Desembaraçado desde a extinção dos jesuítas da sua preocupação suprema, Pombal pôde consagrar-se mais livremente à administração interna, e nesta parte não foram os últimos anos do seu Governo os menos operosos de todo ele. Infatigável, aos 77 anos, conservava a energia da juventude, a actividade do período culminante da existência. Ao terminar o reinado, o embaixador francês, marquês de Blosset, acha que ele, «são de corpo e de espírito, se julga imortal, e fala de vastos projectos que nem seus filhos poderiam em vida realizar» (1).
No longo estádio de mais de um quarto de século deixara pelo caminho, desaparecidos para sempre, alguns dos companheiros: seu irmão Francisco Xavier de Mendonça, D. Luís da Cunha, arrebatados pela morte; Tomé Corte Real que a doença impossibilitara; Diogo de Mendonça e José Seabra arrojados aos distantes exílios. Da primeira hora restava ele só. Os ministros, seus actuais colaboradores, Martinho de Melo, da Marinha; Aires de Sá, dos Negócios Estrangeiros; o cardeal da Cunha, ministro assistente, seriam os epígonos da regeneração nacional.
Esta fora realizada por ele, assim entendia, de modo eficaz. A tensão do poder régio atingira o máximo. A Santa Sé, finalmente, humilhara-se; a Inquisição obedecia-lhe; os jesuítas eram uma tribo dispersa na Europa Oriental, a mendigar a protecção de Frederico II, protestante, ou da imperatriz Catarina, sismática. Com a repressão de 1756 no Porto para com o povo, com a de 1758 para a nobreza, excluíra-se o risco de qualquer reacção violenta contra a autoridade. À vontade real, no âmbito que lhe era lícito pretender, nenhuma força estranha se contrapunha; e, para definitivamente assentar o direito, fizera declarar informe, absurdo, ignorante, mais ainda, apócrifo, o livro célebre em que o doutor Velasco, lente da Universidade, um blasfemo, vindicando a aclamação de D. João IV, pronunciara, respondendo aos castelhanos, que o poder dos reis lhes vem dos povos, que a estes é lícito destituir os monarcas intrusos ou tiranos (2).
Conseguido isto, para o serviço dessa vontade, cumpria tornar o País independente e próspero. Para esse fim o tinha, até hoje lhe foi possível, emancipado dos estrangeiros, dando impulso ao comércio, à navegação, à agricultura, e suscitando indústrias novas. Desde a Companhia do Grão-Pará, que tantos protestos levantara, outras havia criado, com intuito de impelir as classes abastadas às empresas mercantis e despertar as iniciativas. Dessas fundações a mais notável fora certamente a Companhia do Alto Douro, sustentada por 20 anos contra os ataques veementes da Inglaterra, e cujo privilégio, terminado o primeiro período, renovara em 1776 por prazo igual.
Não encontrando na população os capitais disponíveis, as aptidões técnicas, o impulso nativo para as indústrias fabris, cuidou de as estabelecer ele próprio e, com os capitais do Estado, criara as fábricas de sedas e louças em Lisboa, as de lanifícios na Covilhã, Fundão e Portalegre, de tecidos de algodão em Alcobaça, de chapéus em Pombal, e várias outras; a Guilherme Stephens, inglês, adiantara 80 000 mil cruzados dos cofres públicos para montar a florescente fábrica de vidros da Marinha Grande. Por este meio, e com as isenções fiscais, os privilégios, alentara as manufacturas e as aclimara no País. Nesse fito, além de outras providências, proibira a introdução de chapéus do estrangeiro e a de louça que não fosse do Oriente. Para educar o trabalho nacional, fizera que viessem de fora do reino mestres de relojoaria, fundições, cutelaria, estuques, cerâmica, tinturaria e outras artes; e colmara obra de fomento material instituindo a Aula de Comércio, a primeira que houve na Europa, e de onde em pouco tempo saíram auxiliares hábeis de escrita, na arrumação das contas e na aritmética, preciosos colaboradores que até aí faltavam nas casas de negócio e nas estações públicas.
Nas artes liberais, a arquitectura e a escultura haviam medrado. O plano de reedificação da cidade, em seguida ao terramoto, devia-se ao arquitecto Eugénio dos Santos, que ele soubera escolher entre os da escola de Mafra, onde a monstruosa construção de João V fora um seminário de artistas notáveis. A disposição regular das novas casas e das ruas, o majestoso traçado da Praça do Comércio, o monumento soberbo do rei D. José, tornavam Lisboa rival das mais sumptuosas capitais, imunizada de outra catástrofe por um dúctil arcabouço de madeira nas edificações.
