quarta-feira, 23 de novembro de 2022

O aristotelismo conimbricense

Escrito por Pinharanda Gomes




«O influxo do augustinismo, a princípio tão presente em filosofia como em teologia, tendeu a dispor de maior presença na teologia, depois que, no século XIII, Aristóteles obteve o primado na escolástica ocidental.»

Pinharanda Gomes («Augustinismo», in «Dicionário de Filosofia Portuguesa»).

 

«Se (...) tudo é para ser pensado, então será preciso remontar a quase dois séculos antes de Justiniano para assistirmos, com a afirmação do decisivo papel da vontade, à definitiva despedida do mundo antigo: ao mesmo tempo que os bárbaros nórdicos devastavam a Itália e saqueavam Roma, Santo Agostinho, primeiro doutor da Igreja e primeiro pensador moderno, fundava na vontade a interpretação, o pensamento e a vivência do cristianismo, traçando assim a ruptura com o pensamento greco-latino e abrindo as portas à modernidade. Patenteação violenta ou mero sinal dessa ruptura, os bárbaros nórdicos vinham atraídos pela luz duma civilização na fonte já apagada, reduziam a escombros as pedras dos templos já sem nada dentro, e ao regressarem a seus países de dias curtos e frios, nevoentos, tristes e inóspitos, levavam envolto nas trevas da sua ignorância o cristianismo interpretado pelo Bispo de Hipona, chama para os aquecer, mas também consumir, pois iriam fazer da vontade um absoluto insaciável.»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).

 

«A decadência do peripatetismo jesuíta; a mania antiaristotélica; o amor próprio das Ordens; levam estas à revalorização das suas tradições escolásticas. Se os franciscanos, contra o aristotelismo conimbricense, reclamavam um Escoto aristotélico, se os carmelitas retomavam João Bacon, os agostinhos quiseram revalidar o filosofismo agostinista. Foi essa a tarefa de D. António da Anunciação, no compêndio Augustini Philosophia Eclectica Christiana (2 vols., 1757-1758) no qual propõe: como Aristóteles é o pai de todas as heresias (e nisto distancia-se de Egídio Romano, que esteve ao lado dos que combateram a condenação do aristotelismo averroísta) o melhor é voltar a Agostinho e a Platão, produzindo um novo augustinismo, enriquecido com autores (Descartes, Malebranche...) de filiação agostinha. Esta filiação permaneceu, via Escoto, nas escolas franciscanas, mas só enquanto as escolas regulares foram imunes aos ventos que sopraram na Europa entre os tempos da Revolução Francesa e a Revolução de 1820, canto de precónio do exílio, em 1834.»

Pinharanda Gomes («Augustinismo», in «Dicionário de Filosofia Portuguesa»).

 

«O Compêndio Histórico [do Estado da Universidade de Coimbra, de 1771] declara que os Jesuítas, em meados do século XVI, eliminaram a tradição que considera autêntica e genuinamente portuguesa, tendo-a substituído por outra orientação, contrária ao espírito e à própria existência de Portugal: a aristotélica-arábico-tomista, na qual são incluídos não apenas Aristóteles, os aristotélicos árabes e S. Tomás, mas ainda Pedro Lombardo, Duns Escoto, Durando e Gabriel Biel.

Qual é então a autêntica, genuína e primitiva tradição filosófica-teológica portuguesa? Um nome aparece como importante, a ser interpretado num contexto complexo: o de Santo Agostinho. Convirá suspeitar, e averiguar, se a oposição não é realmente entre S. Tomás e Santo Agostinho, no cristianismo, Aristóteles e Platão, no helenismo, S. Domingos de Gusmão e S. Francisco de Assis, em termos das duas grandes Ordens Mendicantes. S. Domingos não interessou absolutamente a Leonardo Coimbra; S. Francisco interessou-lhe imenso. Não conheço quaisquer juízos de Álvaro Ribeiro sobre S. Francisco de Assis, o que certamente é muito significativo, dado o verdadeiro desvelo, ou mesmo culto, do seu Mestre pelo grande Santo.»

