terça-feira, 12 de abril de 2011

Do aristotelismo ao positivismo

Escrito por Álvaro Ribeiro




O pensamento filosófico português foi, durante séculos, referido a Aristóteles cujas obras, mediata ou imediatamente conhecidas, motivaram entre nós algumas interpretações escolásticas que lograram fama nas universidades estrangeiras (1). Não está ainda suficientemente esclarecida a história do aristotelismo na Europa Ocidental, porque nas traduções latinas e árabes, e nos comentários dos escolastas cristãos e islâmicos, nem sempre se pode discernir o que verdadeiramente corresponde ao pensamento do Estagirita (2). Muito menos conhecida é a história do aristotelismo português, porque faltam ainda elementos para apreciar em que medida, e em que direcção, se libertaram da letra para o espírito os nossos comentadores escolásticos (3).

Aristotelismo puro, haurido directamente nas fontes helénicas, talvez nunca existisse entre nós, o que não deve provocar estranheza de quem, habilitado pela erudição mais perfeita, reconhecer a dificuldade actual de circunscrever o puro aristotelismo. Tem fundamentação documental a verdade histórica de que existiu na Universidade de Coimbra uma linha ininterrupta de aristotelismo, mas de aristotelismo tomista. A conjectura de que houve fidelidade literal aos textos autênticos de Aristóteles terá de ser afastada, se admitirmos que os esforços dos escolásticos obedeceram sempre ao intento de compor o aristotelismo, lido em latim, com a religião medieval e a ciência moderna (4).

No século XVIII entraram em Portugal as doutrinas antiescolásticas que alegavam ser impossível conciliar a experimentação científica e a revelação cristã com o aristotelismo, ou seja, com a filosofia. As traduções e os comentários dos textos de Aristóteles foram expulsos do ensino público em consequência da reforma pombalina da Universidade de Coimbra, efectuada em 1772. O Marquês de Pombal, mais preocupado em definir a nova posição da Universidade perante a Igreja e o Estado, do que em dar nova orientação filosófica aos estudos superiores, não realizou obra que mereça estima dos pedagogistas (5).

Acelera-se em 1772 a decadência dos estudos aristotélicos em Portugal, e a razão, que na terminologia escolástica significava o conjunto dos processos do conhecimento natural, no que se opunha à, passou a ser considerada na sua função de crítica a todos os dados da experiência e da revelação. Tanto quanto nos é possível verificar pela bibliografia, não houve, de 1772 a 1781, a actualização da cultura filosófica entre os professores e escritores portugueses: em vez do estudo da língua alemã e da obra de Kant, - que seria então o filósofo indicado para substituir Aristóteles na orientação do ensino superior, - preconizou-se entre nós o processo de trilhar anacronicamente os caminhos passados da filosofia moderna (6). Este retrocesso caracteriza-se sumariamente: substituição do hierárquico pelo orgânico, e do orgânico pelo mecânico, no pensamento filosófico, no ensino público, e na actividade social.

Convirá reconhecer todavia que o pensamento português não passou por uma fase de cultura idealista, ou ideísta. As doutrinas do esse est percipi, da estética transcendental, da negação da ontologia, que caracterizam o período de Berkeley a Hegel, nunca tiveram entre nós representantes distintos, talvez porque repugnem ao fundo autêntico da nossa mentalidade. De não termos filosofia preparatória do romantismo, o movimento poético da primeira metade do século XIX degenerou em mera expressão sentimental, sem originalidade nem autenticidade.

Paris








O estudo da língua francesa, admirável elemento de expressão para o universalismo abstracto, foi pouco a pouco conquistando na administração escolar o papel que durante os três séculos anteriores pertencera ao estudo da língua latina. Entre os compêndios escolares, que variavam na incerteza, por quanto traduziam passivamente doutrinas estrangeiras, não se firmava uma nomenclatura filosofal que correspondesse ao aperfeiçoamento romântico da literatura portuguesa (7). Confundia-se o pensamento com a representação mental, e porque não se definia nitidamente o que é de íntima representação, adulterava-se o significado realista do imaginar e do conceber; as mais inferiores operações lógicas, como a abstracção, a judicação, e a indução eram definidas segundo critérios atomistas e mecanicistas; a teoria dos universais e a dos contrários não obedeciam já à inspiração do Organon, pelo que viciavam, na origem, a exposição da doutrina do silogismo (8).

