domingo, 16 de janeiro de 2022

Duas formas características e distintas de sensitividade: a germânica e a portuguesa

Escrito por Álvaro Ribeiro




«Há efectivamente forte generosidade humana e mesmo solidariedade nos portugueses. Esta funciona em termos sentimentais. Incide sobre o próximo, tomado em sentido restrito. A propósito, Marcus Cheke teve uma observação arguta: “... kind and charitable, to his family, to his friends, the friends of his friends, to the beggar in his path. But to other fellow citizens he acknowledges little obligation.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).


«Tanto a filosofia do filósofo como a do poeta são questões de temperamento, mas, ao passo que o temperamento do filósofo é intelectual, o do poeta é emocional; ora, o que é intelectual é essencialmente individual, e o que é emocional é essencialmente colectivo, e portanto, quando se dá num indivíduo representativo da colectividade a que ele pertence.» 

Fernando Pessoa («A Nova Poesia Portuguesa»).

 

«Aconselhando sempre o estudo do humanismo cristão, como propedêutica a toda a filosofia, pedagogia e política, insistindo mais na antropologia, [Leonardo Coimbra] contrariava nos discípulos o interesse por outros aspectos da teologia. Talvez receasse que, distintas e separadas de Cristo, as outras pessoas da Santíssima Trindade fossem objecto de meditação perigosa e conduzissem o pensador ao dualismo metafísico da Matéria e do Espírito. Tal era, aliás, o erro que o nosso mestre apontava nas obras dos poetas Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa.

Via claramente o filósofo que o advento de um Super-Camões não quadrava com a profecia de tradição portuguesa. Deveria ter Fernando Pessoa anunciado a vinda de um Super-Dante, conforme é lícito inferir dos estudos de Miguel Asín Palácios. Estamos ainda em condições de esperar que um poeta de génio, actualizando os estudos de antropologia, cosmologia e teologia, para dar à sua obra uma significação atlântica e não já mediterrânea, escreva em poucos versos uma revelação superior à da Divina Comédia.

Na presença dos mais recentes estudos teológicos, que delimitam a verdade católica referente ao Inferno, terá o nosso poeta épico de imaginar e exprimir em novos termos o equivalente contemporâneo da tríade dantesca. Diremos, sem dúvida, que o Trabalho é a condição existencial do homem expulso do Paraíso Celeste. O silogismo ressaltará facilmente a quem haurir inspiração nos livros sagrados, do Génesis ao Apocalipse.»

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).

 

«Sendo o transcendentalismo panteísta um sistema essencialmente envolvedor de uma fusão de elementos absolutamente opostos, segue-se que a criação resultante da nova alma lusitana deverá envolver, em seu resultado definitivo e último, o estabelecimento de qualquer nova fórmula social onde uma fusão dessas se dê. Uma rápida análise, aqui eliminada, determina facilmente que o raciocínio permite profetizar que a futura criação social da Raça portuguesa será qualquer cousa que seja ao mesmo tempo democrática e aristocrática, ao mesmo tempo ligada à actual fórmula da civilização e a outra cousa nova. Inútil será apontar quão flagrantemente esta dedução vaga e precisa decorre da constatação já feita sobre o carácter fundamental, metafisicamente patente, de alma lusitana. Igualmente inútil deve ser notar quanto essa futura fórmula deve distar do cristianismo, e especialmente do catolicismo, em matéria religiosa; da democracia moderna, em todas as suas formas, em matéria política; do comercialismo e materialismo radicais na vida moderna, em matéria civilizacional geral. E, finalmente, é da mesma inutilidade acrescentar, acentuando e especializando a sua divergência da democracia, que as formas extremas ou perturbadas desta – anarquismo, socialismo, etc. – serão varridas para fora da realidade, mesmo do sonho nacional; os humanitarismos morrerão ante essa nova fórmula social, de portuguesa origem, mais alta, provavelmente, em sentimento religioso do que outra qualquer que tenha havido, mais rude e cruel talvez em prática social do que o mais rude militarismo comercialista. Console-nos isto, desde já, no meio de ver, de leste a oeste de Portugal, a nossa sub-humanidade política e a nossa proletariagem humanitariante. Tudo isso, que afinal é estrangeiro, morrerá de por si, ou à boca dos canhões do nosso Cromwell futuro.

E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas “daquilo de que os sonhos são feitos”. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente.»

Fernando Pessoa («A Nova Poesia Portuguesa»).