Manuel Ferreira Patrício («O anti-aristotelismo de Leonardo Coimbra»).


«Qualquer concessão às hipóteses sobre as quais assenta o transformismo impede-nos de ter sentimento de admiração pela Natureza, retira fundamentação e legitimidade à Ética, dá-nos a triste visão calvinista e moderna, tão genialmente sumariada nos pecados contra o Espírito Santo. Esse calvinismo, de que o senso-comum está por de mais infectado, leva a ver sempre no jogo, na arte e no divertimento apenas veículos do mal, que é preciso proibir, reprimir ou fiscalizar, ver, enfim, em todas as formas de júbilo, de alegria e de prazer, incessante perigo para a moral. A insistência nas palavras penitência, expiação, sacrifício enegrece o entendimento do culto, pelo que tira à vida religiosa o aspecto superior de gratidão para com os benefícios presentes no reino da Natureza e de esperança na vinda do reino de Deus.

Explica-se, por isso, a preferência dos filósofos pela “visão franciscana da vida”. Explica-se, também, a presença da tradição franciscana na Terra de Santo António. Entre um povo para o qual a santidade não está necessariamente relacionada com a ascética e a mística, e muito menos com a austeridade voluntariosa e a seriedade sombria, não é de estranhar que seja grande a devoção por S. Francisco de Assis, o santo jogral ou trovador de Deus, para quem não foi escândalo transmutar a Folia em Sofia.»

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).



«“Complemento do tomismo”, “fundamento do existencialismo cristão”, a contemporaneidade só tem um antiaugustinismo em Orlando Vitorino (Refutação da Filosofia Triunfante, 1976) que, não obstante, se lhe opõe principalmente por causa do primado da vontade. Para Orlando Vitorino, o augustinismo está na origem das filosofias modernas (voluntarismos) que recusam o primado aristotélico do intelecto, e conduzem ao materialismo. No entanto, fica de reserva a dúvida se o débito tem de ser imputado, ou ao augustinismo, ou augustianismo.»

Pinharanda Gomes («Augustinismo» in «Dicionário de Filosofia Portuguesa»).

 

«O próprio Agostinho nos descreve, ou nos “confessa” [Confissões, Livro VIII, § 2], como a sua concepção da vontade nasceu de uma solitária meditação sobre o que distingue a religião, em que a filosofia prevalece, da filosofia, em que a religião predomina. Seria, a primeira, característica do mundo antigo, então no seu crepúsculo, a segunda do mundo moderno, então no seu alvor. A meditação incidiu, já numa atitude moderna, sobre o exemplo próximo, vivido e real, dado pela conversão ao cristianismo do filósofo Mário Vitorino, que era, na Roma de então, personalidade intelectual de maior significado. Durante muitos anos, Mário Vitorino reconhecera que a nova religião, e não a dos gregos, seria a verdadeira. Todavia, pensador platonista e tradutor latino dos neoplatónicos, esse conhecimento se lhe afigurava o grau supremo de “conversão” ao cristianismo, rindo-se daqueles que o incitavam a transitar do conhecimento pensado para o culto, para os actos de culto, para a acção. Medita Santo Agostinho que tal trânsito do conhecimento à acção não o decide portanto o pensamento que pensa o que conhece, mas resulta de algo, a vontade, que radicalmente se distingue de pensar e conhecer. A partir desta meditação vai Agostinho estabelecer toda a crítica do saber antigo e toda a edificação do saber moderno: aquele, um saber imperfeito e a todo o momento por fazer, este, um saber de uma vez por todas feito; aquele, o saber de uma religião que dispensa a crença, que não atribui realidade aos deuses com que dá a si mesmo forma religiosa, este, o saber de um único deus e uma absoluta crença.

Doravante, a filosofia grega cairá toda em ruínas como Roma às mãos dos bárbaros. O preceito original do “conhece-te a ti mesmo” aparece a Agostinho como o que é, pela própria natureza do homem, vedado ao homem: “não posso conhecer-me nem ver no fundo de mim”.

