«A essência da poesia, considerada como imitação de acção austera ou ridícula - eis, por conseguinte, o problema que Aristóteles enuncia e resolve nestes dois livros, coordenadamente com os problemas éticos e políticos e, talvez, os físicos, que enunciara e resolvera noutros tratados e subordinadamente à sua teoria geral da ciência. Não é esta a oportunidade para tentar a prova do que em tão poucas linhas deixamos escrito. Queremos apenas sugerir que, na Poética, a teoria da acção está mais próxima do que inadvertidamente se poderia supor, da teoria do movimento, exposta na Física; aludir à dependência dos juízos críticos, expressos na Poética, em relação aos princípios estabelecidos na Ética; e lembrar que talvez não haja outra solução do problema da catarse, além da que se infere da Política.
(...) Organizar a investigação científica - tal foi o mister de Aristóteles e a missão que impôs aos discípulos nos anos derradeiros do seu magistério. Desse tempo, data a redacção das cento e cinquenta e oito "Constituições", das listas dos vencedores dos Jogos Pítios e das Competições Dionisíacas; das Didascálias, dos estudos anatómicos e embriológicos. Não corremos, pois, o risco de exagerar, incluindo na mesma enciclopédia grandiosa a história dos animais e a história desses seres viventes que são os géneros poéticos e as constituições políticas.
O método de Aristóteles, a que se conforma a sua actividade de escritor e de professor, neste último período, parece o inverso do método platónico, a que obedecera, durante vinte anos de Academia. É uma reversão na empíria, que implica uma revalorização do concreto. O mundo experiencial aristotélico não é o mundo do não-ser; é o dos sinais e testemunhos positivos do ser: se os homens mostram especial predilecção pelos orgãos visuais, isso é "sinal" de que, por natureza, todos eles aspiram ao conhecimento; se contemplam com prazer as imagens mais exactas daquelas mesmas coisas que olham com repugnância, isso é "testemunho" de que o imitar é congénito no homem. E assim, a história, enquanto obscuramente traga em si o sentido do universal - isto é, enquanto tenha de comum com a poesia mostrar, no que acontece, um sinal do que poderia acontecer, segundo a verosimilhança e a necessidade -, tem, forçosamente, que assumir na Escola a dignidade de ciência, seja, embora, no grau ínfimo de simples diagnose do que existe.
É, pois, como parte integrante de um conhecimento do universal, que devemos apreciar as investigações históricas de Aristóteles e de seus discípulos, acerca das origens dos géneros poéticos; e como aprofundamento, até às suas raízes empíricas, da sistematização filológica e filosófica - não como ilustração, pura e simples, de uma idealidade abstracta, mediante o eventual recortado no seio da concreta realidade».
Eudoro de Sousa («Introdução à Poética de Aristóteles»).
(...) Origem da poesia.
Causas. História da poesia trágica e cómica
Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congénito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador e, por imitação, apreende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.
Sinal disto é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exactas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efectivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas [e dirão], por exemplo, "este é tal". Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie.
Sendo, pois, a imitação própria da nossa natureza (e a harmonia e o ritmo, porque é evidente que os metros são partes do ritmo), os que ao princípio foram mais naturalmente propensos para tais coisas, pouco a pouco, deram origem à poesia, procedendo desde os mais toscos improvisos.
A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]. Os de mais alto ânimo imitaram as acções nobres e dos mais nobres personagens; e os de mais baixas inclinações voltaram-se para as acções ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e encómios. Não podemos, é certo, citar poemas deste género [poetas que viveram] antes de Homero, se bem que, verosimilmente, muitos tenham existido; mas, a começar em Homero, temos o Margites e outros poemas semelhantes, nos quais, por mais apto, se introduziu o metro jâmbico (que ainda hoje assim se denomina porque nesse metro se injuriavam [iámbizon]). De modo que, entre os antigos, uns foram poetas em verso heróico, outros o foram em verso jâmbico.