O exemplo comummente apresentado para o silogismo em barbara, lembrando a mortalidade do homem, parecia contraditar pela necessidade qualquer tese de superior valor escatológico. Nenhum exemplo seria mais bem escolhido para sugerir ao estudante a inutilidade do filosofar. Se o silogismo estivesse fielmente representado na mecânica dos compêndios, nem sequer teríamos motivo para admitir a subtileza e o engenho dos escritos modernos que pretenderam refutar a lógica de Aristóteles.

O período iluminista da cultura portuguesa, que termina em 1871 com a entrada do positivismo no Curso Superior de Letras, ainda não foi criteriosamente historiado, mas caracteriza-se pelo decrédito da filosofia perante a literatura, se por literatura quisermos entender o estudo dos sentimentos e por filosofia o estudo das ideias. É neste período que António Feliciano de Castilho, Alexandre Herculano e Almeida Garrett escrevem as suas conhecidas diatribes contra a filosofia (que confundem, aliás, com o filosofismo do século XVIII), e que Camilo Castelo Branco, em seus ímpetos jornalísticos, ataca também, na dignidade dos seus mais altos representantes, o melhor pensamento filosofal. Silvestre Pinheiro Ferreira, Pedro de Amorim Viana e Latino Coelho são nomes ilustres no obscuro período em que a Universidade Portuguesa repele a filosofia da Igreja sem conseguir substituí-la por uma filosofia do Estado (9).

O movimento iluminista dirige-se a princípio contra o dogmatismo teológico, mas em breve invade o campo antropológico, segundo a orientação dos trabalhos de Carlos Darwin. O estudo científico da antropologia que começou a ser realizado por Carlos Ribeiro, Pereira da Costa e Nery Delgado, encontrou muito bom ambiente no ensino público e obteve consagração oficial em 1880, quando se realizou em Lisboa o Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-históricas. Ainda hoje são elogiados como grandes sábios os pacientes investigadores que se esforçam por comprovar a antropologia darwinista e por apresentar objecções à verdade tradicional (10).







A palavra arqueologia, nobre composto de valiosos étimos, perdeu o significado filosófico para designar apenas uma investigação empírica. Todos os vestígios da acção do homem sobre a terra foram ordenados segundo conjecturas que não vão além da alegoria platónica da caverna, cuja significação é existencial, mas os positivistas, por uma falsa noção de infinidade do tempo, imaginam poder descobrir cientificamente os elementos primitivos da antropologia. A doutrina positivista é constante em afirmar que o problema da origem do homem pode ser resolvido sem interpretação dos livros inspirados e sagrados.

Separada da teologia, em consequência das hipóteses darwinistas, a ciência antropológica necessariamente haveria de exigir um conceito sociológico de humanismo. A filosofia deixa de exercer o primado sobre os estudos de humanidades e o ensino público tende a organizar-se segundo a gradação que vai da Ciências da Matéria às Ciências da Sociedade. Aos problemas sociais não era alheio o pensamento de Teófilo Braga, escritor que entrou para o corpo docente do Curso Superior de Letras em 1871, ano em que Carlos Darwin publicou a Descendência do Homem.

Teófilo Braga teve o alto mérito de reconhecer que o ensino não deve ser céptico nem ecléctico, mas canónico e dogmático, pelo que o «corpo docente» de cada escola tem de ser unânime na sistematização do saber. O respeito, confessado e professado, pela autoridade de um filósofo, longe de exigir a subserviência ou obediência que é de costume prestar-se a um regulamento impessoal, opera como estímulo da doutrinação que se transfigura de professores para alunos. Está reconhecida a superioridade da emulação entre as escolas sobre a uniformidade disciplinar em todo o ensino do Estado, mas convém que na mesma escola seja confessada e professada uma só doutrina, isto é, que entre os doutores não haja divergência nem contradição.

Errou, porém, Teófilo Braga, ao escolher a autoridade de Augusto Comte, depois de ter estudado Vico e Hegel. Seriam bem compreensíveis e justificáveis os motivos de predilecção pelo carácter enciclopédico do Curso de Filosofia Positiva em pensador que professasse indiferença perante o princípio das nacionalidades, não em Teófilo Braga que foi poeta atento das tradições e estudioso fiel das características étnicas. O ilustre historiador da cultura portuguesa não previu que o positivismo haveria de exercer acção meramente negativa logo que descesse aos graus de divulgação.