E, se além deste impossível, algum conhecimento existe, seus limites estão próximos: “logo esbarra no incompreensível, que está em tudo para onde dirijo os meus olhos”. É aí, nessa barreira, que a vontade se substitui ao pensamento: não posso conhecer-me, não posso saber quem sou, não posso sequer saber que sou, mas “quando quero ou quando não quero, fico bem seguro de que sou eu, e não outrem, quem quer ou quem não quer”. “Algo existe portanto no homem que o próprio espírito ignora”.

E se o prodígio – como lhe chama Agostinho – reside no contraste entre a facilidade com que o espírito domina e sujeita o corpo e a dificuldade com que a si mesmo se domina e sujeita – “até quando sabe que é assistido pela verdade” – tal prodígio destina-se a conduzir a vontade à plenitude de si mesma, à identificação entre o querer e o poder. Aí, a vontade domina igualmente o corpo e a alma, igualmente sujeita a natureza e o espírito.»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).





«O Aristóteles medieval, esse que achamos referenciado em obras literárias, políticas e filosóficas anteriores ao século XVI, é uma presença que só não dizemos incipiente, por ser dominante; em todo o caso, o aristotelismo da escolástica medieval não se acha estruturado. Há uma grande diversidade de critérios quanto ao universo vocabular, nomenclatural e conceptual. A grandeza do aristotelismo conimbricense reside nessa obra de sistematização lógica, semântica e gnoseológica dos conceitos de Aristóteles, finalmente vazados em latim, por forma que as dúvidas medievais quanto ao rigor da trasladação dos conceitos gregos para o vocabulário latino fenecem no quadro filológico e filosófico elaborado pelos Conimbricenses que, afinal, estabeleceram o modo de ler, de traduzir e de interpretar o pensamento de Aristóteles em latim.»

Pinharanda Gomes («Aristotelismo», in «Dicionário de Filosofia Portuguesa»).


«O Mário é um dos grandes herdeiros da cultura portuguesa. O Mário é o sujeito que no mundo mais conhecia a filosofia portuguesa, conhecia mais do que todos em Portugal mesmo! Ele leu todos os filósofos portugueses da renascença, todos os escolásticos portugueses. Ele conhecia aquilo tudo de trás pra diante! Aquilo teve uma influência tremenda para ele! Por que ele ouviu aquele negócio do Leibniz, que dizia: "A filosofia portuguesa recompensará abundantemente aquele que se dedique a ela." O Mário ouviu isso e disse: "Ah é, então eu vou lá." Muitos textos que não tinham edição, ele foi nas bibliotecas de Portugal tirar xerox para estudar em casa. Ele estava tentando reatar uma corrente de influência benéfica que tinha sido totalmente tampada, e nós temos que continuar a fazer a mesma coisa».

Olavo de Carvalho (Curso Online de Filosofia (COF), Aula 09, 6 de Junho de 2009).


«Afastados da Europa Central, por situação geográfica e missão histórica, desatentos à aurora e ao crepúsculo da “filosofia moderna” (da Renascença ao Iluminismo), talvez os portugueses preservassem dessa maneira uma qualidade oculta mas original; assim, o que na linha internacional parece marcha retardatária, talvez possa ser interpretado como fidelidade nobilíssima, se não como astúcia antevisora.

(...) O pensamento hodierno, levando mais longe do que o romantismo o estudo dos conceitos de tempo e de vida, verificou a deficiência filosófica da interpretação determinista da lei natural, da hipótese comteana dos três estados, da generalização indevida da doutrina evolucionista, além de outros dogmas afins. Agora, a problemática filosófica, resultada da crítica aos erros dominantes nos três séculos passados, oferece ao espírito português a possibilidade de verificar a compatibilidade do aristotelismo dos coimbrões com o mais elevado e o mais recente voo do pensamento especulativo

Álvaro Ribeiro («O Problema da Filosofia Portuguesa»).





