segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Princípios políticos de Fernando Pessoa

Escrito por Fernando Pessoa





Fernando Pessoa com o escritor Costa Brochado (Café Martinho da Arcada). 



«Hoje, é isto de este Governo socialista transferir, em grande cerimonial cívico, o sepulcro de Fernando Pessoa para os Jerónimos, ao lado de Camões e do Gama. É a maior homenagem material que os homens do poder político, sempre tão pobres em espírito, podem prestar a um poeta.

Acontece, porém, que um poeta é um homem de poemas e de ideias pois não há poesia sem verdade como se diz, citando alemães, na epígrafe das "Obras Completas" do homenageado. E acontece também que, que entre as ideias, ou verdades, de Fernando Pessoa a mais contrastante e de muitos modos expressa é a do repúdio do socialismo, doutrina que o poeta cientificamente refuta e visceralmente abomina.

Como se pode, então, homenagear Fernando Pessoa e continuar a ser socialista? Ou estes nossos socialistas são, além de suicidas, tolos e tontos ou vão anunciar-nos, já amanhã, que deixaram de ser socialistas. Não há outra hipótese possível».


Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).






Princípios Políticos de Fernando Pessoa (comentário, ordenação e selecção de textos por António Quadros)


1 – Republicano e nacionalista, liberal e anti-totalitário


A «Nota Biográfica»


Numa segunda fase, a provocação cede o lugar à reconstrução teórica ou doutrinária. Fernando Pessoa, desinteressando-se da batalha das ideias a nível internacionalista, antes mergulha na organicidade interna e viva do seu país, tentando compreender o seu logismo e os seus ilogismos, a sua coerência e as suas incoerências, para depois enunciar e seriar os seus principais problemas. Não é que tenha tapado os ouvidos a tal batalha, mas ela apenas o interessou pelos reflexos internos que teriam sobre uma nação, a seu ver mais destinada a influenciar do que a ser influenciada.

Na
Nota Biográfica que elaborou como introdução ao poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais, o próprio Fernando Pessoa enunciou os seus princípios políticos:

Ideologia política:
considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes votaria, embora com pena, pela república. Conservador de estilo inglês, isto é, liberal, dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.

Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».

Posição social: Anticomunista e anti-socialista, o mais deduz-se do que vai dito acima.

Resumo destas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater sempre em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Intolerância».






Poderíamos sintetizar as grandes linhas do seu pensamento político da seguinte forma:

1. Republicano (partidário de uma «República Aristocrática»…).

2. Liberal (com inspiração nos Conservadores Ingleses).

3. Nacionalista místico (de espécie sebastianista).

4. Humanitarista («Tudo pela humanidade…»).

5. Adversário do reaccionarismo, do catolicismo romano, do internacionalismo, do estatismo totalitário, do comunismo, do socialismo, do obscurantismo, do fanatismo, da intolerância.

Muito embora estes elementos (de afirmação e de rejeição) não costumem andar juntos nos sistemas ou ideologias mais conhecidos, Fernando Pessoa sempre os perfilhou com coerência e até com persistente continuidade. Há sem dúvida todo um sistema político implícito no seu pensamento. Se o poeta não chegou a expô-lo em termos doutrinários e organizados, contudo deixou-nos muitos textos onde aqueles princípios surgem mais ou menos desenvolvidos. Eis alguns desses fragmentos, escolhidos de entre os mais significativos.


Nacionalismo e liberalismo


Uma dessas palavras é nacionalismo; liberalismo é outra. A tal ponto se desviaram, no uso e significação corrente, do uso e da significação que legitimamente lhes caberia, que passaram a ser tidas como significando coisas opostas, quando, visto que se reportam a coisas inteiramente díspares, não pode haver entre elas, ou o que significam, qualquer coisa que se pareça com oposição.

Por nacionalismo legitimamente se entende um patriotismo que, excedendo o simples patriotismo instintivo e natural de amar a terra onde se nasceu, e a defender por manifestações externas como a palavra e o combate, a procura defender intelectualmente contra a invasão de estrangeirismos que lhe pervertam a índole ou de internacionalismos que lhe diminuam a personalidade.

Por liberalismo legitimamente se entende aquele critério das relações sociais pelo qual cada homem é considerado como livre para pensar o que quiser e para o exprimir como quiser ou pôr em acção como entender, com o único limite de que essa acção não tolha directamente os iguais direitos dos outros à mesma liberdade.

Como é de ver, estes dois conceitos – nacionalismo e liberalismo – em nada se opõem, em nada se podem opor, um ao outro. O primeiro gira em torno do conceito de Nação – não, note-se bem, de Estado -; o segundo gira em torno do conceito de indivíduo – não, note-se bem, de cidadão. E assim é que o nacionalismo pode ser liberal ou anti-liberal, o liberalismo nacionalista ou anti-nacionalista.



