sábado, 7 de janeiro de 2012

Drácula (iii)

Escrito por Bram Stoker










Quando compreendi que estava prisioneiro, uma espécie de cólera selvagem se apoderou de mim. Pus-me a subir e a descer as escadas, tentando abrir todas as portas que encontrava. Mas, ao cabo de longos momentos, tive a convicção de que os meus esforços eram inúteis, e este pensamento destruiu em mim a pouca força de vontade que subsistia ainda. Agora, que recordo as honras que decorreram, compreendo que estou apanhado na armadilha, como um rato. Todavia, depois de ter adquirido a certeza de que ninguém podia libertar-me, recuperei o sangue-frio e sentei-me tranquilamente, calmo como nunca tinha estado. Pus-me a reflectir na minha situação. Não encontrava solução possível. A única conclusão a que chego, mesmo neste momento, é que mais vale não descrever ao conde as minhas angústias. Ele conhece-as, certamente, tão bem como eu, pois sabe que sou seu prisioneiro. É ele o causador do meu cativeiro. Tem sem dúvida as suas razões, que eu não conheço. Mas, se eu lhe falar nisso, esconder-me-á a verdade. Por consequência, será muito mais hábil nada deixar transparecer do que vi e do que descobri. Vou manter os olhos bem abertos, porque terei necessidade, disso estou certo, de toda a minha lucidez.

Tinha chegado a este ponto das minhas reflexões quando ouvi fechar-se o grande portão: o conde tinha regressado. Como ele não se dirigia imediatamente para a biblioteca, aproveitei para voltar sem ruído ao meu quarto. Podem imaginar a minha surpresa quando o encontrei ocupado a fazer a cama. Era seguramente estranho, mas confirmava o que eu supusera desde o princípio: não havia qualquer criado na casa. Todas as minhas dúvidas desapareceram quando, alguns momentos mais tarde, espreitando pelo buraco da fechadura, o vi a pôr a mesa, na sala de jantar. E não me senti mais tranquilo quando esta descoberta me levou a pensar que fora ele quem conduzira a caleça. Mas, se era assim, de onde lhe vinha o poder que lhe permitia fazer-se obedecer pelos lobos, fazer com que deixassem de uivar, esboçando apenas gestos com os braços? Por que razão os meus companheiros de viagem haviam manifestado tanto receio a meu respeito? E que significavam o pequeno crucifixo e as ofertas um tanto ridículas que me tinham feito, os dentes de alho e a rosa seca? Deus abençoe a boa mulher que me prendeu esta cruz em volta do pescoço! Sinto-me mais forte e menos cobarde quando lhe toco. É curioso verificar que, depois de ter considerado aquele objecto como perfeitamente inútil, encontro agora, nele, um socorro eficaz, ao sentir-me só e angustiado. Será dotado de um verdadeiro poder, ou representa apenas uma recordação de horas menos ameaçadoras? Reservo-me para estudar este assunto mais tarde. Por agora, e antes de tudo, tenho de me informar sobre a personalidade do conde Drácula. Depois disso, talvez compreenda melhor o que se passa aqui. Esta noite tentarei fazê-lo falar. Mas terei de agir com grande prudência, para não despertar as suas suspeitas.


Meia-noite. – Tive uma longa conversa com o conde. Fiz-lhe várias perguntas sobre a história da Transilvânia, e ele mostrou-se imediatamente animado ao falar do assunto. Contou-me dos costumes dos habitantes do país. Descreveu-me, sobretudo, as batalhas que ali se tinham travado, e eu teria podido acreditar que ele tomara parte nelas, tal o calor que imprimia às suas palavras. Explicou-me logo a sua atitude, dizendo-me que um boiardo se orgulha sempre da glória dos seus antepassados, e do seu nome. De cada vez em que falava da sua família, dizia «nós», na primeira pessoa do plural, como o faria um rei. Tudo o que me contou era apaixonante. Não posso transcrever aqui, integralmente, tudo o que me disse. Seria demasiado longo. No entanto, encontrava-se aí o heróico passado da sua raça.