O aristotelismo conimbricense


Os Commentarii não são expositivos de uma tese dogmática sobre cada um dos problemas filosóficos; são uma enciclopédia de todas as teses sobre cada problema, teses essas expostas e demonstradas umas contra as outras, só que, alfim, o silogismo, em rigor, é elaborado por forma a concluir pelo que chamaríamos tese oficial. Estamos hoje muito afastados do juízo emotivo, e baseado numa evidente ignorância, de Hernâni Cidade – aliás, Hernâni limitou-se a repetir outros antecessores – que julgava os Commentarii, do lado de fora, considerando-os uma simples ruminação peripatética.[1] Na verdade, cada um dos Commentarii substancia-se num exercício de liberdade enciclopédica: todas as teses conhecidas sobre um determinado problema, ou questão, ou artigo, são chamadas à colação. Seguidamente, expostas e descritas. Seguidamente, confrontadas umas com as outras, formulando-se várias sequências de tese/antítese, ou várias cadeias de sim e não. Cada tese é deduzida segundo o esquema lógico. Arguida e/ou refutada, e/ou confutada, e/ou corroborada. Exercendo a liberdade de pensamento, cada um dos estudantes podia, ao menos na mente, formular o silogismo que refutasse a tese oficial, ainda que, do ponto de vista institucional, o não devesse fazer; mas podia fazê-lo, enquanto se limitasse a filosofar.

O método conimbricense adapta o método parisiense, simplificando-o, em vista da eficácia didáctica. No centro da página imprime-se, como retrato, um texto de Aristóteles, sobre a questão. Nas edições portuguesas de Coimbra e de Lisboa, usa-se o texto latino das obras de Aristóteles, diversamente de algum proceder de Pedro da Fonseca que, designadamente na Metafísica, cita directamente os códices gregos. No curso conimbricense de tipografia portuguesa, embora sejam feitas menções dos «graeci interpretes», ou tradutores, o texto aristotélico acha-se sempre impresso em latim. Em algumas edições alemãs e francesas, o centro da página acha-se ocupado pelo mesmo texto, mas em grego. O texto de Aristóteles corresponde à explanatio, ou à explanação do tema, ou do capítulo, ou da questão, pelo que todo o articulado se faz sob a autoridade de Aristóteles. Numa espécie de moldura rectangular, e envolvendo o texto de Aristóteles, opõem-se o comentário do mestre e, à margem do comentário, as glosas e postilas. A matriz tipográfica, assim composta, podia ser transportada de uma terra para outra e facilitar novas edições, mesmo com texto grego, bastando substituir a «caixa» central e adicionar as lições.



Dadas as explanações mediante o texto aristotélico, seguem-se as questiones, ou questões, divididas em artigos. Cada um dos artigos enumera e expõe as várias opiniões em curso sobre o tema, sejam idênticas, contrárias, ou contraditórias. Quando se diz que um certo número de teses não podiam ser ensinadas, com esta proibição queria-se definir o seguinte: que mesmo as teses consideradas erros deviam ser expostas, mas não ensinadas, isto é, não definidas, nem postuladas, como defensáveis. Enfim, no último artigo responde-se às opiniões sofísticas e apresenta-se a resolutione, ou resolução da dificuldade. O esquema básico de maior rigor desenvolve-se segundo capítulos organizados em quaestiones.  Cada quaestione propõe uma sequência de articulus, cada articulus constrói-se num argumento, fechando com a solutione. Seguem-se os artigos com as opiniões ou teses adversas, justapostas à confutação e à refutação, com as necessárias objecções e argumentos. Construído o raciocínio silogístico de certeza demonstrada, procede-se à responsio, ou resposta, por vezes seguida de uma assertione, asserção e, por fim, o debate encerra-se por uma conclusione, segundo o escopo, ou scopus, ou causa final da lição magistral. As questões são uma das partes mais interessantes dos Commentarii, em virtude da clareza e da simplicidade, e do recurso a factos novos – não usados, por exemplo, em Paris, como fossem os contributos dos descobrimentos na ordem da geografia e da cosmografia, ainda que poucos, uma vez nem todos os conhecimentos estarem confirmados por escola.

O curso conimbricense apresenta diversas inovações: evidente modernidade quanto à esfera dos conhecimentos, alargando-se a presença do número de especialidades; uma metodologia expositiva-demonstrativa orientada para o diálogo e a participação na controvérsia; as explanações ao centro do texto, em caracteres tipográficos mais pequenos e, em torno, os comentários questiunculares. Enfim, simplificam-se as questões e as explanações, porque, em vez de ser o professor a ditá-las, punham-se, diante dos estudantes, as fontes originais e magistrais.




