sexta-feira, 1 de abril de 2011

A portugalidade e o destino nacional

Escrito por Fernando Pessoa







1 - Nação e vitalidade nacional

A Pátria e o idioma

A primeira verdade da sociologia - ciência, aliás, conjectural e imperfeita - é que a humanidade não existe. Existe, sim, a espécie humana, mas num sentido somente zoológico: há a espécie humana como há a espécie canina. Fora disso a expressão humanidade pode ter somente um sentido religioso - o de sermos todos irmãos em Deus, ou em Cristo. Entre o sentido zoológico, que está aquém, e o religioso, que está além da sociologia, não cabe sentido nenhum. Sociologicamente, não há humanidade, isto é, a humanidade não é um ente real.

Na realidade social há só dois entes reais - o indivíduo, porque é deveras vivo, e a nação, porque é a única maneira como esses entes vivos, chamados indivíduos, se podem agrupar socialmente de um modo estável e fecundo. A base mental do indivíduo, por isso mesmo que é indivíduo, é o egoísmo, e os indivíduos podem agrupar-se só em virtude de um egoísmo superior, ao mesmo tempo próprio e social. Esse egoísmo é o da pátria, em que nos reintegramos em nós através dos outros, fortes do que não somos.

A base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é a essência da vida. O idioma, por isso mesmo que é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente viva, concentra em si, indistintiva e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver. Não somos irmãos, embora possamos ser amigos, dos que falam uma língua diferente, pois com isso mostram que têm uma alma diferente. Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diversas, em que somos iniciados à nascença, e cada um tem, no idioma seu e no que está nele, o seu toque próprio, a sua palavra de passe.

Tudo mais que forma grupos adentro da vida nacional - a família, a região, a classe - são ficções intermédias, umas meio físicas, outras meio económicas, e, se assumirem demasiada importância na vida nacional, elementos de desintegração dela. Da consciência excessiva da classe nasce o comunismo. Da consciência excessiva da região nasce o separatismo. Da consciência excessiva da família nasce esse egoísmo, tão deplorável socialmente como o directo, que faz com que um homem evite defender a pátria porque pela sua morte pode fazer falta aos filhos, ou furtar-se a fazer obras de arte, para dar a esses filhos que comer.

Todas as relações sociais entre indivíduos são essencialmente relações mentais, porque, apesar de a Igreja o dizer, o homem é de facto um animal racional. Ora a vida - social ou outra - é essencialmente acção, e o pensamento em acção é a palavra, falada ou escrita (e a palavra escrita e a palavra falada para quem nos não pode ouvir, quer porque esteja longe, quer porque não tenha nascido). A base das relações sociais é portanto o idioma: não somos irmãos, socialmente falando, senão daqueles que falam a nossa língua - e tanto mais quanto mais falem a nossa língua, isto é, quanto mais nela ponham, como nós, por ela ser a língua-mãe deles, como nossa, toda a sentimentalidade distintiva, toda a tradição acumulada, que a estrutura, o som, o jogo sintáctico e idiomático trazem em si. Desde que duas regiões da mesma língua se separem em estados diferentes, desde logo começa a se estabelecer uma diferenciação na estrutura da língua - subtil e impalpável umas vezes, acentuada em outras, mas a separação em duas pátrias tende sempre a ir tornar-se uma separação em dois idiomas.

A base da sociabilidade, e portanto da relação permanente entre os indivíduos, é a língua com tudo quanto traz em si e consigo que define e forma a Nação. Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diferentes, em que somos iniciados à nascença; e cada uma tem, no idioma que é seu, a sua própria palavra de passe (idem, p. 120 e 122).


Força e vitalidade das nações



(1) Uma nação é forte na proporção em que; (a) tem uma individualidade própria; b) responde facilmente às influências civilizacionais; (2) os períodos de exaltação e depressão das nacionalidades dependem de leis sociais desconhecidas, cuja acção porém se revela produzindo aqueles resultados; são de três ordens: (a) o período em que uma nação simplesmente tem uma individualidade própria; (b) o período em que uma nação, além de ter uma individualidade própria, e de responder facilmente às influências estrangeiras, cria elementos civilizacionais [melhor: (a) uma destas coisas]; (3) segundo as nações estes elementos variam; há as: (a) nações criadoras, que são aquelas que no seu período simples, sem ter individualidade própria nem responder facilmente às influências estranhas, são contudo criadoras; estas nações apresentam no seu período médio uma junção dessa qualidade criadora basilar com a de responder a influências estranhas: e no seu período máximo reúnem as três qualidades.