Mas Homero, tal como foi supremo poeta no género sério, pois se distingue não só pela sua excelência como pela feição dramática das suas imitações, assim também foi o primeiro que traçou as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, não o vitupério, mas o ridículo. Na verdade, o Margites tem a mesma analogia com a comédia, que têm a Ilíada e a Odisseia com a tragédia.
Examinar, depois, se as formas trágicas [a poesia austera] atinge ou não a perfeição [do género] quer a consideremos em si mesma quer no que respeita ao espectáculo - isso seria outra questão.
Mas, nascida de um princípio improvisado (tanto a tragédia, como a comédia: a tragédia, dos solistas do ditirambo; a comédia, dos solistas dos cantos fálicos, composições estas ainda hoje estimadas em muitas das nossas cidades), a [tragédia] pouco a pouco foi evoluindo, à medida que se desenvolvia tudo quanto nela se manifestava; até que, passadas muitas transformações, a tragédia se deteve, logo que atingiu a sua forma natural. Ésquilo foi o primeiro que elevou de um a dois o número dos actores, diminuiu a importância do coro e fez do diálogo protagonista. Sófocles introduziu três actores e a cenografia. Quanto à grandeza, tarde adquiriu [a tragédia] o seu alto estilo: [só quando se afastou] dos argumentos breves e da elocução grotesca, [isto é] do [elemento] satírico. Quanto ao metro, substituiu o tetrâmetro [trocaico] pelo [trímetro] jâmbico. Com efeito, os poetas usaram primeiro o tetrâmetro porque as suas composições eram satíricas e mais afins à dança; mas, quando se desenvolveu o diálogo, o engenho natural logo encontrou o metro adequado; pois o jambo é o metro que mais se conforma ao ritmo natural da linguagem corrente: demonstra-o o facto de muitas vezes proferirmos jambos na conversação, e só raramente hexâmetros, quando nos elevamos acima do tom comum.
Quanto ao número de episódios e outros ornamentos que se hajam acrescentado a cada parte, consideramos o assunto tratado: muito laborioso seria discorrer sobre tudo isto em pormenor.
A comédia: evolução do género.
Comparação da tragédia com a epopeia
A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anónima e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cómica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor.
Se as transformações da tragédia e seus autores nos são conhecidas, as da comédia, pelo contrário, estão ocultas, pois que delas se não cuidou desde o início: só passado muito tempo o arconte concedeu o coro da comédia, que outrora era constituído por voluntários. E também só depois que teve a comédia alguma forma, é que achamos memória dos que se dizem autores dela. Não se sabe, portanto, quem introduziu máscaras, prólogo, número de actores e outras coisas semelhantes. A composição de argumentos é [prática] oriunda da Sicília [e os primeiros poetas cómicos teriam sido Epicarmo e Fórmis]; dos Atenienses, foi Crates o primeiro que, abandonada a poesia jâmbica, inventou diálogos e argumentos de carácter universal.
A epopeia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitação de homens superiores, em verso; mas difere a epopeia da tragédia, pelo seu metro único e a forma narrativa. E também na extensão, porque a tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopeia não tem limite de tempo - e nisso diferem ainda que a tragédia, ao princípio, igualmente fosse ilimitada no tempo, como os poemas épicos.
Quanto às partes constitutivas, algumas são as mesmas na tragédia e na epopeia, outras são só próprias da tragédia. Por isso, quem quer que seja capaz de julgar da qualidade e dos defeitos da tragédia, tão bom juiz será da epopeia. Porque todas as partes da poesia épica se encontram na tragédia, mas nem todas as da poesia trágica intervêm na epopeia.
Definição de tragédia.
Partes ou elementos essenciais
Da imitação em hexâmetros e da comédia trataremos depois; agora vamos falar da tragédia, dando da sua essência a definição que resulta de quanto precedentemente dissemos.