Depois de 1871 nenhuma escola filosófica teve maior poderio sobre a ilustração portuguesa do que o comtismo que, a dizer a verdade, representa uma fase do movimento cultural que tende a eliminar a filosofia. A Encíclica Aeterni Patris (1879) - a principal Encíclica de oposição à Enciclopédia, - foi lida e observada no mundo eclesiástico, sem que por isso obrigasse os pensadores portugueses, clérigos ou leigos, a estudos comparáveis aos que se publicaram em outros povos latinos. No fim do século XIX, em Portugal, não só estava desacreditada a filosofia de Aristóteles como toda e qualquer forma de filosofia: os termos de dialéctica, de diálogo e de duelo eram, nesse tempo, ciência e religião.

Recorre-se, então, ao empirismo moral, como se a moral servisse para disciplina da vida humana, e para crítica das actividades sociais. A moral, que é a conservação dos bons costumes (mores), não pode subsistir em sinceridade senão por virtude de uma doutrina mais alta que a legitime: a ética filosófica, dependente da escatologia religiosa. Invocar a moral equivale a invocar a etnografia, um conjunto de praxes e de preceitos cuja compreensão está ao alcance de todas as mentes, a forçar o trânsito entre a vida pública e a vida privada, a discutir os actos alheios em termos de maledicência e malevolência.



Álvaro Ribeiro



A cultura portuguesa, em consequência da doutrinação positivista, deixou de ter por fim o culto. Generalizou-se a opinião de que todos os cultos públicos representam atavismos sociais, de que os cultos familiares assentam em superstições lamentáveis, de que a religião é falsa, de que não há na realidade relações do homem com Deus. Cultura sem culto - sem culto individual, particular ou público, - tal era o programa agnóstico que se difundia no nosso país, onde dificilmente se desenvolvera o protestantismo, onde também não se aclimou o ritual positivista; convém considerar estas gradações da fenomenologia religiosa para que não se interprete errónea e anacronicamente o significado que entre nós assumiu a luta política contra a Igreja Católica.

Positivistas foram, sem o saberem ou sem o confessarem, muitos dos escritores que tomaram partidos contrários nas discussões literárias, políticas e religiosas que decorreram na transição do século XIX para o século XX, discussões, que, quase com as mesmas palavras, infelizmente ainda se prolongam em nossos dias. Clássicos e realistas, monárquicos e republicanos, cristãos e ateístas, eliminavam, das doutrinas que pretendiam defender, as garantias teológicas e as estruturas metafísicas, edificavam apologias e apologéticas no que é mais efémero, na última palavra da ciência ou no último livro de Paris. No ensino público os professores julgavam, e por julgadores sentenciavam, que o moderno estudo das ciências pela observação e pela experimentação deveria ter, por necessária consequência, a adopção universal da filosofia positivista.

«Não urdimos hipóteses gratuitas - escreve Sampaio Bruno em O Brasil Mental, - entre nós portugueses tomaremos o primeiro exemplo. Um professor exímio de matemáticas elementares, o sr. Couceiro da Costa, fez como fluminense Benjamim Constant. Agremiou-se nas fileiras de Augusto Comte, e no compêndio de aula, perante seus discípulos, enunciou vigorosamente a lei dos três estados. Apesar disso, afirma: «A ciência é positiva, muito bem: mas a fé, a filha egrégia do pensamento, essa jamais será suplantada pela positividade da ciência, porém cada vez mais acrisolada pela civilização (11).

Identificando espírito positivo com espírito científico - identificação anistórica e abusiva, - muitos escritores esperavam que a divulgação da obra de Augusto Comte realizasse o benefício de instaurar rigor, método e disciplina no tratamento de questões que, durante a primeira metade do século XIX, pertenciam aos domínios da literatura, da política e da religião. Enquanto para os políticos liberais havia a preocupação de subordinar o ensino público a uma filosofia que não fosse a da Igreja, nas gerações mais novas outro lema aparecia mais sedutor: nenhuma filosofia, apenas ciências e técnicas. Esta alteração do ideário político obliterou o significado à doutrina tradicional de que ao Estado cumpre realizar fins espirituais.

Este problema da relação dos meios com os fins, ou da respectiva articulação dinâmica, poderia servir de estímulo para a investigação histórica dos fundamentos do nosso direito público. Verificar em que medida a doutrina aristotélica da potência e do acto jaz ou subjaz nos textos dos nossos jurisconsultos, será tarefa indispensável para bem interpretar as vicissitudes da nossa política no século passado. Concebido o Estado como um conjunto de meios, cujos fins extrínsecos haveriam de ser determinados pelas correntes de opinião jornalística, fácil era aos positivistas apresentarem-se como publicistas, e, já que publicistas, republicanos.