Três Imperialismos

(1) O que procura não dominar materialmente, mas influenciar; dominar pela absorção psíquica. (É um imperialismo de expansão espiritual - A França é o grande exemplo); (2) O que procura criar novos valores civilizacionais para despertar outras nações. A Grécia, Portugal das descobertas; (3) O que procura dominar ou colonizar para civilizar ou modificar as raças indígenas, sejam inferiores, decadentes ou apenas civilizadas. (Última fase do império colonial inglês). É preciso não cair no erro de julgar que qualquer destes imperialismos é necessariamente consciente. Pode sê-lo e pode não o ser. O resultado da acção, o seu sentido deduzível [?] é que vale - não a intenção, senão correctivamente.

Na evolução de uma civilização, o primeiro estádio é o do imperialismo de domínio; segue-se o da expansão; acaba pelo da cultura. É que a uma civilização decadente, onde o poder militar fraqueja, onde o comércio [...], só resta de grande a cultura que produziu, porque essa - ao contrário da força militar e do vigor comercial, que são coisas presentes domina desde o passado, fica.

Assim, o estádio da Renascença foi o do Imperialismo de domínio, o do século XIX, o da expansão; passamos agora, através da dissolução desses dois imperialismos, para a formação do imperialismo de cultura. Dominavam menos na Renascença aquelas nações cujo império não era de domínio: assim, dominavam a Espanha principalmente, e Portugal, por exemplo, na proporção em que foi de domínio o seu essencial imperialismo de cultura (Idem, p. 222 e 223).


Um imperialismo de poetas

É um imperialismo de gramáticos? O imperialismo dos gramáticos dura mais e vai mais fundo que o dos generais. É um imperialismo de poetas? Seja. A frase não é ridícula senão para quem defende o antigo imperialismo ridículo. O imperialismo de poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece, se o não lembrar o poeta que os cante. Dizemos Cromwell fez, Milton diz. E nos termos longínquos em que não houver já Inglaterra (porque a Inglaterra não tem a propriedade de ser eterna), não será Cromwell lembrado senão porque Milton a ele se refere num soneto. Com o fim da Inglaterra terá fim o que se pode supor a obra de Cromwell, ou aquela em que colaborou. Mas a poesia de Milton só terá fim quando o tiver o homem sobre a terra, ou a civilização inteira, e, mesmo então, quem sabe se terá um fim (Idem, p. 240).


Ser intensamente patriota

A Nação, sendo uma realidade social, não o é material: é mais um tronco que uma raiz. O indivíduo e a Humanidade são lugares, a Nação o caminho entre eles. É através da fraternidade patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado, que gradualmente nos sublimamos, ou sublimaremos, até à fraternidade com todos os homens.




Segue de aqui que, quanto mais intensamente formos patriotas - desde que saibamos ser patriotas -, mais intensamente nos estaremos preparando, e connosco aos que estão connosco, para um consentimento humano futuro, que, nem que Deus o faça impossível, deveremos deixar de ter por desejável. A Nação é a escola presente para a super-Nação futura. Cumpre, porém, não esquecer que estamos ainda, e durante séculos estaremos, na escola e só na escola.

Ser intensamente patriota é três coisas. É, primeiro, valorizar em nós o indivíduo que somos, e fazer o possível por que se valorizem os nossos compatriotas, para que assim a Nação, que é a suma viva dos indivíduos que a compõem, e não o amontoado de pedras e areia que compõem o seu território, ou a colecção de palavras separadas ou ligadas de que se forma o seu léxico ou a sua gramática - possa orgulhar-se de nós, que, porque ela nos criou, somos seus filhos, e seus pais, porque a vamos criando. [...] (De Para a Compreensão da Mensagem, PI, p. 436 e 437. Texto de 1935).


(...) A grande ruptura de equilíbrio

Encarando o problema português com o mesmo critério e, portanto com o mesmo propósito de simplificação, constata-se, sem grande trabalho, que na nossa vida nacional se deu uma grande ruptura de equilíbrio, e, muito depois, duas outras perturbações, de carácter secundário, e subsidiárias daquela.

Onde quer que se coloque o início da nossa decadência - da decadência resultante do formidável esforço com que realizamos as descobertas e as conquistas -, aí se deve colocar o início da grande ruptura de equilíbrio que se deu na vida nacional. Com a dispersão por todo o mundo e a morte em tantos combates, precisamente daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso povo foi a pouco e pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, numa sociedade, instintivamente reagem contra todo o avanço. É um dos casos mais visíveis da criação de uma predominância das forças conservadoras. Com isto, visto à luz do que se explicou, queda revelado o porquê da nossa decadência.