- Nós, os Szekelys – dizia ele – temos orgulho da nossa dinastia, porque nas nossas veias corre o sangue dos povos valentes que souberam bater-se como leões para conservar o seu nível senhorial. Foi um Drácula que atravessou o Danúbio para derrubar o turco no seu próprio território. Foi o mesmo Drácula quem transmitiu o seu ardor patriótico a um dos seus descendentes, o qual, mais tarde, invadiu a Turquia. Foi esse quem, depois de ter batido em retirada, voltou sozinho para enfrentar o inimigo, deixando atrás de si o campo de batalha onde jaziam os seus homens, mortos ou feridos. Ele sabia que acabaria por vencer! E não venham dizer-me que procedendo assim ele se comportava como um egoísta, pensando apenas na glória. Que fariam as tropas, se não tivessem um chefe digno desse nome? Como acabaria a guerra, se não houvesse um cérebro e um coração para a dirigir? Sim, jovem, foram os Szekelys e os Dráculas que misturaram o seu sangue, o seu espírito e a sua espada para esmagar o inimigo, o que os Habsburgo e os Romanov foram sempre incapazes de fazer. Mas a era das batalhas passou. O sangue tornou-se, nos nossos dias, uma matéria demasiadamente preciosa; os povos preferem viver na paz, mesmo sem honra. E a glória dos ilustres avós é apenas uma bela história para contar.

Nascia o dia quando ele se calou e nos recolhemos. (Sublinho o facto de que o meu diário se parece terrivelmente com os contos das Mil e Uma Noites, pois tudo pára ao primeiro cantar do galo. Poderia também fazer pensar na aparição, diante de Hamlet, do fantasma de seu pai).






12 de Maio. – Ontem à noite, quando o conde veio procurar-me, pôs-se a fazer-me várias perguntas sobre pontos de direito e sobre a maneira de tratar certos negócios. Para não ficar inactivo, eu tinha precisamente passado o dia a rever alguns livros de estudo sobre cartórios notariais, que já havia consultado em Lincoln’s Inn. Estava portanto em condições de responder com clareza às perguntas do meu hospedeiro.

Perguntou-me se, em Inglaterra, era possível ter dois solicitadores ao mesmo tempo. Disse-lhe que poderia ter dez, se o desejasse, mas era mais sensato ter apenas um só, para um mesmo negócio, e que recorrer a vários solicitadores, ao mesmo tempo, era agir contra os seus próprios interesses. Quando se deu por satisfeito com as minhas explicações, o conde levantou-se bruscamente para me perguntar, sem transição:

- Escreveu novamente a Peter Hawkins, ou a qualquer outra pessoa, depois da sua primeira carta?

Respondi-lhe, com um ligeiro azedume, que não tinha tido a possibilidade de enviar outra carta; como teria podido expedir o meu correio?

- Então escreva imediatamente, meu jovem amigo – disse ele, pousando-me a pesada mão sobre um ombro. – Escreva ao seu amigo ou a quem quiser, indicando que vai ficar aqui durante um mês.

- Faz empenho em que eu aqui fique durante tanto tempo? – perguntei, estremecendo ante a ideia.

- Faço enorme empenho. E não poderia aceitar uma recusa. Quando o seu patrão, o seu chefe – chame-lhe como quiser – se compromete a enviar-me alguém para o substituir, está implícito que posso recorrer aos serviços desse substituto sem me considerar na obrigação de o consultar. Nada há a explicar. Não pensa assim?

Que podia eu fazer, senão inclinar-me? Tinha, antes de tudo, o dever de pensar nos interesses de Hawkins, não nos meus. De resto, durante toda a conversa, alguma coisa no olhar e na atitude do conde me lembrava ser eu um prisioneiro, e que, mesmo que quisesse, não poderia escolher. Não respondi, mas ele compreendeu, pela minha muda aquiescência, que havia ganho. A perturbação que a minha cara traduzia, indicava que era ele o amo. Aproveitou para me dizer, nessa voz adocicada que me subjugava tão facilmente:

- Pedir-lhe-ei, querido e jovem amigo, para não tratar, nas suas cartas, outros assuntos que não digam respeito aos negócios. Mas como suponho que os seus amigos se alegrarão de ter notícias suas, pode anunciar que em breve terão o prazer de o ver junto deles.