Destituída das funções régias a Casa de Bragança, por transferência de poderes políticos, logo o partido dominante se apressa a cumprir do programa os artigos seguintes: - extingue no Estado todos os estudos teológicos; constitucionaliza a doutrina da neutralidade em matéria religiosa; inclui cursos de antropologia darwinista nas Faculdades de Ciências; exclui os problemas metafísicos dos estudos de cosmologia que passam a estar lógica e directamente subordinados à matemática e à física; fixa a ortografia e institui Faculdades de Letras; considera a cultura, não como preparatória do culto que o homem deve prestar a Deus, mas como utilitária habilitação científica para fins a determinar pela sociologia positiva. Só a palavra «filosofia» não foi banida dos documentos oficiais: os legisladores respeitaram a prudência de Augusto Comte. Assim, o ensino ministrado nas escolas públicas durante os primeiros lustros do século XX de tal forma imprimiu o positivismo na mente dos homens mais cultos, que estes, ao envelhecer, estranham o interesse das novas gerações pelos problemas de filosofia, enunciados agora em termos de filosofia portuguesa (in Apologia e Filosofia, Guimarães Editores, 1953, pp. 19-31).



Pedro Hispano



Notas:

(1) As obras de Pedro Hispano como as de Pedro da Fonseca foram lidas nas universidades europeias até às vésperas da revolução kantista.

(2) A obra de Fernand Van Steenberghen, Aristote en Occident, Louvain, 1946, corrige muitos erros que, infelizmente, ainda por vezes aparecem em escritos portugueses.

(3) A estudos de história do aristotelismo em Portugal se [dedicaram] os escritores Joaquim de Carvalho, Artur Moreira de Sá, Mariana Amélia Machado dos Santos, António Alberto de Andrade, M. da Costa e Armando de Gusmão. Pena é que, dispersos por jornais ou revistas de restrita circulação, (como, por exemplo, A Cidade de Évora) os mais úteis estudos sejam de difícil consulta para os estudiosos, quando não passam de todo despercebidos. Conviria elaborar um repertório bibliográfico de tudo quanto se publicou em periódicos portugueses até 1950.

(4) É elucidativa a falta de traduções portuguesas das obras de Aristóteles e dos seus comentadores helénicos e helenísticos.

(5) Remetemos o leitor para o que a este respeito escreveu Manuel Ferreira Deusdado na sua Revista de Educação e Ensino e, depois republicou no livro Educadores Portugueses. Sobre Luís António Verney, inspirador da reforma, é justo mencionar os trabalhos valiosos do Dr. Cabral Moncada, e a edição do Novo Método de Estudar por António Salgado Júnior. O centenário deste livro foi rememorado especialmente pelo número 1016 da revista Seara Nova.

(6) Usamos sempre a palavra «moderno» com a restrita acepção que lhe cumpre na história da filosofia. «Moderno» não corresponde a recente, mais novo, actual: significa «próprio dos séculos XVI, XVII e XVIII». Quanto a «modernista», convém lembrar a variedade de acepções deste termo, desde a que lhe foi conferida pela Encíclica Lamentabili (1907) até à que foi divulgada por um movimento literário de estudantes de Coimbra (1926).

(7) A lista completa dos compêndios portugueses de filosofia pode ler-se no trabalho de Manuel Ferreira Deusdado, em prefácio ao livro de J. M. da Cunha Seixas - Princípios Gerais de Philosophia, Lisboa, 1898.

(8) Os compêndios escolares, ao fim de alguns anos, deixam de ser adoptados e de ser lidos, pelo que só induzem em erro algumas gerações de estudantes. Muito mais perniciosos são os dicionários que, registando as acepções incorrectas que o vulgo atribui aos termos filosóficos, retardam a evolução do pensamento português. Os dicionaristas, tão cautelosos na definição dos termos que pertencem às ciências positivas, raras vezes abonam, com citações de filósofos portugueses, o significado das palavras mais correntes nos escritos de intuitos éticos e especulativos.

(9) Sobre estes três últimos filósofos convirá consultar os estudos de respectivamente, Delfim Santos, Sant'Anna Dionísio e Álvaro da Costa Pimpão, na Perspectiva da Literatura Portuguesa no Século XIX, dirigida por João Gaspar Simões, Lisboa, 1948-1949.

(10) Sobre a antropologia anti-filosófica é útil consultar J. Leite de Vasconcelos - Etnografia Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1933, pp. 66 a 80.

(11) Bruno, O Brasil Mental, Esboço Crítico, Porto, 1898, p. 191.




Sampaio Bruno



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