Todos os fenómenos se seguiram, que na devida altura detalhei, como o seguimento fatal da supertradicionalização. O que restava de progressivo desnacionalizou-se depressa. Cavou-se um abismo entre esses e a maioria do país. Em uns e outros, o nível intelectual, o nível cultural e o nível da vontade prática e útil foi baixando. Um ou outro homem de maior destaque surgia e desaparecia e a sua obra, quando não morria com ele, morria pouco depois, pois não havia coesão social, por onde se propagasse, nem interesse intelectual, por onde, ao menos, se mantivesse. A Restauração, livrando-nos da maior vergonha externa, não nos livrou, nem trouxe quem nos livrasse, da vergonha interna paralela. Ficámos independentes como país e dependentes como indivíduos. Tornámos a ser portugueses de nacionalidade, mas nunca mais tornámos a ser portugueses de mentalidade. Nem portugueses, nem nada.

Só da obra do Marquês de Pombal alguma coisa ficou, e isso não pela energia do homem, nem mesmo pelas suas grandes qualidades de organizador, mas pelo ponto de apoio comercial do país. No fim deste estudo se verá a que vem esta observação. O que Pombal criou, porém, sumiu-se com as invasões francesas. Depois delas a nossa desnacionalização teve o seu período abísmico: só o nome da nossa independência nos ficou.


Falta de consciência superior da nacionalidade

No seu sentido superior e profundo, a desvalorização internacional da nação portuguesa deriva de três factores conjugados (da acção conjugada de três factores) - a incultura, geral como profissional, do indivíduo português e sobretudo do indivíduo das classes médias; a deficiência de propaganda de Portugal no estrangeiro; e a ausência de consciência superior da nacionalidade.


D. João I de Portugal, fundador da Dinastia de Avis.




Seria, tanto inútil como por demais extenso, procurar as causas da existência e concorrência (acção concorrente) destes três factores. A causa fundamental, não há dúvida, é a longa decadência em que entrámos desde o fim da dinastia de Avis. Por decairmos, decaíram paralelamente o indivíduo português e o Estado Português, administrado por esses indivíduos. E, decaindo o indivíduo e o Estado, deixou de haver uma consciência superior da nacionalidade e dos fins nacionais, porque um povo decadente servido por um estado inteligente, a não pode ter; deixou de haver cultura geral, porque nem o estado educava, nem nos indivíduos havia, por decadentes, o interesse civilizado pela cultura; deixou de haver cultura profissional, porque ausente o estímulo, de orgulho nacional, de concorrer com outras nações, desaparecia a razão para o aperfeiçoamento de cada um no seu mister; e deixou de haver a precisa propaganda de Portugal no estrangeiro, porque, falhos de classes superiores internacionalmente proeminentes não tínhamos a propaganda natural da superioridade ou nas artes ou nas ciências, e, mal administrado o Estado, não o havia de ser bem exclusivamente na parte superior da diplomacia, nem, falho o orgulho nacional, havia quem, individualmente, se ocupasse em o erguer ante o estrangeiro.

Não ocupamos, ante o geral da civilização, lugar mais proeminente, antes menos, do que no abismo da nossa decadência. O nosso homem das classes médias - e as classes médias são o esteio de um país - é mal culto, ignorante, profissionalmente instintivo ou atado (profissionalmente no comércio); a propaganda da nossa terra é descurada pelo estado, absorvido por políticos, pelos indivíduos, desnacionalizados e inertes, para tudo quanto não seja os seus baixos interesses ou os interesses superiores da sua política inferior; e a invasão das ideias estrangeiras, pervertendo a própria substância do patriotismo que restava entre nós, privou-nos de podermos criar, não já um orgulho nacional, mas uma simples consciência superior da nossa nacionalidade (Idem, p. 124).


A nossa não lusitanidade íntima...

A nossa ruína cultural, a nossa não lusitanidade íntima, esse é o mal que nos mina; todos os outros, por graves que sejam, podem passar, podem ter solução. Mas para aquilo que, continuado, é a morte mesma, não há solução (Idem, p. 128).

Mas estes breves e dispersos apontamentos serão ultrapassados pelo melhor do esforço mental de Fernando Pessoa: a recriação mítica e a acção poética. (in António Quadros, Fernando Pessoa, Iniciação Global à Obra, Arcádia, 1982, II Vol., pp. 293-301).


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