Entregou-me três folhas de papel e três sobrescritos. O papel era extremamente delgado, e compreendi imediatamente, pela atitude do conde, que precisava ter cuidado com o que escrevesse, pois era evidente que ele leria o meu correio. Assim decidi não registar, desta vez, senão breves apontamentos, prometendo a mim mesmo que daria mais amplos pormenores a Hawkins e a Mina, logo que me fosse possível fazê-lo. Se necessário, poderia escrever a Mina em caracteres estenográficos, o que embaraçaria o conde se tentasse decifrá-los. Escrevi, portanto, duas cartas insignificantes. O meu hospedeiro cuidou também da sua correspondência, consultando de tempos a tempos os documentos que estavam sobre a sua mesa. Quando terminou, pegou nas minhas duas cartas, juntou-as às suas, pô-las todas sobre a secretária, e saiu. Logo que ouvi fechar-se a porta, levantei-me e fui examinar o correio. Não tive qualquer escrúpulo em fazer isso, pois pensava que, em tais circunstâncias, devia antes de tudo pensar em proteger-me.

Uma das cartas era dirigida ao Sr. Samuel Billington, n.º 7, The Crescent, Whitby; outra a “Herr” Leutner, Varna; a terceira a Coutts & C.ª, Londres, e a quarta a “Herren” Klopstock e Billreuth, baqueiros em Budapeste. A segunda e a quarta cartas não estavam fechadas. Dispunha-me a lê-las quando vi a maçaneta da porta a girar devagarinho. Apenas tive tempo, antes de me sentar, de repor as cartas onde estavam. O conde entrou, pegou no correio, colou cuidadosamente os selos e, voltando-se para mim, disse:

- Tenho muito trabalho a fazer, esta noite. Peço-lhe que desculpe a minha ausência, mas encontrará aqui tudo o que necessitar.

Chegando à porta, parou e voltou-se uma vez mais, para me dizer:

- Faço empenho em o avisar, meu caro amigo. Se alguma vez lhe apetecer deixar o seu quarto, não poderá dormir em qualquer lado. Este castelo é muito antigo e nada prova que não seja assombrado. Feios pesadelos esperam os que adormecem inconsideradamente, ao acaso dos seus passeios. Se, em qualquer altura, se sentir invadido pelo sono, está avisado: volte imediatamente para o seu quarto. Aí poderá dormir à vontade. Mas, se não respeitar o que eu lhe digo agora, então…

Concluiu o seu aviso num tom de ameaça, e fez o gesto significativo de lavar as mãos. Compreendi-o perfeitamente. A única dúvida que me resta, agora, é a que vem de uma reflexão: será possível que um sonho, por mais terrível que seja, possa ser mais atroz do que esta rede cujas malhas misteriosas se fecham pouco a pouco sobre mim? Não, não sonhei…










Um pouco mais tarde, na noite. – Releio as linhas precedentes. Estou perfeitamente de acordo com tudo o que escrevi, mas não tenho já a menor hesitação: estou pronto a adormecer seja onde for, com a condição de que o conde não esteja aí. Tenho a pequena cruz suspensa do pescoço. Penso que, graças a ela, poderei repousar tranquilamente.

Depois da partida do conde, fui para o meu quarto. Esperei durante alguns momentos, e não tendo ouvido qualquer ruído mais, voltei a sair. Dirigi-me para a escada de pedra, de onde podia avistar a ala sul do castelo. Tinha grande necessidade de respirar ar fresco, tanto mais que a obrigação de ficar acordado durante uma parte da noite, como eu julgo prudente fazer aqui, me tinha arrasado os nervos. Contemplei a paisagem magnífica, que o luar tornava tão visível como em pleno dia. A beleza daquela região campestre trouxe-me alguma calma e conforto. Ao debruçar-me de uma janela, a minha atenção foi atraída por qualquer coisa que se movia no andar inferior. Conforme o que eu pudera estudar, da disposição dos compartimentos, parecia-me que o quarto do conde devia ficar exactamente aí. Recuei ligeiramente, a fim de não ser visto, mas continuei a observar.

