, 1601)».
Pinharanda Gomes (in prefácio à Isagoge de Porfírio).
«Como é necessário, ó Crisaório, para conhecer a razão das Categorias de Aristóteles, saber o que é o género, o que é a diferença, o que é a espécie, o que é o próprio, e o que é o acidente, e como este saber é também necessário para formular as definições, e, de um modo geral, para tudo quanto abrange a divisão e a demonstração, cuja teoria é deveras útil, far-te-ei uma breve exposição, e tentarei em poucas palavras, como que numa espécie de introdução percorrer o que sobre isto disseram os antigos filósofos, abstendo-me de indagações demasiado profundas, e não abordando, senão com parcimónia, mesmo as mais simples. Antes de mais, no que se refere aos géneros e às espécies, a questão de saber se elas são realidade em si mesmas, ou apenas simples concepções do intelecto, e, admitindo que sejam realidades substanciais, se são corpóreas ou incorpóreas se, enfim, são separadas ou se apenas subsistem nos sensíveis e segundo estes, é assunto de que evitarei falar: é um problema muito complexo, que requer uma indagação em tudo diferente e mais extensa. Procurarei mostrar-te aqui o que os antigos e, entre eles, sobretudo os Peripatéticos, conceberam de mais acomodado à lógica acerca destes últimos temas e acerca dos outros que me propus estudar».
Porfírio («Isagoge»).
Da Espécie
Espécie diz-se da forma de cada coisa, no sentido do provérbio:
"Primeiro uma beleza digna da realeza".
Também denominamos por espécie o que se subordina a um dado género, na acepção em que temos o costume de dizer que homem é uma espécie de animal, sendo animal o género, branco uma espécie da cor, e o triângulo uma espécie de figura. E se, na definição do género, mencionámos a espécie, afirmando ser ela o que se predica de modo essencial a uma pluralidade de termos diferentes em espécie, enquanto agora afirmamos que a espécie é o que se subordina ao género, convém saber que o género, sendo o género de alguma coisa, e, a espécie, espécie de alguma coisa, os dois termos são relativos um ao outro, pelo que, na definição de um, devemos servir-nos da definição do outro. A espécie também se define deste modo: a espécie é o que se ordena sob o género e isso de que o género se predica por essência. Ainda podemos dizer: espécie é o predicado que se predica por essência de uma pluralidade de termos diferentes entre eles segundo a espécie. No entanto, esta última definição só se diria da ínfima espécie, que é apenas espécie; as outras, pelo contrário, também são predicáveis das espécies subalternas. Quanto dizemos poderia exprimir-se com clareza da seguinte forma: em cada categoria, há certos termos que são os géneros mais gerais, outros que são as espécies mais especiais, outros ainda que são intermédios entre os géneros mais gerais e as espécies ínfimas. É mais geral, o termo acima do qual não pudesse haver outro género superior; é mais especial o termo acima do qual não pudesse haver outra espécie subordinada; são intermediários entre o mais geral e o mais especial outros termos diferentes. Procuremos esclarecer quanto dizemos tomando apenas uma categoria. A substância é em si mesmo um género; abaixo dela acha-se o corpo; abaixo do corpo, o corpo animado; abaixo do animal, o animal racional; abaixo do animal racional, o homem; abaixo do homem, enfim, Sócrates e Platão, e os homens singulares. De todos estes termos, substância é o mais geral, e ele é somente género; homem é ínfima espécie, sendo somente espécie; o corpo é espécie de substância e género de corpo animado; quanto a corpo animado, é espécie de corpo e género de animal; por sua vez, animal é espécie de corpo animado e género de animal racional; animal racional é espécie de animal e género de homem; homem é espécie de animal racional, mas já não é género de homens em particular, sendo apenas espécie; e tudo o que, colocado antes dos indivíduos lhes é imediatamente predicável, só pode ser espécie não sendo ao mesmo tempo género. O mesmo quanto à substância, que, sendo o termo superior, não havendo outro género antes dela, era o género supremo, e o mesmo quanto a homem, que é uma espécie após a qual não há outra espécie, nem qualquer termo capaz de ser divisível em espécies, mas apenas de indivíduos (porque dizemos indivíduo de Sócrates, de Platão, desta coisa branca), homem não poderia ser mais do que espécie, espécie ínfima, espécie especialíssima. Quanto aos intermédios, para os termos anteriores a eles, só podem ser espécies e, quanto aos termos posteriores a eles, géneros. Por conseguinte estes termos têm dois comportamentos, um voltado para os que os precedem, os quais são as suas espécies, outro voltado para os que se lhe seguem, e os quais são os seus géneros. Quanto aos extremos só têm uma face: o termo mais geral não tem relação a não ser com os termos que lhe são subordinados, uma vez ele ser o género superior a todos eles; ele não pode mais ter relação com os termos anteriores, uma vez ser o termo superior, tendo a função de primeiro princípio sendo, como dissemos, o género acima do qual não poderia haver outro género superior. Por sua vez, o termo ínfimo só tem uma face: não tem relação a não ser com os termos que lhe são anteriores, dos quais ele é espécie, enquanto mantém com os termos posteriores uma relação que é sempre a mesma, e que também se denomina espécie dos indivíduos. Mas diz-se espécie dos indivíduos enquanto ela os contém, e, por outro lado, em sentido contrário, espécie dos termos anteriores, enquanto é contida por eles.