Ao mesmo passo, havia providências de outra ordem, que para a sua administração seriam eterna glória. Expelindo os jesuítas, sacudira do País, como julgava, a lepra que por 200 anos o tinha gafado. A reforma da Universidade, com o aplauso da Europa culta, era disso a brilhante consequência. Investindo com a superstição e o preconceito secular, restituíra aos cristãos-novos a consideração social, e derrogara as leis que os excluíam dos cargos públicos e das ordens militares. Em voos de mais alcance, emancipara os índios da América da tutela de missionários e colonos, e concedera-lhes direitos iguais aos dos outros portugueses; e, honrando a civilização da Europa, extinguira a escravidão do reino, declarando livres os negros que de futuro entrassem, e os indivíduos que nelem viesse, a nascer do ventre cativo, alguns pela mestiçagem de gerações sucessivas mais alvos do que seus pretendidos senhores.
Tudo isto representava uma enorme soma de trabalho, e um diuturno lutar contra a oposição do interior e as dificuldades, a que uma nação pequena e fraca está sujeita perante as ambições do exterior. Por essa razão, o seu nome de estadista genial ficaria na história. Assim conssiderava ele a sua obra, e assim lho repetiam em torno, não faltando a admiração do estrangeiro, surpreso das energias de um Governo tantos anos apagado e frouxo na sua acção diplomática e administrativa. O embaixador francês, por exemplo, encontrava conjuntas nele as qualidades que separadamente distinguiram Richilieu, Mazarin e Alberoni (3).
A inauguração da estátua equestre, a 6 de Junho de 1775, fora a apoteose do regime. Sob a figura do soberano era o ministro divinizado. O terramoto arrasara Lisboa para lhe dar a ele o ensejo deste triunfo. Através do rei, que era a sombra do poder, recebia ele, poder verdadeiro, as homenagens que para o outro decretara. O guerreiro, no corcel da batalha, com o seu olhar de bronze - Statua statuoe, como rezava o pasquim colado no sopé, e nada melhor que este dito caracteriza a comemoração -, o guerreiro, lá no alto, não era mais que um símbolo, o do absolutismo robustecido, e por ele Pombal confiscado, em proveito da sua obra de engrandecimento próprio e revivificação do País. As serpes, esmagadas aos pés do cavalo representam os inimigos que o ministro vencera, as intrigas que anulara; e, aos lados do pedestal, alegorias triunfais reportavam-se a ele, ali presente no medalhão, que não era, como a estátua superior, a imagem de uma abstracção, mas o homem real, de cabeleira e casaca, semblante carregado, ao peito a cruz de Cristo, tal qual usavam vê-los aqueles que nesta hora com fervor o aclamavam, ou despeitados a meia voz o maldiziam.
Estátua equestre de D. José I |
Dentro do País tudo obediente se acurvava ao seu arbítrio. Não havia resistência que o seu jugo não dobrasse, nem excessos ou erros de mando que o aplauso não cobrisse. Da abjecção geral emergem, porém, sem mácula, duas graciosas figuras de mulher, duas crianças de forte coração, que ousam afrontar o potentado, e vindicam a dignidade humana, ultrajada pela cobardia de tantos que não tinham por desculpa a fraqueza do sexo.
Isabel de Sousa, filha do ministro de Portugal em Paris, D. Vicente de Sousa Coutinho, obrigada aos 15 anos a desposar o filho segundo de Pombal, futuro marquês, resiste às solicitações do marido, jovem como ela, às insinuações, às ameaças, ardis e provavelmente a toda a sorte de violências, e guarda coração e virginal pureza para aquele que já antes escolhera, forçando o ministro temido a requerer, três anos passados, a anulação do matrimónio e abrir mão da fortuna, com que ideara arredondar a sua já grande casa. O encerro em um convento, até à acessão de D. Maria I, foi o preço que à gentil heroína custou a resistência.
Leonor de Almeida, o culto espírito, a poetisa, depois marquesa de Alorna, prisioneira de Estado, com sua mãe, aos 8 anos de idade, como parenta dos Távoras, aos 18 anos lança um desafio a um grande, o arcebispo de Lacedemónia, que por uma fútil infracção à disciplina monástica lhe cominava a ira de Pombal, os dois versos de Corneille:
Le coeur d'Eléonnore est trop nobre et trop franc
Pour craindre ou respecter le bourreau de son sang!
Pour craindre ou respecter le bourreau de son sang!
O repente audacioso da donzela foi punido. Ao semideus injuriado bastava, por vingança, asfixiar-lhe a juventude no claustro, e apartá-la para sempre da liberdade e do amor.