É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
Digo "ornamentada" a linguagem que tem ritmo, harmonia e canto, e o servir-se separadamente de cada uma das espécies de ornamentos significa que algumas partes da tragédia adoptam só o verso, outras também o canto.
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois a melopeia e a elocução, pois estes são os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. Por "elocução", entendo a mesma composição métrica, e por "melopeia", aquilo cujo efeito a todos é manifesto.
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas as causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o quer que seja ou para manifestar sua decisão.
É, portanto, necessário que sejam as partes da tragédia que constituam a sua qualidade, designadamente: mito, carácter, elocução, pensamento, espectáculo e melopeia. De sorte que quanto aos meios com que se imita são duas, quanto ao modo por que se imita é uma só, e quanto aos objectos que se imitam são três; e além destas partes não há mais nenhuma. Pode dizer-se que de todos estes elementos não poucos poetas se serviram; com efeito, todas as tragédias comportam espectáculo, caracteres, mito, melopeia, elocução e pensamento.
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
Zêuxis e as 5 eleitas de Crotona (óleo de Edwin Long, 1885). |
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, as suas obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Terceiro [elemento da tragédia] é o pensamento: consiste em poder dizer sobre tal assunto o que lhe é inerente e a esse convém. Na eloquência, o pensamento é regulado pela política e pela oratória (efectivamente, nos antigos poetas, as personagens falavam a linguagem do cidadão e, nos modernos, falam a do orador). Carácter é o que revela certa decisão ou, em caso de dúvida, o fim preferido ou evitado; por isso não têm carácter os discursos do indivíduo, em que, de qualquer modo, se não revele o fim para que tende, ou o qual repele. Pensamento é aquilo em que a pessoa demonstra que algo é ou não é, ou enuncia uma sentença geral.
Quarto, entre os elementos [literários], é a elocução. Como disse, denomino "elocução" o enunciado dos pensamentos por meio das palavras, enunciado este que tem a mesma efectividade em verso ou em prosa.
Das restantes partes, a melopeia é o principal ornamento.
Quanto ao espectáculo cénico, decerto que é o mais emocionante, mas também é o menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem representação e sem actores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espectáculo mais depende do cenógrafo que do poeta.
Estrutura do mito trágico.
O mito como ser vivente
"Todo" é aquilo que tem princípio, meio e fim. "Princípio" é o que não contém em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa, e que, pelo contrário, tem depois de si algo com que está ou estará necessariamente unido. "Fim", ao invés, é o que naturalmente sucede a outra coisa, por necessidade ou porque assim acontece na maioria dos casos, e que, depois de si, nada tem. "Meio" é o que está depois de alguma coisa e tem outra depois de si.
É necessário, portanto, que os mitos bem compostos não comecem nem terminem ao acaso, mas que se conformem aos mencionados princípios.
Além disto, o belo - ser vivente ou o que quer que se componha de partes - não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto, um organismo vivente pequeníssimo não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade; imagine-se, por exemplo, um animal de dez mil estádios...). Pelo que, tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória.
Determinar o limite prático desta extensão, tendo em conta as circunstâncias dos concursos dramáticos e a impressão no púbico, tal não é o mister da arte poética, pois se houvesse que pôr em cena cem tragédias [em um só concurso dramático], o tempo teria de ser regulado pela clepsidra, como dizem que se fazia antigamente. Porém, o limite imposto pela própria natureza das coisas é o seguinte: desde que se possa apreender o conjunto, uma tragédia tanto mais bela será, quanto mais extensa. Dando uma definição mais simples, podemos dizer que o limite suficiente de uma tragédia é o que permite que nas acções uma após outra sucedidas, conformemente à verosimilhança e à necessidade, se dê o transe da infelicidade à felicidade ou da felicidade à infelicidade (in Poética, Tradução, Prefácio, Introdução, Comentário e Apêndices de EUDORO de SOUSA, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, pp. 106-114).
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