Nação e Estado




Cumpre, chegados aqui, que façamos uma distinção clara e escrupulosa entre Nação e Estado. Se o pensar claramente fosse uma natural disposição humana, não haveria sequer que pensar em estabelecer tal distinção. Infelizmente a clareza do pensamento, assim como a perspicuidade na expressão dele, são, ao que parece, produtos de uma espécie aristocrática, embora, felizmente, não intransmissíveis ao amplo público.

A Nação é uma entidade natural, com raízes no passado, e, poder-se-ia acrescentar, em linguagem paradoxal mas justa, com raízes também no futuro. O Estado é fenómeno puramente do presente, tanto que se projecta em, e se consubstancia com, o Governo que esteja, no momento, de posse da actividade desse Estado. De posse da Nação ninguém pode estar, pois não há redes, ministeriais ou outras, com as quais se pesque o impalpável.

A valorização do Estado, longe de se reflectir em o indivíduo ou a nação, valorizando-os, reflecte-se neles somente para os diminuir.

A frase, ou bordão, de Mussolini, Tudo pelo Estado, nada contra o Estado tem a vantagem de ser perfeitamente clara. Diz o que diz. Com ela sabemos onde estamos, embora não queiramos lá estar. A frase portuguesa imitada, Tudo pela Nação, nada contra a Nação, ou quer dizer, velando-se, a mesma coisa que a frase de Mussolini; ou, se quer dizer outra coisa, não quer dizer coisa alguma. Está no mesmo caso a expressão civilização cristã, à que ninguém ainda conseguiu descobrir qualquer espécie de sentido.

O Estado é simplesmente a maneira de a Nação se administrar: rigorosamente, não é a mesma coisa, mas um processo. (…)

Apareceram recentemente à superfície da terra social uns animais chamados directrizes. Definindo mal e depressa, esta palavra quer dizer que qualquer de nós tem que pensar pela cabeça de outra pessoa. Tal intimação ou imposição não pode fazê-la senão o Estado ou quem nele manda, pois a Nação não se exprime através do Estado mas através dos indivíduos, e mormente através dos homens de génio, que são a concentração individual das forças íntimas da Nação. Ora os homens de génio não impõem directrizes: são-as.



O Comunismo


Ao contrário do catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema – o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.O comunismo não é uma doutrina porque é uma anti-doutrina, ou uma contra-doutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental – isto é de civilização e de cultura -, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.


O fascismo


O tio Mussolini, como qualquer inglês com razão de queixa, escreveu uma carta ao Times. O duce não sabe inglês, nem, ao que parece, encontrou alguém que o soubesse responsavelmente entre os quarenta milhões que, pelo cômputo próprio, formam a sua pátria real.












A carta é notável, não pelas afirmações – que são do género das que poderia fazer o Sr. Lloyd George, ou o Sr. Briand, ou qualquer outro Afonso Costa -, mas pelo emprego saliente da palavra whereof, que quer dizer «de que». De relembrável nada mais diz o lictor.

O problema apresentado pelo fascismo é muito simples, e, na sua essência, não nos é, a nós portugueses, desconhecido. O povo italiano – que é de supor que o seja, e não fascista nem comunista – recebeu há anos, do lado direito da cara, a bofetada do comunismo. O fascismo, para o endireitar, deu-lhe uma bofetada, um pouco mais forte, do lado esquerdo. Não sabemos, nem temos meio de saber, se o povo italiano aprecia mais o ter ficado direito, ou neotorto, ou as desvantagens faciais do processo empregado. E resta sempre saber, nesta matéria – como cada nova bofetada é sempre mais forte que a anterior, para poder endireitar -, em que altura é que pára a terapêutica equilibradora, e em que estado fica o equilibrado quando o Destino, por fim, se cansa do tratamento.

Whereof…

2 – A «tripla camada de negativismos»



A Pátria portuguesa e o Estado


Mas o principal do pensamento político de Fernando Pessoa está directamente ligado à situação portuguesa. A grande crise, a seu ver, é a do conceito de Pátria, abusivamente substituído pela excessiva valorização do Estado. É o que afirma, num pequeno mas significativo texto, até há pouco inédito.

1. Considerar a Pátria Portuguesa como a coisa para nós mais existente, e o Estado Português como não existente.

Fazer, portanto, tudo pela Pátria e não pedir nada ao Estado.

2. Considerar que a Pátria Portuguesa existe toda ela dentro de cada indivíduo português.

Fazer, portanto, tudo para si mesmo como português, desenvolver-se a si mesmo no sentido português.