Execução dos Távoras |
Omnipotente, afeito às subserviências e lisonjas, Pombal, elevado ao coronal das ambições, conservava, contudo, entre o fausto da corte, a virtude austera da parcimónia, aprendida nos anos, forçadamente sóbrios, da mocidade. Em contraste com a grande representação política, o seu viver era modesto. Tirante a escolta de cavalo que, desde a execução dos Távoras, lhe seguia a carruagem, nada mais ostentava que exteriormente o exaltasse. Passado o terramoto, residiu sempre em uma barraca, contígua à que servia de paço ao rei. Não tinha fausto de mesa ou de equipagens. Os criados eram poucos. Em 1776 andava em Lisboa na mesma carruagem em que, 16 anos antes, fizera a jornada de Viena de Áustria (4). Não usava jóias mais que o hábito de Cristo de brilhantes. Baixela de prata tinha a que lhe servira em Londres e Viena, de sorte que, quando eram numerosos os convivas, nos jantares de cerimónia, mandava pedir por empréstimo as peças precisas aos colegas do ministério (5). A economia de quem quer juntar fortuna, para deixar aos filhos, era a regra da sua vida.
Em compensação, nenhuma hora achava em demasia para os seus actos de estadista. Foi assim que, ao inaugurar-se a estátua, no auge da grandeza e da satisfação própria, entendeu fazer o balanço do reinado, e pôr-lhe a rubrica daquele em cujo nome, no espaço de 25 anos, para bem ou para mal, sacudira um povo dócil, espavorido de seus ímpetos. Para esse fim levou ao rei um memorial, que era o compêndio da sua administração, e o altissonante panegírico dela (6). Não que se arrogasse méritos pessoais; tudo dizia feito por indicação do soberano, a quem a majestade do trono infundia tino e saber, Do mesmo modo com as ordens régias se havia de desculpar dos actos cruéis. Dele próprio havia somente «a fidelidade, o zelo, o amor ao real paço», e a fortuna de ser o escolhido executor das «iluminadas e prudentes resoluções», que um cérebro augusto elaborava. Mal amanhadas lisonjas, que só a boçalidade mais soez enganariam. Através da solene adulação, nunca a vaidade humana com mais soberbia se afirmou.
Sem mais recato, e sem temer o desmentido, a que ninguém já se abalança, Carvalho proclama renascida a época brilhante de D. Manuel I e D. João III; opulento mais do que então o comércio, florescentes as indústrias, próspera a agricultura, as artes em progresso, as boas letras volvidas à perfeição, das melhores épocas. E, num arroubo de satisfação, exalta «o estado da filologia ou das belas letras, que servem de base a todas as ciências», comemora o afluxo das prosas e poesias - foram mais de600 autores - que apareceram na Mesa Censória a celebrar a inauguração, em português, latim, grego, hebraico e arábico «com a pureza de estilo e elegância dos séculos de Demóstenes, dos Homeros, dos Túlios, dos Virgílios, dos Horácios em Roma, e dos Teives, Andrades, Gouveias, Resendes, Barros, Camões e Bernardes em Portugal» (7). Como se vê, três anos do novo regime universitário tinham bastado, segundo o dizer seu, para sacudir do País a ignorância, e soerguer a literatura da abjecção, que os jesuítas tinham, em dois séculos, preparado. Com isto, baixando às coisas ínfimas, sem curar do ridículo, até à multidão das bandejas de prata, nos pantagruélicos festins da solenidade, o luxo dos trajes e carruagens, o adiantamento a que chegou neste reinado feliz a caligrafia, de modo que «quando até o ano de 1750 era rara a pessoa que escrevesse uma carta com boa letra, há hoje», afirmava, «a mesma raridade em encontrar quem escreva mal» (8); tudo é tema para enaltecer o seu governo benéfico e fecundo (9).
A este ímpar de vaidades, às louvaminhas dos turibulários, veio dar a final consagração a presumida tentativa contra a sua vida, mostrando que o ministro se considerava pessoa à parte entre os vassalos, afim na intangibilidade e prerrogativas à do rei. Foi um caso de anarquismo por antecipação de mais de 100 anos. Segundo uma versão saída a lume, o genovês João Baptista Pele, forasteiro mal conhecido em Lisboa, propusera-se assassiná-lo, por meio de um petardo, colocado sob o assento da carruagem, e preparado para rebentar durante o trajecto para o Terreiro do Paço no dia dos festejos. A coincidência do assassínio com a solenidade; a falta de testemunhas, a não ser o único denunciante; a superabundância de provas - bilhetes acusadores que o criminoso, em vez de destruir, parecia apostado a deixar por onde pudessem ser apanhados -, a persistente negativa através dos tormentos, tudo leva a crer que a protérvia de espiões inventou este atentado. Cúmplices ou mandantes, para a empresa de tal lote, só dois ou três embuçados, vagamente entrevistos, e o autor desconhecido dos bilhetes, cujo teor, exuberante em pormenores comprometedores, de longe insinua falsidade. É certo que do processo dirigido, como o dos regicidas, pelo primeiro-ministro, consta haverem-se encontrado no quarto de Pele os explosivos, moldes de fechaduras, que se verificou serem da cocheira de Pombal, e outros utensílios do crime. O infeliz, que tinha no bolso as chaves, emudecia, não atinando explicar como tinham vindo aqueles objectos a sua casa; e as façanhas dos que hoje chamamos agentes provocadores, autorizam a presumir que não seria a estupefacção simulada.