Zeus-Júpiter |
Definimos género supremo do seguinte modo: o que, sendo género, não é espécie, e ainda - o que, acima do qual não pode haver outro género superior. E ínfima espécie é o que, sendo espécie, não é género, e que, sendo espécie, não é por sua vez divisível em espécies, e também: o que se predica por essência de uma pluralidade de termos numericamente diferentes. Quanto aos intermédios entre os extremos, denominamo-los géneros e espécies subordinados, e cada um deles propõe-se à vez como género e como espécie, todavia em relação a termos diferentes. É por isso que os termos anteriores às espécies últimas, retomando até ao género mais geral, se chamam ou géneros ou espécies subordinados: Agamémnon é Átrida, Pelópida, Tantalida e, por fim, relativo a Júpiter. Nas genealogias, é a um único princípio, por exemplo a Júpiter, que se relaciona as mais das vezes. Quanto aos géneros e às espécies já não é assim, porque o ser não é um género comum a todos os seres, e todos não são homogéneos relativamente a um único termo que seria o geral mais alto, e tal é a doutrina de Aristóteles. Convém todavia admitir, em obediência à lição das Categorias, que as dez primeiras categorias são como que dez primeiros princípios; e, admitindo que se pudessem predicar todos dos seres, pelo menos é por homonímia que assim se denominarão, no dizer de Aristóteles, e não por sinonímia. Se de facto o ser fosse o género, comum a todos os sujeitos, todos estes se denominariam seres por sinonímia. Mas como deveras há dez géneros primeiros, esta comunidade de denominação é puramente verbal, e não se aplica à definição expressa por esta denominação. Portanto, os géneros supremos são em número de dez; as espécies últimas são em número finito e jamais em número infinito; quanto aos indivíduos, que se seguem às espécies últimas, são em número infinito. Era assim que Platão recomendava que, ao descer-se até às ínfimas espécies, partindo dos géneros supremos, nos detivéssemos nestas espécies, procurando descer delas através de termos intermédios, que são divisíveis em conformidade com as suas diferenças especiais; quanto à infinitude dos indivíduos, ensina que os devemos deixar de lado, por não haver para eles uma ciência possível. Quando descemos às espécies últimas, a divisão procede necessariamente no sentido da multiplicidade; quando, pelo contrário, ascendemos aos géneros mais gerais, reduzimos necessariamente a multiplicidade à unidade: com efeito, a espécie, e ainda mais o género, conduzem a pluralidade a uma só natureza, enquanto que os termos particulares e individuais, pelo contrário, dividem progressivamente a unidade em multiplicidade. Por conseguinte, devido à participação na espécie, a multitude de homens não é mais do que um só homem; em contrapartida, em virtude dos homens em particular, o homem único e comum torna-se múltiplo: o particular é sempre factor de divisão, e o que é comum, factor de congregação e de unificação.
Tendo dado a conhecer a natureza do género e a natureza da espécie, e tendo mostrado a unidade do género e a pluralidade das espécies - porque o género divide-se sempre em várias espécies - cumpre-nos dizer que se o género é sempre predicado da espécie, e todos os termos superiores aos termos inferiores, a espécie, pelo contrário, não se predica, nem do género próprio, nem dos géneros superiores, por falta de reciprocidade. O que falta é, com efeito, ou bem que os termos de igual extensão são predicáveis de termos igualmente extensos, como o que relincha de cavalo, ou bem que os termos de maior extensão se predicam de termos de menor extensão, como animal de homem; mas para a predicação de termos de menor extensão a termos de maior extensão já não se passa o mesmo, e nós não podemos dizer que o animal é homem, do mesmo modo que podemos dizer o homem é animal. Os termos dos quais a espécie se predica receberão também necessariamente por predicado o género da respectiva espécie, e o género do género, até ao género mais geral: se, deveras, é verdadeiro afirmar que Sócrates é homem, que homem é animal, e animal é substância, é também verdadeiro afirmar que Sócrates é animal e substância. Como os termos superiores são sempre predicáveis dos termos subordinados, a espécie será predicável do indivíduo, o género será predicável da espécie e do indivíduo, e o género mais geral do género ou dos géneros - caso estejam presentes vários termos intermédios e subordinados -, assim como da espécie do indivíduo. O género supremo predica-se de todos os géneros que lhe são subordinados, assim como das espécies e dos indivíduos; o género anterior à espécie última predica-se de todas as espécies últimas e dos indivíduos; a espécie que é apenas espécie, de todos os indivíduos; e indivíduo, de um sujeito particular. Dizemos indivíduo de Sócrates, ou desta coisa branca ou de este filho de Sofronisco, que está a aproximar-se, admitindo que Sócrates fosse o único filho de Sofronisco. Os seres desta espécie denominam-se indivíduos, porque cada um deles compõem-se de particularidades cuja junção não seria igual à de outro sujeito: as particularidades de Sócrates não poderiam ser as mesmas para cada um dos outros indivíduos particulares, ainda que as particularidades de homem, digo, do homem em geral, possam ser as mesmas em vários homens, ou mais ainda em todos os homens particulares enquanto homens. Por conseguinte, o indivíduo é contido pela espécie, e a espécie é contida pelo género: o género é um todo, e o indivíduo uma parte, a espécie é simultaneamente todo e parte, mas parte de um outro termo, enquanto o todo não é o todo de um outro termo, sendo-o de outros termos, porque o todo está nas partes.
Quanto ao género e à espécie, acerca da natureza do género supremo, da ínfima espécie, dos termos que são simultaneamente géneros e espécies, dos indivíduos, e das diversas acepções de género e espécie, eis o que tínhamos a explicar (Isagoge. Introdução às Categorias de Aristóteles, Guimarães Editores, 1994, pp. 58-68).
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