Quando avistei a cabeça do conde, que aparecia na janela em baixo, não distingui as suas feições, mas reconheci-o perfeitamente pelo movimento dos braços. Era impossível enganar-me: bastava-me ver as mãos dele, que já tivera ocasião de examinar em pormenor, em circunstâncias recentes. Primeiro fiquei interessado, e mesmo divertido, por aquela visão inesperada; por vezes, pouco basta a um prisioneiro para o fazer esquecer a sua penosa situação. Mas em breve o divertimento cedeu lugar ao medo, quando vi o conde emergir completamente da janela e agarrar-se, ao longo da muralha, sobre o vertiginoso abismo. A sua capa estendia-se, de ambos os lados do corpo, semelhando duas grandes asas. Eu não me atrevia a acreditar no que via; comecei por supor que se tratava de um efeito de luz e sombra, provocado pelo luar, mas depressa tive de me render à evidência. O conde, agarrando-se a cada pedra e servindo-se de cada uma das asperezas, descia ao longo da muralha, como o teria feito um lagarto.

Que espécie de homem era ele? Ou que alucinante criatura se dissimulava assim sob o aspecto de um homem? Compreendo melhor ainda, agora, a horrível situação em que me encontro. Tenho medo, um medo instintivo e, no entanto, raciocinado. Mas é-me impossível fugir. O medo sufoca-me, e não ouso pensar no que pode acontecer.


15 de Maio. – Mais uma vez vi sair o conde, deslizando ao longo da muralha como se fosse um lagarto. Percorreu uma centena de pés para a esquerda e desapareceu num buraco, ou numa janela, não sei dizer exactamente. De qualquer maneira, adquiri a certeza de que ele deixou o castelo. E aproveitei-me para explorar este, como ainda não ousara fazê-lo então. Voltei ao meu quarto, peguei num candeeiro e tentei abrir as portas. Todas elas estavam fechadas à chave, e pude verificar que as fechaduras haviam sido mudadas recentemente. Voltei a descer a escada por onde tinha passado no dia da minha chegada. Não tive qualquer dificuldade em fazer funcionar o ferrolho da porta que se encontrava ao fundo do corredor. Com a mesma facilidade consegui tirar as correntes que seguravam essa porta, mas, uma vez mais, verifiquei que estava fechada à chave, e a chave não se encontrava na fechadura. Voltei para trás e pus-me a examinar todas as portas que encontrava. Algumas, abertas, davam acesso a compartimentos que continham apenas velhos móveis poeirentos e roídos pelas traças. Por fim, no entanto, encontrei no alto da escada uma porta que estava simplesmente assente no chão.Os gonzos tinham descaído, e uma simples pressão da mão bastou para a entreabrir. Encontrei-me numa ala do castelo, situada mais à direita da parte que eu já conhecia. Olhei pelas janelas e vi que aquele lado do edifício estava voltado para oeste e para sul. De cada lado cavava-se um impressionante precipício. O castelo foi construído sobre um rochedo, de maneira que, a não ser por um lado, é inacessível. Para mais as janelas, altas mas estreitas, não podem ser alvejadas com uma funda, nem com flechas, nem com qualquer arma. A leste, avista-se um vale em redor do qual se erguem grandes montanhas de encostas abruptas. O candeeiro era inútil, pois um luar brilhante iluminava o compartimento. Mas serve-me, no entanto, pois constitui para mim uma espécie de presença nesta solidão que me gela o coração. Sentei-me diante de uma pequena mesa de trabalho, onde alguma nobre dama de outros tempos talvez se tivesse instalado para escrever uma carta de amor.

Registo neste diário tudo o que me aconteceu depois das últimas notas. Escrevo estenograficamente, o que é um sinal dos progressos realizados no século XIX. E todavia, a não ser que eu me iluda, os séculos anteriores tinham alguma coisa que lhes era própria e que nenhuma inovação moderna poderá destruir: o encanto.

16 de Maio. Manhã. – Deus queira preservar o meu equilíbrio mental, pois nada mais tenho. Para o pouco que me resta viver, já não posso desejar senão uma coisa: não endoidecer. Se é que não endoideci ainda. Mas, se estou são de espírito, não é angustiante pensar que, entre todas as ameaças que se estreitam à minha volta, a mais inquietante é a presença do conde? Em breve será apenas dele que poderei esperar socorros, embora seja levado a servir os seus desígnios. Deus misericordioso? Fazei com que eu conserve a calma, pois se perder o sangue-frio será para o ver substituído pela loucura. Começo a ver claro em certas coisas cujo sentido me tinha escapado até agora. Por exemplo, nunca havia compreendido o que significavam as palavras que Shakespeare pôs na boca de Hamlet:



As minhas tábuas! Depressa, as minhas tábuas!
É preciso que eu inscreva aí… etc.