Detido Pele, em seguida a uma vã correria, com os esbirros no encalço, foi declarado réu de lesa-majestade. Como para com os Távoras puseram-se de banda as leis do reino; julgamento sumário, condenação inevitável. Pena, igualmente no arbítrio dos juízes, a que em França padecera Damiens o regicida. Tortura ordinária e extraordinária, mãos decepadas, o corpo esquartejado por cavalos, crueldade nunca vista em Portugal. A agonia do infeliz foi atroz, mas Carvalho tinha uma vingança de rei.
Não obstante o servilismo em que vivia sepultado o País, não faltavam murmurações. O horror da execução, a insuficiência da prova, como se viu da sentença publicada, a desproporção da pena a um delito frustrado, se é que algum houve, do que muitos duvidavam, tudo isso acirrava a pública aversão ao tirano, a qual por latente não era menos real. Já, sopitando o terror, corriam boatos de reacção. Dizia-se que, na inauguração da estátua, planeara ele proclamar herdeiro da coroa o princípe D. José, excluindo-se a mãe, natural sucessora, a princesa do Brasil; que muitos fidalgos tinham ido, com armas ocultas, à cerimónia para se oporem à declaração; que as tropas municiadas estavam de prevenção para abafar qualquer distúrbio, ou incoveniente manifestação; que finalmente o projecto havia gorado por se pronunciar contra ele a corte de Espanha, cujas tropas se moviam para a fronteira (10).
Se foi certo, mais havia de acerar isso em Pombal a tendência à repressão, e ao furor nos castigos. A última de suas explosões, de todas a mais cruel, foi o incêndio da Trafaria, com muitas mortes e prisões. Já o rei adoecera para morrer, e a fúria do ministro crescia, com prenúncios, que via desfavoráveis, da sua futura sorte. Com o pretexto de que lá se acoitavam, com os pescadores, muitos fugitivos à recruta, então activa pelos prospectos de guerra com a Espanha, o juiz Manique, esbirro pronto às violências, atravessou o Tejo, à frente de soldados, em uma sombria noite de Janeiro, para incendiar as pobres choupanas, de colmo e tábuas, onde dormiam os labutadores do mar com suas famílias. O intento, pelo modo da execução, tanto seria de colher no pânico os transfugas, como destruir, qual ninhada de feras, os habitantes. Ao crepitar das chamas, precipitavam-se os desditosos de encontro ao cerco, mulheres, crianças e velhos no torvelinho. Houve mortes; a compaixão dos soldados poupou a muitos, porventura iludindo as ordens. Conhecido o facto, o clamor sobre a barbaridade foi geral. Cavalho justificou-se mais tarde, dizendo que o lugar era um coiro de criminosos, os pescadores não pagavam os tributos, espancavam os fiscais, e que o rei para os punir ordenara que se arrasasse a povoação. Salvo o mandado do soberano, que agonizava, deve ter sido o caso assim. Sangue e ruína era o que Pombal, nos estos da sua ira insensata, proferira (in O Marquês de Pombal e a sua Época, Clássica Editora, 1990, pp. 260-266).
Notas:
(1) Memória, 2 de Janeiro de 1777, Quad. Elem., VIII, Introd., p. LXII.
(2) Justa aclamação de sereníssimo rei de Portugal D. João IV, Lisboa, 1646, por Francisco Velas de Gouveia, livro condenado por uma junta de lentes e desembargadores, a requerimento do Procurador da Coroa, em 30 de Abril de 1767.
(3) Memórias do marquês de Blosset, 2 de Janeiro de 1777, Quad. Elem., VIII, Introd., p. LXI.
(4) Ratton, Recordações, 187.
(5) Apologia primeira: «Representação que o marquês de Pombal, com carta de 2 de Abril de 1777, mandou a seu filho, para a pôr na presença da rainha, em defesa da calúnia de se haver enriquecido com prevaricação na administração da fazenda real», Colecção Pombalina, Cod. 695, e também impressa em Smith, Memoires, etc.
(6) Observações secretíssimas do marquês de Pombal na ocasião da inauguração da estátua equestre, no dia 6 de Junho de 1775, e entregue por ele mesmo, oito dias depois, ao senhor rei D. José I. Muitas vezes impresso.
(7) Observações secretíssimas, IV.
(8) Observações secretíssimas, III.
(9) Observações secretíssimas, III.
(10) Gramoza, Sucessos de Portugal, I, 73.
Continua
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