O estilo latino dos Comentários é elegante e vivo. Apesar da influência do latim eclesiástico, há um arfar do latim renascentista, dominado por escritores de humanidades, que haviam aprendido Cícero e Quintiliano. Quando se aponta, no latim dos Commentarii, um tónus clássico, significa-se justamente a qualidade do estilo latino das obras, sendo lapidar o estilo de Manuel de Góis, notável escritor. Luís António Verney que, na ordem e no método, aprofundou uma posição anti-conimbricense, ao criticar os autores de livros de filosofia em latim, considera a maior parte deles – portugueses e estrangeiros – de baixo coturno, mas concede em duas excepções: os Conimbricenses e Pedro da Fonseca, por ele considerados como grandes escritores clássicos.[2] Compreendemos, assim, como os escritores dos Commentarii se acham “a meio caminho entre a claridade da Renascença e as sombras do Barroco”[3], sendo lícito questionar se, na sua unidade, o «curso conimbricense» não antecipa o estilo barroco em filosofia, sem prejuízo da sua ancestral inserção na medievalidade, e, mais, com sua origem na ordo disciplinae do liceu aristotélico.

A Segunda Escolástica, de muitos modos condicionante dos Conimbricenses – se é que não foram o Conimbricenses e os Salmanticenses os criadores da chamada Segunda Escolástica[4] – efectua a renovação dos métodos da Filosofia e da Teologia, recuperando as espiritualidades medievais ante-renascentistas – Tomismo e Escotismo, Realismo e Nominalismo – pondo maior esmero no estilo latino por influência do gosto renascentista já barroquizante, corrigindo o latim bárbaro, e regressando ao latim clássico-eclesiástico. Por outro lado, as perspectivas de antiga exclusividade filosófica pró-teológica abrem-se às condicionantes do pensamento da ciência do homem e da política, convertendo o saber numa unidade metodológica, qual essa que os Conimbricenses, apesar de algumas limitações no âmbito das ciências experimentais, exercitaram.

Demoremos um pouco a olhar a coexistência da Renascença e da Segunda Escolástica. A recuperação de Aristóteles não era novidade; iria ser feita de novo, após o baptismo administrado por Tomás de Aquino. Nem se compreenderia que, numa Europa fracturada pelas lutas e polémicas reformistas, se tomasse o Aristóteles literal, em vez do Aristóteles visto, por um lado, através da axiologia renascentista, e, por outro, à luz da lectio tomista. Convém memorar que Tomás de Aquino elaborou o curso de filosofia de acordo com o liceu aristotélico, tendo comentado os seguintes livros: Perihermeneias, Analíticos Posteriores, Física, Do Céu e do Mundo, Meteoros, Geração e Corrupção, da Alma (incluindo o tratado dos Sentidos e da Memória) da Ética, e também da Política. É curioso notar que a sequência conimbricense dispõe de um âmbito muito parecido com o de Tomás de Aquino, incluindo a falta da lição sobre Metafísica, que o Anjo das Escolas preferiu desenvolver na Summa Theologica.

O acesso à lição do Aquinate, por carência de cópias das obras, era mais fácil e oficial na Ordem dos Pregadores, que se reivindicavam de um tomismo literal, embora de cariz funcional, mas a impressão da obra completa de Aquino (a edição de Pio VI, ou edição piana, em 18 volumes, apareceu em Roma em 1570 e 1571) facilitou a vida à Companhia de Jesus, pois dispunha então de uma «livraria», incluindo a edição de Veneza (1593-1594). Sem a disponibilidade destas edições seria difícil estruturar o que se designa por aristotelismo tomístico da Segunda Escolástica, em que se respeitam outras tradições, como a augustiniana, a franscicana de João Duns Escoto e mesmo a cristã-averroísta do carmelita João de Baconthorpe. Todavia, para a escola necessário se tornava um Aristóteles baptizado; e o sacramentador preferencial foi Tomás de Aquino. As Constituições dispuseram: “In Theologia legetur Vetus et Novum Testamentam et doctrina scholastica divi Thomae ... In Logica et Philosophia naturalis et mundi, et metaphysica, doctrina Aristotelis sequenda.”[5] No entanto, a recomendação de Tomás em Teologia, passou também à Filosofia, sendo referencial no curso filosófico, e Tomás deveio como que um colega dos estudantes, um colega mais velho e mais adiantado[6].