Mas agora, que o meu espírito despertou, vou também continuar a narrar tudo no meu diário. Inscreverei tudo o que tiver vivido, e talvez que isso me traga algum apaziguamento.

Ao dar-me o seu misterioso aviso, o conde tinha-me assustado. Agora, que penso em tudo o que ele me disse, sinto-me invadido por um espanto ainda maior. Sei que esse homem exercerá sobre mim um terrível ascendente. Contanto que não me deixe apanhar na armadilha das suas palavras.

Depois de ter escrito as últimas linhas do meu diário, senti a necessidade de descansar. Recordava-me muito bem do aviso do conde, mas sentia um evidente prazer em desobedecer-lhe. O luar que me iluminava parecia-me doce e benéfico, e dava-me a ilusão da liberdade. Decidi portanto não voltar às salas onde havia estado até então; já as conhecia demasiadamente bem. E resolvi dormir no quarto que descobrira. Reencontraria a macia atmosfera na qual viviam as belas damas de outrora, as quais passavam o seu tempo a cantar, enquanto esperavam o regresso dos senhores que haviam partido a pelejar em combates distantes. Um sofá, perto da janela, ia permitir-me contemplar a paisagem comodamente estendido.

Devo ter adormecido. Pelo menos suponho isso, mas não tenho a certeza pois os acontecimentos que se desenrolaram me parecem tão reais que, agora, bem instalado neste quarto inundado por um risonho Sol matinal, não consigo acreditar que tenha sonhado. A noite passada, eu tinha a impressão de não estar só. A sala era de facto aquela aonde eu havia entrado: podia ver as marcas dos meus passos na poeira que recobria o chão. Mas, na minha frente, encontravam-se três mulheres jovens. Quando as avistei julguei sonhar, pois elas não projectavam qualquer sombra no chão, apesar de exposta ao luar que entrava pela janela. Aproximaram-se de mim, examinaram-me curiosamente e falaram umas com as outras, em voz baixa. Duas delas eram muito morenas: tinham nariz aquilino – como o conde – e um olhar de fogo que contrastava com os pálidos reflexos lunares. A outra era de maravilhosa beleza, com uma longa cabeleira dourada e olhos que pareciam esplêndidas safiras. Parecia-me conhecer aquela cara, mas foi-me impossível lembrar-me se estava ligada à recordação de um sonho, ou se já a havia encontrado em momento e circunstâncias indeterminadas. Todas tinham dentes de deslumbrante alvura, que formavam verdadeira filas de pérolas de escrínio dos lábios sensuais. Sentia-me pouco à vontade, só de as contemplar, e estava partilhado entre a admiração e a inquietação. Quem sabe se não senti o desejo de roçar com um beijo aqueles lábios voluptuosos? Sem dúvida é absurdo registar aqui esse desejo, pois isto poderá desgostar Mina se alguma vez ler estas linhas. E, no entanto, é a verdade. As três desconhecidas continuavam a dizer umas às outras coisas que eu não ouvia, e depois riam, num riso argentino, musical, que no entanto tinha qualquer coisa de duro e não parecia brotar de lábios humanos. Era um pouco como o tilintar, simultaneamente doce e intolerável, de dois ou três copos que mão hábil fizesse entrechocar. A dama loura abanou a cabeça, com garridice, enquanto as suas companheiras a impeliam para a frente. Uma delas incitou-a:

- Vai! Tu és a primeira, nós seguimos-te. Cumpre-te começar.



Monica Bellucci, uma das "desconhecidas" no filme Drácula, de Francis Ford Coppola (1992).




A outra acrescentou:

- Ele é jovem e forte. Concederá um beijo a cada uma de nós.

