Mosteiro dos Jerónimos |
Infante D. Henrique (Portal Sul). |
Portal Poente |
Igreja de Santa Maria de Belém |
Medalhão com Heráldica (Claustro do Mosteiro dos Jerónimos). |
A tradição portuguesa não pode ser descoberta pelos historiadores da filosofia que se cinjam aos textos impressos ou manuscritos, porque entre a letra e o espírito existiu uma voz que já silenciou. Ignorando a alma portuguesa, ignorando a palavra da alma ou psicologia, ninguém poderá facilmente inferir da paleografia, ou escritos velhos, para a ciência dos princípios, ou arqueologia. Devemos estudar a alma portuguesa que se exprimiu em palavras, actos e obras, aceitando confiadamente tudo quanto é de tradição, antes de procedermos à leitura dos escritos de filosofia que entre nós foram redigidos segundo preceitos internacionais de escolas estrangeiras.
Foi inegavelmente Sampaio Bruno o pensador que mais inteligentemente nos revelou a tradição portuguesa. Filólogo e filósofo, decifrou documentos e interpretou argumentos, com inspiração verdadeiramente genial. Se a filosofia é essencialmente o estudo do invisível, do insensível, do sobrenatural, os resultados desse estudo não se exprimem directamente, mas indirectamente, nas obras de arte, política e religião.
Três tradições concorrem na formação do pensamento português: a judaica, a cristã e a islâmica. Difícil será determinar, na história da Península Ibérica, quais os filósofos mais estudados antes da Reconquista Cristã. No século XII já a filosofia de Aristóteles adquire primado nas sistematizações escolásticas, para avultar nos comentários ortodoxos de Santo Tomás de Aquino.
A Igreja de Cristo era pela maioria dos Portugueses concebida como intermediária entre a Humanidade e a Divindade. Tão alto significado da mediação cristã, próprio da fé medieval, era perfeitamente compatível com uma Humanidade dividida no tempo e no espaço, em povos, nações e culturas. A falácia do ideal uniformizador, ou de uma uniformidade a realizar num futuro instante do tempo ou num ponto central do espaço, não havia perturbado a razão dos homens, - ideal absurdo, porque o espaço e o tempo, factores diferenciantes, não cessam de contrariar as humanas veleidades de uniformização.
Castelo de Tomar |
"Morreu Frei Gualdim, Mestre dos Cavaleiros do Templo em Portugal, em 1195, nos idos [13] de Outubro. Este Castelo de Tomar, como muitos outros, povoou. Descanse em paz". |
Convento de Cristo em Tomar |
Sem o estudo da obra de Dante, de toda a obra e não só da Divina Comédia, dificilmente compreenderemos as tradições que no fim da Idade Média preparam o Renascimento. O século XIII marcava o apogeu da filosofia eclesiástica, apresentando ao mundo cristão as obras de S. Boaventura e de Santo Tomás de Aquino. A obra de Dante dera-nos, porém, uma nova tradição interpretativa de Aristóteles que muito influiria na cultura portuguesa.
Convém aproximar a doutrina dos três planos teológicos - Inferno, Purgatório, Paraíso - com a doutrina dos quatro elementos incluída na cosmologia de Aristóteles. Se o simbolismo da terra é inferior ao simbolismo da água, se o simbolismo pagão da agricultura é inferior ao simbolismo cristão da pescaria, se o simbolismo do túmulo é inferior ao simbolismo da nave, a navegação portuguesa, utilizando os elementos superiores da física, correspondia à tradição de mais fluido e subtil simbolismo. A Terra é uma nave, e as viagens em demanda do Oriente pelo Ocidente visaram a promessa cristã de reintegração do Homem e da Natureza no plano primitivo ou original.
Convém lembrar que o Infante D. Henrique foi protector dos estudos teológicos que, no seu tempo, já eram professados na Universidade Portuguesa. A preocupação do Aquém e Além-Mar, de desvendar os mais terríveis segredos da Natureza, torna-se ocupação dominante da razão que pretende resolver os problemas humanos. A descoberta do caminho marítimo para a Índia, de nova relação do Ocidente com o Oriente, tem um significado mais alto do que aquele que pode ser registado na unificação moderna da geografia com a astronomia.
As três tradições portuguesas decorrem à margem da disciplina clássica e impregnam muito mais a alma popular (como se verifica pela análise linguística, estilística e literária) do que o humanismo espanhol, francês ou italiano, de falsa imitação dos autores gregos e latinos. A distinção entre a filosofia mediterrânea e a filosofia atlântica ainda caracteriza o reinado de D. Manuel I. Depois a mitologia humanista vai a pouco e pouco tomando nas artes a preponderância que antes pertencera às três tradições portuguesas.
Na medida em que decai o angelismo medieval vai-se formando o humanismo moderno. A Escolástica, na interpretação que lhe fora dada por Santo Anselmo - cruzamento de uma razão infinita com uma fé infinita -, sofre a decadência resultante da radical separação entre teologia e filosofia. Deixando a crítica das obras teológicas entregue aos partidários do livre-exame, e deixando que os discípulos de Lutero anulem a distinção entre interpretações ortodoxas e interpretações heterodoxas da Bíblia, os filósofos modernos utilizam os métodos e os descobrimentos das ciências para refutar a lógica e a física de Aristóteles.
Fiéis ao aristotelismo nos mantivemos durante a Idade Moderna, por motivos que os historiadores ainda não conseguiram pôr a claro. A obra de Aristóteles, interpretada por vários comentadores, imprimiu na nossa cultura um racionalismo antitradicionalista cujas consequências foram lamentadas e lamentáveis. Assim se confundiu, na mente de pessoas mal instruídas, a filosofia eclesiástica com a filosofia escolástica, e a filosofia escolástica com a filosofia aristotélico-tomista».
Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).
«... De Álvaro Ribeiro dizia José Marinho que “pensava como o coração pulsa: sem cessar”. Almada Negreiros chamou-lhe “santo científico”. Pinharanda Gomes mantém-se firme em dizê-lo “um santo”, com todo o significado e todas as virtudes que a Igreja dá à palavra. Nenhum dos que com ele conviveram ou sabem ler com proveito seus livros, receia reconhecer que de homem algum ou pensador mais do que dele se pode dizer “um sábio”. E seus discípulos, desde António Telmo e António Quadros, desde Afonso Botelho e Braz Teixeira ao autor destas linhas, têm-no como “o mestre por excelência”.
Socialmente, quer dizer, nas consequências sociais da opinião que a ignorância contente de si formou dele, Álvaro Ribeiro foi, ainda é, um homem antipático e um filósofo odiado, daqueles que são para serem assassinados. Quem o quiser comprovar documentalmente, pode ler o que sobre ele infantilmente escreveram e publicaram um crítico versejador como Casais Monteiro e um crítico que não verseja como Eduardo Lourenço.
Saragago e Eduardo Lourenço |
São esses livros escritos com estilo, palavra que, na acepção dada pelo próprio Álvaro Ribeiro, significa a singularidade inimitável do escritor. Seu estilo desenvolve-se numa sucessão de afirmações, isto é, de teses, ideias, conceitos, logismos, rigorosamente firmes, ou firmados, ou com firmamento, palavra que o filósofo contrapunha à de fundamento, corrente na linguagem filosófica germânica, como o céu estrelado e luminoso se contrapõe às funduras tenebrosas. As afirmações sucedem-se, não por extrínsecas justaposições, mas por deduções, silogismos e inferências que o escritor não perde tempo a descrever, antes entregando ao leitor a tarefa de a si mesmo provar capacidade de inteligência e entendimento filosóficos. Assim nos dão os livros de Álvaro Ribeiro o exemplo de como a filosofia se deve defender, nenhuma facilidade concedendo à mediocridade e à incultura. Não há filosofia de leitura fácil porque leitura fácil é a de imediato entendimento e o entendimento filosófico conduz-se por demoradas meditações. Álvaro Ribeiro gostava de lembrar o que Dante disse do filósofo: “mestre dos que sabem”. A sabedoria é mediadora».
Orlando Vitorino («A filosofia de Álvaro Ribeiro como Doutrina do Espírito»).
«(...) Ser português não é coisa que nasça espontânea da terra. Que não há gerações espontâneas será desnecessário dizê-lo. Tudo pertence a uma única harmonia muito mais geral e generosa do que o mais veemente dos indigenismos. E tanto assim é que o verdadeiro indígena quando sabe ser prudentemente egoísta faz por não cair no isolamento.
Estas palavras estão evidentíssimas na História de Portugal. A primeira dinastia conquista e fixa o nosso território. E uma vez conquistado e firme o nosso território, os portugueses não só não dão por finda a sua missão como, pelo contrário, iniciam a sua acção de não-isolamento e lançam-se à conquista do que já está além da sua própria terra firme, a conquista da universalidade, palavra portuguesíssima mais do que nenhuma outra.
E eis que surge então com a segunda dinastia a figura mais alta da história portuguesa: o infante D. Henrique.
Se perguntarmos a qualquer português, incluindo os mais cultos, qual é a figura mais alta da História portuguesa, não o sabe. E se por acaso acerta com o infante D. Henrique já não atina com o porquê. Eu-próprio fiz a experiência e vós também a podeis fazer neste momento através do Diário de Lisboa onde diariamente as grandes firmas literárias cantam mais entusiasmos do que ensinam conhecimentos históricos e exactos sobre a figura do infante D. Henrique. E é assim mesmo: o português começa por ignorar o que quer dizer português. E então porque é que são portugueses? Porque nasceram em Portugal?! Isso não é razão! Em Portugal nasce muito animal sem ser português: cães, gatos, burros, cobras e lagartos, minhocas e mexilhões.
Desde Afonso Henriques até ao infante D. Henrique era apenas terra, a casa de determinada gente. O infante D. Henrique é quem descobre o sentido para a gente desta terra, e transforma os seus indígenas em portugueses. E de que maneira? De duas maneiras: uma explorando o mar e a outra explorando a terra. Toda a gente que trata da figura do infante D. Henrique ocupa-se exclusivamente da parte que diz respeito ao mar. Porquê? Porque não ocupar-se também da outra parte que não tem nada de menor do que a do mar, precisamente a da terra?
Ao fundar a Escola de Sagres o infante fez-se rodear de quantos necessitava para levar a cabo os nossos feitos de navegação. Mas a sua ideia não estava limitada ao mar. Pelo contrário, o mar era apenas um episódio da sua ideia. E tanto assim é que manda às suas ordens seu irmão o infante D. Pedro, o das sete partidas, para informá-lo pessoalmente do que se passava em terra.
Se nós hoje damos importância apenas às Descobertas marítimas reduzimos a História apenas a feitos e não me parece em nada menos importante a causa e preparação desses mesmos feitos, e sobretudo o significado justo da causa, preparação e feitos. E a verdade é que o infante D. Henrique ao rodear-se em Sagres dos técnicos do mar não podia apenas com estes dados ter encontrado um sentido tão perfeitamente imaginado se isto não fosse já uma dedução das informações que das sete partidas lhe trazia seu irmão o infante D. Pedro.
Numa palavra: a grande clareza de espírito do infante D. Henrique era o resultado dele estar melhor informado do que ninguém no seu tempo do que se passava no mundo conhecido. E por isto, e só por isto, lhe coube a ele avançar pelo desconhecido.
Promontório sagrado da Ponta de Sagres (Algarve). |
Em compensação na última exposição das Belas-Artes e a qual passou em público por modernista, apenas havia dois trabalhos de pintura à altura dos dias da Europa de hoje. O seu autor é português, Mário Eloy, e vive em Berlim. O público não viu sequer as suas pinturas. Houve alguém que me apontou estes trabalhos como puramente germânicos. Insurgi-me violentissimamente contra a injustiça dizendo ao injusto: Pois eu não caibo em mim de alegria por ver nestes dois quadros o genuinamente português dentro do moderno, do actual, do europeu!
Lisboa! Querida Lisboa! Capital da nossa terra! Cabeça de Portugal! Que fazes que não fazes nada por seres Europeia? O que vês tu se não vês nada do que hoje se vê?
O mais espantoso é o caso duma revista literária portuguesa e na qual o seu director respondendo ao conde de Keiserling acaba exactamente com estas palavras: "Basta-me que deste comentário ressalte o erro do ponto de vista europeu para observar e compreender Portugal".
Então, perguntamos em que parte do mundo estamos colocados? Não é por acaso na Europa? Não é exactamente na Europa? Façam favor de lá ir ver no mapa. Não é por acaso que Portugal fica na Europa.
É esta certeza que nos traz aqui hoje para acompanhar a um artista português, o qual, lá na mui europeia Alemanha, participa dos trabalhos do écran europeu que defende heroicamente a universalidade europeia da concorrência milionária da U.S.A.
Acabaram-se os dez minutos.
Adeus».
José de Almada Negreiros («Embaixadores Desconhecidos», in Manifestos e Conferências).
Mestre Almada Negreiros |
Centro de Estudos Europeus. Retrocesso ou progresso?
No momento em que o Dr. Pedro de Moura e Sá propõe a criação de um «Centro de Estudos Europeus», e dado que tal alvitre não pode deixar de corresponder a motivos muito sérios, talvez seja lícito pensar as conveniências e as desvantagens que a realização do projecto necessariamente tornará claras e patentes. Não significa contrariar o propósito digno de tolerância, de respeito e de estima, apresentar alguns reparos, enquanto o alvitre se encontra na fase prévia de aberta discussão.
Custa-nos imaginar um «Centro de Estudos Europeus» fora da Europa Central. Instituí-lo em Lisboa será uma distracção tão lícita como lúdica, idêntica a muitas outras que feliz ou infelizmente têm surgido na sociedade portuguesa. Atrair a Lisboa os «intelectuais» europeus, recebê-los com expressões de afecto, diverti-los com cerimónias e festas, são actos que pertencem à tradição da boa hospitalidade portuguesa, que constituem um excelente programa de turismo, que realizam um convívio agradável e interessante. Se nos é útil, e até lisonjeiro, que o escritor europeu, depois da sua viagem, afirma ter visto em Portugal um país encantador, dotado de óptimo clima e de governo modelar, - o que não contesto, - não podemos, contudo, confundir toda essa actividade com o verdadeiro intercâmbio cultural.
Neste ponto se revela a seriedade da questão. Devemos, portanto, ser agora um pouco mais exigentes, e perguntarmo-nos, se além da «boa impressão turística», poderemos dar ao viajante interessado os meios que o habilitem a bem conhecer a arte, a ciência e a técnica que estamos desenvolvendo, e que, por dever de lealdade, o obriguem a declarar também que os portugueses se encontram num invejável movimento de progresso artístico, científico ou técnico.
Tem-se verificado que, na maior parte dos casos, os intelectuais europeus, apressados em colocar no nosso ambiente os produtos das suas culturas, não se demoram o tempo suficiente para o estudo da lusa nacionalidade, e regressam às origens, convencidos de que nos deram, magnanimamente, uma grande lição. Ora a verdade é que, quanto ao essencial, o português culto se encontra já em nível igual, senão superior, ao de qualquer europeu dos nossos dias. E não é possível um intercâmbio com verdadeira reciprocidade, porque a Europa, indefinida geograficamente, não possui unidade religiosa, civilizacional ou cultural.
A pretensão de reconstituir essa unidade pode levar qualquer escritor europeu a elaborar um ensaio mais ou menos literário, porque é sempre possível escolher arbitrariamente, no passado histórico, estes ou aqueles ingredientes que mais convém ao escopo da dissertação. No entanto, um homem que sabe ver, o pintor José de Almada Negreiros, ainda há poucos meses perguntava num dos seus livros mais significativos: «A cultura universal europeia esquecida pela Europa?».
Eis porque parece marcado de falsidade o desenvolvimento de certa argumentação pela qual se pretende religar o destino épico de Portugal ao destino trágico da Europa, em contradição com os ensinamentos da filosofia da história.
A Europa é caminho do passado. Não nos cumpre retroceder. Teófilo Braga, apesar de positivista, bem nos advertiu nestas palavras dignas de meditação:
«O génio e missão histórica do povo português revelam-se na deslocação das civilizações do Mediterrâneo para o Atlântico, e pela audaciosa actividade marítima, com que iniciaram a era nova de civilização pacífica e industrial. Todas as investigações do nosso passado histórico devem dirigir-se a este fito: mostrar como logicamente cumprimos esse destino, encetando as grandes navegações, e como se deve perpetuar na marcha da humanidade o lugar de honra que nos compete».
Durante os séculos XVI, XVII e XVIII permanecemos pouco interessados no pensamento de Além-Pirenéus e, inegável vantagem, não sofremos as consequências dos erros da filosofia «moderna».
Porque teria escolhido Pascal os Pirenéus - e não o Reno, ou qualquer outra fronteira geográfica, - quando escreveu: «Verité au deçà des Pyrénées, erreur au-delà»?...
Na primeira metade do século XIX procuraram os escritores românticos inspirar-se na tradição medieval, para robustecerem o nosso nacionalismo; na segunda metade, porém, pretendemos obter da Europa, não o pensamento criacionista que ia caracterizando o século, mas a retardatária lição dos iluministas pretéritos. O engano permanece na mente daqueles que ainda desejam «europeizar Portugal» pela aplicação das receitas de Comte, Maurras e Marx; não podemos, porém, considerar de bom augúrio a intenção de escolher na Europa quaisquer novos mentores.
Todas as tentativas para congregar esforços numa obra de cultura são dignas de incitamento. Mas não deixa de ser lícito perguntar se, ao interessarmo-nos assim pelo passado da Europa, não comprometemos o futuro de Portugal.
No plano que ultrapassa as nações, não avultam já os continentes mas tão-só a humanidade. Necessária, de possível demonstração, é a tese de que a humanidade cumprirá o seu destino sobrenatural; contingente é a contribuição de Portugal para esse êxito. Nos tempos de outrora, cremos e quisemos ultrapassar a civilização europeia; nos tempos de agora, tanto podemos voltar a crer e a querer, como podemos deixar a outrem a execução dos desígnios divinos.
No domínio da crença faremos, pois, as últimas afirmações: só o povo português tem possibilidades de dar início a uma cultura superior que fundamente uma civilização original.
Não está, porém, Portugal habilitado a desenvolver essa possibilidade, - porque não crê, e porque não quer. Mas, a querer, a transformação da potência em acto realizar-se-ia num ciclo de sete anos, com o escol existente, mediante condições financeiras que não exigiriam sacrifício público.
Eis porque julgamos dever dar preferência aos estudos portugueses sobre os estudos europeus (in Diário Popular, ano VI, n.º 2088, Lisboa, 22 de Julho de 1948, pp. 1 e 3).
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