3. Considerar que a Pátria Portuguesa, como qualquer pátria, é apenas um meio de criar uma civilização.

Fazer tudo, portanto, para criar uma Pátria Portuguesa criadora de civilização.

4. Considerar que o conceito de Pátria é um conceito puramente místico, e que, portanto,

a) nenhum elemento de interesse deve entrar nele.

b) nenhum outro conceito místico deve coexistir com ele, a não ser que ele domine esse conceito e o integre em si.



A necessidade de um escol


Ao mesmo tempo, e dada a importância que Pessoa atribui ao indivíduo, é indispensável que se crie um escol…

A crise central da nacionalidade portuguesa deriva da sua impotência para formar escóis. Uma nação vale o que vale o seu escol.

As descobertas e as conquistas que se lhes seguiram, a emigração e as guerras que ambas motivaram, arrastavam consigo, como é natural, a parte mais forte, mais audaz, mais competente da nação. Assim se foi destruindo o escol.

O pior é que o escol se não renovou. Quer isto dizer que não tornaram a haver circunstâncias criadoras de um escol, ou, pelo menos, de um escol perfeito.

Quais são as circunstâncias criadoras de um escol; Um escol é tanto mais perfeito quanto mais: 1. diferente é do resto da população em grau de tudo; 2. quanto mais está unido a esse resto da população por um interesse nacional; 3. acção tem sobre esse resto da população.

O escol não quer dizer uma classe, mas uma série de indivíduos.








(…) É preciso criar um organismo cultural


Para que surja um escol e note-se como (Condições biológicas) Pessoa se demarca das teorias racistas e germânicas de intervenção em matéria biológica ou demótica, é no entanto preciso começar por criar um organismo que o propicie.

Em matéria cultural, o que se tem feito é quase nada. Quem há culto entre nós, a si próprio se cultiva, e as mais das vezes mal, quase sempre anti-nacionalmente. Em matéria de propaganda, a única instituição criada para esse fim, a inepta Sociedade de Propaganda de Portugal, nada faz porque, sendo uma espécie de escol de incompetentes, nada sabe fazer. E em matéria de consciência superior da nacionalidade, a maioria dos portugueses nem sequer sabem que isso existe.

É preciso criar um organismo cultural capaz de substituir o estado nestas funções. Escusa de ter aspecto de potência dentro da Pátria: basta que tenha a precisa noção superior dos seus fins.

Deve essa organização visar três fins: 1. A criação de uma atitude cultural nas classes médias, porque são elas as em que assenta a vida nacional, e entre os comerciantes sobretudo, porque, sobre serem eles a parte mais forte das classes médias, são a parte mais representativa delas, dado o carácter comercial da nossa época; 2. A criação de uma propaganda ordenada e científica de Portugal no estrangeiro; 3. A criação lenta e estudada de uma atitude donde derive uma noção de Portugal como pessoa espiritual.



A destruição da «tripla camada de negativismo»


Noutro texto, curto mas fundamental, Pessoa assinala a «tripla camada de negativismo» que cobre a Pátria, definindo três graus descendentes da nossa queda: decadência, desnacionalização e degenerescência.

A desorientação em que temos vivido, a decadência em que temos vegetado, deriva da acumulação de três factores, que em três épocas diferentes intervieram na vida nacional, e cuja influência infeliz permaneceu.

O primeiro factor – a decadência propriamente dita – data da jornada de Alcácer-Quibir, prolonga-se pelo domínio dos Filipes, e até hoje ainda não passou. Lampejos transitórios – a Restauração, o Marquês de Pombal [?], o Presidente Sidónio Pais – são apenas (salvo o último caso, de cujas consequências não podemos falar ainda) remissões da nossa doença colectiva.

O segundo factor – a desnacionalização – entrou com a vinda do sistema monárquico estrangeiro que, implantado primeiro em 1820, se arrastou, através de uma guerra civil constante, latente ou patente, até à sua fixação em 1851, e a corrupção definitiva dos nossos costumes políticos e administrativos, o abandono total do governo à portuguesa.

O terceiro factor, prolongamento desse segundo, surgiu plenamente em 1910, com a implantação da República. A desnacionalização tornou-se, nessa altura, degenerescência. Nem a degenerescência se limitava aos partidos que a República trouxe (não há estado social mórbido que seja pertença exclusiva de um partido), mas abrangeu também os velhos partidos monárquicos cuja obra a República, anarquizando mais, apenas continuou.

O problema português consiste na destruição da tripla camada de negativismo que assim cobre a Pátria
(in António Quadros, Fernando Pessoa, A Obra e o Homem, arcádia, Vol. II, 1982, pp. 229-238).




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