O mal de que sofre o ensino das ciências é precisamente o contrário ao mal sofrido pelo ensino de certos ramos de letras. Nestes, como em ciências, não se estudam os problemas, isto é, não se revivem os problemas em todo o significado da sua existência e valor: bordejam-se teorias, fixam-se nomes e, quando muito, lêem-se tratados. As fontes originais desprezam-se, o culto pelo trabalho pessoal não existe. No curso de filosofia estuda-se a história e não os problemas que a constituem. O mesmo em todos os cursos; as literaturas, por exemplo, são todas estudadas sob o ponto de vista histórico. Aqui tomou demasiada importância o que, embora importante, não pode ter primazia: a história. Por isso nas velhas faculdades de letras dois vícios perniciosos e aniquiladores: o filologismo e o historicismo (1). E nelas, como nas faculdades de ciências, carência de reflexão filosófica sobre o que mais importa: o sentido da cultura e o seu valor de influência social. Em ambas desconhecimento dos problemas. Numa, a história desvitalizada desses problemas; noutra, a última solução prática, que, às vezes, não é a última. Muito se tem dito a propósito da reforma da Faculdade de Letras. As páginas da «Seara Nova» e da «Nação Portuguesa» contêm boas sugestões para a remodelação do ensino das filologias (2).
Expostos os males mais flagrantes que enfermam o nosso ensino, sintetizemos um esboço de plano para a nova Universidade, a corrigir ou a desprezar. Nada têm de definitivo as notas que vão seguir-se; pretendem apenas acentuar discordância com a Universidade velha.
A nova Universidade dividir-se-ia em três secções ou faculdades:
1ª. faculdade - Filosofia;
2ª. faculdade - Ciências;
3ª. faculdade - Letras.
A primeira faculdade seria constituída por quatro grupos ou licenciaturas:
a) filosofia;
b) pedagogia;
c) política e economia;
d) história.
d) história.
A segunda faculdade seria constituída pelos grupos:
a) ciências matemáticas;
b) ciências físico-químicas;
c) ciências biológicas;
d) ciências geológicas.
A terceira faculdade seria constituída também por quatro grupos (3):
a) cultura clássica;
b) cultura românica;
c) cultura germânica;
d) cultura portuguesa.
(...) [A Faculdade de Filosofia] seria o núcleo propulsor da Alta Cultura e o centro coordenador de toda a acção especulativa e técnica. Nela, todos os licenciados em ciências ou letras, que pretendessem o magistério médio ou liceal e superior, seriam obrigados a estagiar em filosofia e pedagogia. Escolher-se-iam os candidatos mais competentes para o ensino oficial. O estágio para os seleccionados deveria ser remunerado para permitir uma melhor preparação docente. O magistério primário, preparatório e profissional exigiria igualmente um estágio especial na Faculdade de Filosofia, cuja missão, em parte, seria idêntica à das Escolas Normais Superiores Francesas. O magistério oficial, em todos os seus graus -, sendo um serviço público e para bem da Nação, deveria ter as mesmas facilidades que hoje têm outras profissões consideradas de utilidade pública. Referimo-nos ao Exército e à Marinha que possuem escolas especiais para preparação dos seus orientadores, em condições por nós defendidas para a preparação dos candidatos ao magistério oficial.
(...) Nas faculdades de Ciências reunir-se-iam as ciências pedagógicas com as geográficas e o ensino seria feito em todos os grupos com interesse formativo e não apenas informativo, como já deixámos dito. Criar-se-iam novas cadeiras; extinguir-se-iam muitas das que actualmente existem e acentuar-se-ia a orientação filosófica, correspondente a cada domínio do saber científico.
No grupo de cultura portuguesa, especialização da filologia românica, estudar-se-ia a nossa literatura, a arte e todos os outros aspectos da nossa evolução histórica, como história dos descobrimentos, da colonização, etc. Todas as manifestações da nossa tendência para a filologia e arqueologia seriam bem arrumadas num curso que desenvolveria todas as investigações respeitantes ao país.
Haveria, junto de cada Faculdade, institutos de investigação, onde os alunos provindos dos cursos técnicos que quisessem aprofundar culturalmente a sua especialidade estagiriam com os universitários em trabalho livre e de afirmação de valor pessoal. A estes institutos caberia a mais alta missão: coordenação da técnica com a cultura. Seriam a ponte intermediária entre a escola técnica profissional e a especulação pura. Os institutos jurídicos, de biologia, de histologia, de anatomia, de engenharia, etc., etc., admitiriam os alunos com maior capacidade para o trabalho de investigação original e concederiam a estes os mesmos títulos universitários, depois da publicação de trabalhos previamente discutidos.
Notas:
(2) Agostinho da Silva, n.º 154, de 28 de Março de 1929; R. de Sá Nogueira - Questões de ensino - «Nação Portuguesa», n.º 6, tomo I, série V, de 6 de Dezembro de 1928.
(3) Substituímos filologia por cultura. Queremos com isto significar que estes estudos deverão perder o seu aspecto filológico ou excessivamente gramatical que sempre tiveram entre nós. Em compensação, com a palavra cultura queremos significar que o estudo deve abranger todos os aspectos da vida dos povos a que se refere. Não esquecemos quanto pode ser criticável esta substituição. Haverá culturas especializadas? Não será a negação do que, em geral, queremos significar com este termo? Não será igualmente ilógico o emprego de cultura artística, cultura filosófica, ou cultura científica? Sempre que especializamos a cultura negamo-la. A cultura é sempre cultura do espírito no seu aspecto integral. Os alemães têm a palavra Ausbildung que exprime o que pretendemos dizer com esta substituição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário