Santo Agostinho, retrato de Philippe de Champaigne, no séc. XVII.
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Se é absurdo dizer que o homem antes de chegar à morte já lá está (como é que dela se irá aproximando durante a vida se já lá estava?), sobretudo porque é muito estranho considerá-lo ao mesmo tempo vivo e a morrer, sendo certo que não se pode simultaneamente dormir e estar acordado, - põe-se a questão: quando é que está a morrer? É que, na verdade, antes de a morte chegar, não se está a morrer mas a viver; depois de a morte ter chegado, o homem estará morto e não a morrer. Num caso está ainda «antes» da morte, no outro caso está «depois» da morte. Então quando é que se está «na» morte? É quando se diz que se está a morrer; pois a estes três momentos - «antes», «em» e «depois» - correspondem estes três estados: vivo, a morrer e morto. Quando estará, pois, o homem a morrer ou na morte - de maneira que não esteja nem vivo, isto é, «antes da morte», nem morto, isto é, «depois da morte», mas a morrer, isto é, «na morte»? Realmente, o homem, formado de corpo e alma, está, sem a menor dúvida, vivo: está ainda «antes de morto» e não «na morte». Mas quando a alma se separar, retirando ao corpo toda a sensibilidade, o homem estará «depois da morte» e dir-se-á que está morto. Perece, pois, entre o momento em que está a morrer e o momento de «estar na morte» - porque, se vive ainda, está «antes da morte»; se deixou de viver, está já «depois da morte»; nunca, portanto, se está a morrer, isto é, «na morte».
Da mesma forma, no decorrer do tempo procura-se o presente sem que seja possível encontrá-lo, porque a passagem do futuro ao passado é sem duração (1). Não parece que, depois deste raciocínio, se tem de negar a morte corporal? Se há morte - onde é que ela está que em ninguém pode ela estar e ninguém nela pode estar? Se se vive - ela ainda lá não está; se se está antes da morte, não se está na morte; se se deixou de viver - já lá não está porque se está «depois da morte» e não «na morte». Mas se não há morte nem «antes» nem «depois», a que propósito dizer «antes da morte» e «depois da morte»? Se não há morte, tudo o que se está a dizer é falho de sentido. Oxalá tivéssemos vivido bem no Paraíso para que morte não houvesse realmente! Mas no presente não somente ela existe mas até é ela tão penosa que ninguém a pode explicar com palavras nem com raciocínio algum se pode evitar!
Temos, portanto, de falar como é costume falar-se (não podemos fazê-lo de outra maneira) e digamos «antes da morte» no sentido de «antes que a morte aconteça», como está escrito:
Não louves ninguém antes da sua morte (2).
Digamos também, quando ela aparecer: «Depois da morte deste ou daquele, aconteceu isto ou aquilo». Falemos também do tempo presente como nos for possível, por exemplo: «Este moribundo fez o seu testamento», «o moribundo deixou isto ou aquilo a este ou àquele», se bem que não o poderia fazer sem estar vivo e o fez «antes» e não «na» morte. Falemos ainda como fala a Sagrada Escritura que não hesita em declarar que os mortos, também eles, não estão «depois» mas «na» morte. Daí o seguinte:
Porque não há ninguém na morte que se recorde de ti (3).
De facto, até que revivam, com razão se diz que estão na morte, como se diz que se está no sono até que se acorde. Embora chamemos adormecidos aos que estão no sono, não podemos, porém, chamar moribundos aos que já estão mortos. Não estão, claro está, a morrer (da morte corporal, que é da que estamos a tratar) os que já estão separados dos corpos. Mas é isso, como já se disse, que nenhuma linguagem pode explicar: como é que se pode dizer que os moribundos vivem ou os que estão já mortos, «depois» da morte estão «na» morte? Efectivamente, como é que eles estão «depois» da morte se estão «na» morte? Sobretudo não podendo chamar-se-lhes moribundos como chamamos adormecidos aos que estão no sono e enfermos aos que estão na dor, vivos aos que estão na vida. Mas dizemos que os mortos antes da ressurreição estão na morte, sem, todavia, lhes chamarmos moribundos.
Julgo que surgiu com oportuna conveniência (e não devido a habilidade humana, mas a disposição divina) a impossibilidade em que se vêem os gramáticos de conjugarem em latim o verbo morior (morro) conforme as regras por que se conjugam outros que tais. Assim, da palavra oritur (nasce) vem o pretérito ortus est (nasceu), e todos os verbos semelhantes se conjugam da mesma maneira com particípios pretéritos. Mas a respeito de moritur (morre), se se perguntar pelo pretérito, é costume responder-se mortuus (morreu), dobrando o u. E diz-se mortuus (morto), como se diz fatuus (fátuo), arduus, (árduo), conspicuus (conspícuo) e outras palavras semelhantes que não indicam tempo passado mas, como nomes que são, se declinam sem indicarem tempo. Mas, no caso presente, para conjugar, digamos assim, o que se não pode conjugar, usa-se de um nome como particípio pretérito. Bom é que se não possa conjugar este verbo tal como também não pode conjugar-se a acção que ele significa. Todavia, ajudados pela graça do nosso Redentor, podemos, no que respeita à segunda morte, pelo menos decliná-la (4). Mais temível que a primeira, é ela o pior de todos os males porque não consiste na separação da alma e do corpo mas antes na união de ambos para a pena eterna. Aí, pelo contrário, os homens não estarão nem «antes» nem «depois» da morte, mas sempre «na» morte - e isto nunca «a viver», nunca já mortos, mas sempre «a morrer». Nunca, na verdade, haverá para o homem pior desgraça na morte do que chegar onde a própria morte não será morte!
(In A Cidade de Deus, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, Vol. II, pp. 1179-1182).
Notas:
(1) Confissões, LXI, Cap. XVI, 18-20.
(2) Ante mortem ne laudus hominem quemquam. Écles., XI, 30.
(3) Quoniam non est in morte qui menor sit tui. Salmo VI, 6.
(4) Com certeza que o leitor já se apercebeu de que Santo Agostinho joga com o duplo sentido (que também em português se verifica) do verbo declinare: declinar no sentido de flexão nominal, e declinar no sentido de evitar.
A Consagração de Santo Agostinho, por Jaume Huguet.
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