«Partes de São Tomás» veio a ser a designação antonomástica da Summa Theologica, a qual se origina em três partes (Prima, Secunda e Tertia) que versam respectivamente a Teologia Fundamental, a Teologia Moral e a Teologia Sacramental. Expressão corrente na nomenclatura vernácula do Tomismo português, tem origem académica, não obstante utilizações de mau gosto, entre escolares, quais a de «andar nas partes de São Tomás», ou «perder as partes de São Tomás». Parece que o mais antigo registo do termo consta de uma cantiga de maldizer do trovador Pero Rodrigues da Fonseca, do séc. XIV, inserida no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, mas acha-se oficializado no alvará de D. Pedro I (22.10.1357) mandando ler essas «partes» nas aulas de Teologia dos Estudos Gerais de Lisboa. De modo mais explícito, o termo é usado no alvará régio (11.11.1542), e nos Estatutos da Universidade de Coimbra (1591), que determinou que todos os estudantes teólogos possuíssem «as partes de Santo Thomaz» e, não as possuindo, fossem impedidos de matrícula e de frequência das aulas, não sendo permitida aos estudantes a desculpa de que as não levavam à aula, por as terem deixado em casa. Os Estatutos de 1654 mantiveram a expressão, hoje em dia pouco ou nada empregada.

Cumpre anotar que os Commentarii se destinam, não a uma Faculdade maior, mas a um Liceu, preparatório dos estudantes para a compleição posterior de um curso profissional – Direito, Medicina, Teologia – na Universidade. Embora o compêndio de Lógica só fosse publicado mais tarde, por motivos de conjuntura, o curso compendia o septívio: a iniciação à arte de pensar, com todo o organon ou arte do juízo perfeito, e a introdução nas ciências naturais e nas ciências morais e metafísicas, ainda que o curso metafísico se não escrevesse, recorrendo-se a outros compêndios. Sendo um curso filosófico, não tinha de abranger a Teologia, atinente a outro curso, qual coroa do septívio, estudada em outra escola, em Coimbra ou Évora[7]

Do ponto de vista pragmático, está correcto o juízo que afirma: “Os filósofos do Mondego mantêm-se fiéis à escolástica do século XIII e à sua aposta em assentar na peripatética o edifício da cultura católica”[8], efectuando a cristianização de Aristóteles depois da descristianização a que fora sujeito pelo averroísmo latino, e apoditicizando a Filosofia à Metafísica e às Ciências Sagradas. Não obstante, pode afirmar-se que os Conimbricenses renovam, de igual modo, a ordo da escolástica arábica oriental, e, enfim, que actualizam o essencial do liceu aristotélico, por isso se tendo constituído no singular “baluarte da filosofia”[9] que se manteve de pé no decurso de dois séculos, ligando a antiguidade à modernidade através da medievalidade e, por isso, conseguindo uma unidade de tempo didáctico e espiritual.