«A contradição do universalismo abstracto 

- Um dos grandes argumentos – recentemente invocado em afirmações culturais de diversa origem contra a existência das filosofias nacionais e, consequentemente da filosofia portuguesa, é o de que o pensamento é universal.. O que diz o Sr. Dr. sobre este tema?

- Compreendo e respeito o ponto de vista, mas não me é possível perfilhá-lo. A simples experiência quotidiana ensina que o universal é recebido pelo espaço e pelo tempo. Além dessas limitações naturais, históricas e geográficas, existem hoje limitações técnicas, artificiais, como o falso ideal de um absurdo humanitarismo abstracto, que alguns querem impor pela força, para substituir o ideal da fraternidade universal. Ora repare que até os irmãos são diferentes.

E quem diz irmãos...

- ... diz raças. Para os que perfilham um abstracto universalismo será uma contradição existirem as raças humanas e as raças serem diferentes umas das outras, o que implica necessariamente uma distinção entre superiores e inferiores ou, o que é o mesmo, mais atrasadas e mais adiantadas. E dentro das raças há os povos, com as suas características étnicas. Sabe qual é o melhor processo de combater a resistência da raças e dos povos, em vista a um qualquer totalitarismo?

Diga, Sr. Dr. ...

- É negar-lhes o direito à existência, negar que verdadeiramente existam, negar a evidência. Ora a verdade é diferente deste paradoxo. Existem a etnografia, a etnologia e a antropologia cultural a confirmar uma verdade que resiste a todas as revoluções.

E daqui ao povo português, sei que a sua opinião desconcerta e perturba os sociologistas, que se baseiam sempre nos elementos mais aparentes e mais superficiais para extrair conclusões não apenas pessimistas quanto ao presente, mas ainda quanto ao futuro. Crê que ele tem simplesmente o direito de existir autonomamente ou vai mais longe?

- Vou mais longe, como sabe. Estudos etnológicos me levaram à convicção da superioridade do povo português... Alberto Sampaio, Martins Sarmento, João Bonança, José Leite Vasconcelos, Mendes Correia...

- Mas os sociologistas....

- Bem sei que a observação empírica não é favorável à minha tese. Que miséria fisiológica, a da nossa população!... Isto é hoje. Mas pelo estudo da genética e das ciências afins, cheguei a estar convencido de que, com a educação apropriada, o nosso povo revelaria muito depressa a sua congénita superioridade.

- Superioridade que, embora não sendo evidente, não é pois um mero arroubo lírico de filósofo messiânico...

- A este respeito, penso como Bruno, Fernando Pessoa, Pascoais... Mas quer uma prova dos malefícios do sistema educativo? Tenho observado que o aldeão é mais inteligente do que o cidadão, a mulher do que o homem, a criança do que o adulto, o analfabeto do que o diplomado com o curso superior. Porquê? Porque os pedagogistas ignoram a realidade dos sexos, porque o nosso sistema de ensino, composto de humilhações, exames e concursos, apenas estimula certo espírito de astúcia, reprime as tendências reveladoras de virtudes latentes na alma do povo. Latentes quer dizer que podem esperar até séculos pela revelação, como os grãos de trigo conservados nas múmias do Egipto.

A propósito da abundância de poetas líricos, disse-me várias vezes Leonardo Coimbra que o nosso sistema escolar faz cessar a evolução mental do português aos quinze anos. É verdade. Basta fazer a análise lógica dos compêndios escolares. Depois dos quinze anos tudo é ensinado a martelo, na intenção de reconduzir as novas e mais complexas noções aos esquemas da mentalidade pueril. Outrora, na Idade Média, o povo português atingiu o nível mental dos setenta anos, a tradicional sabedoria de barbas brancas. Estão as provas do que afirmo no folclore e na literatura

«O Testemunho de Álvaro Ribeiro» (Entrevista conduzida por António Quadros, In 57, Ano I, números 3-4, Lisboa, Dezembro, 1957, pp. 6-9).


«Resulta suficientemente claro que sentir e pensar não podem ser o mesmo: todos os seres vivos partilham o primeiro, todavia, poucos possuem o segundo.»

Aristóteles («Da Alma»).