Eu não fazia qualquer gesto, e observava a cena por entre as pálpebras semicerradas. Sofria um suplício delicioso. A jovem loura aproximou-se de mim, e debruçou-se tão perto que senti a sua respiração. Tinha um hálito doce, um aroma de mel o qual agia sobre os meus nervos como já o fizera a sua voz. E no entanto alguma coisa de amargo se misturava a essa sensação um tanto mórbida, alguma coisa como um cheiro a sangue.

Eu não abrira os olhos, mas, entre as pestanas, via nitidamente o que se passava: a jovem ajoelhara-se e fitava-me com uma expressão estranha. A sua face traduzia voluptuosidade ao mesmo tempo emocionante e repugnante. Passou a língua pelos lábios. Eu distinguia bem a saliva que lhe escorria pelos cantos da boca. Passeava a língua vermelha sobre os dentes anormalmente agudos. Em breve os seus lábios chegaram à altura dos meus, mas logo desceram e tive a impressão de que iam parar sobre a minha garganta. Mas o movimento interrompeu-se e eu ouvi uma espécie de gorgolejar, o barulho que fazia a sua língua, a lamber-me, como um animal. Senti o seu hálito quente alcançar-me o pescoço. Foi então que a minha pele reagiu, como se uns dedos a tivessem roçado para fazer cócegas. Senti a doce carícia dos seus lábios na minha garganta, e a ligeira mordedura de dois dentes. Mergulhado num êxtase langoroso, fechei os olhos e esperei, com o coração a bater fortemente.

Mas, no mesmo instante, outra sensação veio desencantar-me: tive bruscamente consciência da presença do conde, aparecendo como se tivesse surgido da parede. Abri os olhos, quase involuntariamente, e vi-o agarrar, com a mão poderosa, o pescoço da jovem. Afastou-a num gesto violento. Ela estremeceu de cólera, rangeu os dentes; as suas faces avermelharam-se. Mas o conde!... Eu nunca teria pensado que alguém pudesse exprimir um tal furor. Os seus olhos chamejavam, numa expressão demoníaca. A cara tinha uma lividez cadavérica. Com um gesto brutal, atirou com a desgraçada para a outra extremidade do compartimento. Fez um sinal às duas outras, que imediatamente recuaram. Lembrei-me de o ter visto fazer os mesmos gestos diante dos lobos. Numa voz baixa, que no entanto dava a impressão de ressoar por toda a casa, bradou:

- Como se atreveram a tocar-lhe? Como tiveram a audácia de pousar os olhos nele, quando eu o tinha proibido? Para trás, vão-se embora! Este homem pertence-me! Não se aproximem dele, nunca mais, se não querem que as castigue.

A jovem loura, com um sorriso de garridice provocante, voltou-se para ele e retorquiu:

- Você nunca amou! Nunca ama!

As duas outras tiveram um riso mau, cruel e maquinal. Dir-se-ia manifestações de demónios. O conde, depois de me ter olhado com atenção, disse, num murmúrio:

- Sim, eu também posso amar. E vocês sabem isso. É preciso recordar-lhes o passado? Agora prometo-lhes que, quando já não tiver necessidade dele, poderão beijá-lo tanto quanto quiserem. Mas neste momento tenho de o acordar, porque há trabalho à nossa espera.

- Não teremos então nada, esta noite? – perguntou uma das mulheres, com o seu riso diabólico.



Enquanto fazia a pergunta apontava com um dedo um saco que o conde pousara no chão, e se agitava como se contivesse uma criatura viva. O conde não respondeu, mas moveu a cabeça. No mesmo instante uma das três mulheres deu um salto e abriu o saco. Se os meus ouvidos não me enganaram, distingui um gemido fraco, como o de um recém-nascido que estivesse a ser sufocado. Fiquei horrorizado. Enquanto eu me esforçava para não olhar o saco misterioso, as três desconhecidas desapareceram bruscamente, levando o objecto do meu novo terror. Para onde foram? Não havia qualquer porta próxima, e eu tê-las-ia visto se tivessem passado na minha frente. Sem dúvida haviam aproveitado os raios de luar para deslizarem pela janela, pois, numa visão breve, distingui no exterior as suas três sombras quase imateriais.

Então o espanto apoderou-se de mim, e perdi os sentidos (in ob. cit., pp. 43-56).


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