A chave reside na ordem e no método. Eis a teoria: “Do mesmo modo que no universo nada há de mais divino nem mais belo para a vista que a ordem, o mesmo sucede com as doutrinas, às quais nada empresta mais esplendor e dignidade do que a ordem e a disposição das coisas que são ensinadas.”[10] No longo e imponente Proémio aos Commentarii e ao livro de Física, Manuel de Góis assim dispõe. Sem ordem didáctica não há magistério. Fora da ordem há desordem e confusão. O que é a ordem? A ordem, ordo, consiste na aliança da disciplina e da doutrina, as duas mãos do magistério, cuja teoria se funda nos Analíticos Posteriores de Aristóteles. “Doctrinam ut est a magistro Disciplinam vero ut recipitur in discipulo.”[11] Doutrina e disciplina são causas comuns e recíprocas, por isso contemporâneas, simultâneas e coactuais. Como se distinguem, parecendo uma só causa? “ É uma e a mesma ciência que se chama doutrina, e que se chama disciplina. É doutrina, ao vir do mestre, de viva voz ou por escrito. É disciplina, porém, enquanto recebida no discípulo”.[12] A doutrina procede do mestre, mas por tal forma que seja principalmente produzida pelo entendimento do discípulo. O discípulo, nesse caso, filho do mestre? Sebastião do Couto clarifica: o mestre não é um naturador do discípulo, é, dele, um director. Nada mais. Não lhe cabe determinar um homem; cabe-lhe inducare na arte do discernimento, numa preparatio vitae, num acto de preparação do filósofo jovem para a vida adulta: “Doctrina vero ita est a magistro, ut principaliter producatur ab intelectu discipulo.”[13] A imagem grega do ginásio ressurge aí: o liceu não se destina a ensinar a fazer. A sua missão é ensinar a pensar, a iniciar no discernimento – uma doutrina que se faz disciplina, uma disciplina que se faz doutrina, o método por excelência da claridade e da agilidade. Uma «filosofia de salvação».

(In Pinharanda Gomes, Os Conimbricenses, Lisboa, Guimarães Editores, 2.ª edição, 2005, pp. 123-133).



[1] Hernâni Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesa I, Coimbra, 1943, p. 262. As opiniões de H. Cidade foram de há muito rebatidas, com conhecimento de causa, por autores especializados como Domingos Maurício, João Pereira Gomes, António Alberto de Andrade, Amândio Coxito, etc., que emitiram teses a partir do conhecimento intrínseco dos Commentarii. Hernâni Cidade sabia latim, mas nada indica que tivesse lido os Commentarii, emitindo a opinião a partir dos lugares comuns herdados da cultura pombalina.

[2] Luís António Verney, De Re Logica, Coimbra, 1762, p. 305.

[3] José Sebastião da Silva Dias, Portugal e a Cultura Europeia, Coimbra, 1953, p. 39.

[4] P. Gomes, Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa, 1987, pp. 81-87. A opinião de M. de Wulf, tantas vezes citada, explica o valor do Curso: Diz ele: “Trata-se de uma exegese mais ideológica do que literal, dividida em questões, claramente redigidas e agrupadas entre elas; ao mesmo tempo é um inventário dos comentários legados pela antiguidade.” Wulf, Histoire de la Philosophie Médievale, vol. II, 1925, p. 284.

[5] Constitutiones, S. I., Parte IV, cap. 14.

[6] A. A. de Andrade, «S. Tomás de Aquino no Período Áureo da Filosofia Portuguesa», in Contributos para a História da Mentalidade Pedagógica, pp. 39-60.

[7] Mário Brandão, Documentos de D. João III. Coimbra, vol. II, p. 44; Manuel Augusto Rodrigues, «O Ensino de S. Tomás na Universidade de Coimbra», Didaskalia, Vo. IV, 1974, pp. 297-320; P. Quintino Garcia, A Teologia Tomista em Portugal, Porto, 1979.

[8] J. S. Da Silva Dias, O Cânone Filosófico Conimbricense, in Cultura, História e Filosofia, vol. IV, 1985, pp. 257-370: E. Troilo, Averroísmo e Aristotelismo Paduano, Milão, 1939.

[9] Cardeal Mercier, Curso de Filosofia, pref. à edição portuguesa. Cf. P. Gomes, Formas de Pensamento em Portugal (1850-1950), Lisboa, 1986, pp. 203-236).

[10] In Octo Libros Physicorum, I, Prólogo, p. 49.

[11] In Universam Dialecticam, q, II, art.º 1.

[12] Id., id. a 1.

[13] Id., id. Sobre o tema, cf. J. P. Bacelar e Oliveira, in Revista Portuguesa de Filosofia, vol. XIX, 1963, pp. 337-344, uma excelente introdução aos valores da trilogia conimbricense: Magistério – Doutrina – Disciplina.


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