Duas formas características e distintas de sensitividade: a germânica e a portuguesa

Quando for possível reunir em volume os estudos que Leonardo Coimbra escreveu sobre a poesia portuguesa, estudos dispersos e perdidos em dezenas de revistas literárias, verificar-se-á que o hermeneuta, menos atento aos processos da estilística e da versificação, mais se detém a caracterizar a sensitividade e a afectividade dos poetas, e a exaltar a possibilidade de abertura de horizontes novos às almas ansiosas do divino. É de admirar como Leonardo Coimbra notou a constante característica da poesia portuguesa, o tom elegíaco, a melancolia, a delicadeza da sensitividade, e, portanto, a depressão da vitalidade. Especialmente com referência à poesia de amor, tipicamente marcada com estas características, Leonardo Coimbra estabelece a gradação que se desprende da terra, numa espiral que sobe do amor humano ao amor cósmico, e do amor cósmico ao amor divino.

Convém, relembrar, a propósito, o que Fernando Pessoa escrevera acerca da imaginação poética ou imaginação criadora: «Na obra de poesia a ideia e a forma estão ligadas numa dupla unidade, unidade imaginativa, isto é, unidade que vem da fusão da emoção e da ideia que em sua essência é o acto de imaginar. Ora, a imaginação depende da organização dos sentidos do indivíduo: um visual imagina de modo inteiramente diverso que um auditivo, um indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao mundo externo, de modo diferente de ambos. De que depende a organização dos sentidos? Sem dúvida, da hereditariedade. E a hereditariedade o que é que mais transmite e grava? Os característicos da raça. O acto de imaginar é o que, pois, em linha directa descende da alma da raça»[1].

A depressão da vitalidade explica, com efeito, o que já fora anotado por Sampaio Bruno: a deficiência de imaginação criadora, ou de fabulação pujante, na obra dos mais característicos poetas portugueses. Verdade é que à sensitividade portuguesa, tão oposta à sensitividade germânica, pouco agradam ou até atemorizam as quimeras, ou, sejam, os agrupamentos fantasiosos de atributos naturalmente incompatíveis, esses seres fabulosos que prenunciam o futuro desenvolvimento das metamorfoses empecidas, entravadas, estancadas, e a nossa imaginação toma por medida as existências terrestres, com as quais povoa até os mundos supernos e infernos. A sensitividade portuguesa, predominantemente intimista, não se exprime em antíteses grandiosas, prefere aqueles epítetos de transição delicada, ainda que luarenta, nebulosa ou sombria, mas sempre compatível com uma psicologia estritamente humana, ou seja, com uma antropologia que apenas permite ao homem um gradual aperfeiçoamento na terra, partindo da inocência virginal, passando pela dor cruciante, atingindo por fim a santidade.


Leonardo Coimbra, relacionando sempre a arte com a religião, deixa-nos pressentir que a sua visão da poesia portuguesa estava de algum modo iluminada pela piedade italiana, o que não admira num pensador sinceramente influenciado pelo exemplo radiante de S. Francisco de Assis, Santa Catarina de Sena e Santo Afonso de Ligório. Não poderemos dizer que na obra do filósofo português se encontrem vestígios da influência do pensamento espanhol, pois o contemporâneo de Miguel de Unamuno, Ortega y Gasset e Eugénio d’Ors, cujas obras conhecia proficientemente, preferiu realizar o seu apostolado espiritual em diálogo antipositivista com a cultura francesa.

Leonardo Coimbra, inteligente e imaginativo, podia manter-se numa independência nobilíssima perante as obras estrangeiras que discutia e criticava, salvando sempre o seu génio original, mas permitiu com isso que a sua obra escrita, aquela que perdura e sobre a qual se exercerá no futuro o trabalho dos exegetas, figurasse uma falsa atitude de subordinação, se não ao estilo formal, pelo menos à substância permanente do pensamento francês. Ora não é com a França o verdadeiro diálogo hodierno. Outra nação mais poderosa logrou no século XX dominar o melhor pensamento europeu.

Fácil será ver que a directriz da filosofia alemã era ideísta, irónica e dialéctica, tal como se desenvolveu no período romântico de Kant a Hegel. Em nome da vontade antropológica, a filosofia alemã decaiu depois na negação da verdade cosmológica e da verdade teológica, no desespero do tecnicismo, do sociologismo e do ateísmo. A filosofia portuguesa pode estar maculada dos mesmos pecados, mas se considerar o futuro em fidelidade à tradição, reconhecendo a verdade infinita da cosmologia entre a teologia e a antropologia, dará ao nosso povo aquela educação artística que o habilitará a cooperar na redenção da humanidade.

(In A Arte de Filosofar, Portugália Editora, Lisboa, 1955, pp. 221-223).




[1] Fernando Pessoa – A Nova Poesia Portuguesa – Lisboa, 1946, p. 80.



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