segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Pequenas e grandes cidades

Escrito por Miguel de Unamuno





Miguel de Unamuno



«Afirmei que o romance de Enrique Larreta representa um generoso e feliz esforço artístico do seu autor; e assim é, em boa verdade. É um generoso e feliz esforço por penetrar na alma de Espanha do século XVI e, portanto, na alma da Espanha de todos os tempos e lugares.

Em primeiro lugar, de todos os tempos porque a Espanha teve um processo muito mais homogéneo do que se julga, uma verdadeira continuidade espiritual íntima, e isto é precisamente o que lhe confere mais valor e mais consistência, ainda que, em certos aspectos, possa, hoje por hoje, parecer que isso em parte a prejudica. E essa íntima e permanente alma espanhola, se alguma vez chegou à revelação e à florescência, foi, sem dúvida, no século XVI. Desde então temos progredido muito, e continuamos a progredir; no entanto, as qualidades que nos darão, a nós espanhóis, significado e valores históricos universais no mundo são as qualidades que então realçámos, embora acomodadas a novos empreendimentos e sob novas formas. Poderemos deixar de ser católicos, deixaremos de o ser, no sentido ortodoxo da Igreja Romana - essa é a minha fé e o meu mais ardente desejo e esperança -, porém com qualquer outra crença, mostraremos o mesmo espírito que, como campeões da Contra-Reforma, os nossos avós mostraram.

A alma da Espanha de todos os lugares é também o que nos mostra Larreta, no seu livro A Glória de D. Ramiro. É claro que, ao dizer isto, pensava na pátria natal do autor do romance, a Argentina, que também é a Espanha, pese a quem pesar, e muito mais na Espanha do que os próprios argentinos imaginam. Mais uma vez, a centésima pelo menos, e não será a última, mais uma vez vou repetir que a língua é o sangue do espírito e que num idioma está implícita uma certa filosofia, um certo modo de pensar e, mais do que pensar, de sentir a vida. Sejam quais forem os cruzamentos de raças, seja qual for o sangue material que se misture ao primitivo, enquanto um povo falar espanhol pensará e sentirá em espanhol também».

Miguel de Unamuno («Por Terras de Portugal e de Espanha»).


«Sendo o Português no geral bondoso, sofredor, espanta que se transmude intrepidamente em violento e cruel.

É a "ira do manso", a pior, segundo Unamuno. Outros autores assinalaram esse aspecto revelado em certas páginas breves, mas extremamente brutais da nossa História, em que há lances de cólera cega. Tais episódios parecem desmentir a brandura do carácter e dos costumes, a baixa criminalidade do nosso povo.

(...) A brandura, o carácter amoroso, a generosidade humana dos Portugueses parece-nos uma constante, certificada em todas as épocas, mediante literatura, arte, obras pias e o trato com a restante Humanidade. Outra constante, por igual certificada pelos séculos, é a do heroísmo, da bravura no combate.

Já a violência é intermitente, por explosivismo dos recalques de um povo sofredor e resignado, por atiçamento passional sobre as circunstâncias que destemperam a nossa peculiar sensibilidade, quais sejam o cálculo pérfido, a traição, a usura desapiedada. Isso exprime-se em condescendência beneficiária daqueles que, perdendo a razão por decepções sentimentais, acaso foram cruéis; dos violentos cheios de razão; dos que, possuídos por um idealismo apaixonado, esquecendo-se de si próprios, também puderam incorrer nalgumas desatenções ou desvios de sensibilidade

Dispensamo-nos de apresentar exemplos, visto que são flagrantes; de uma História Pátria que é das menos sangrentas ressaltam com nitidez as violências perdoadas e as não perdoadas. E pelas razões expostas».

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).


«Tal como o povo galego, o povo português tem fama de ser um povo sofredor e resignado, que tudo aguenta protestando apenas de uma forma passiva. No entanto, com povos desses é preciso agir com cuidado. A raiva mais terrível é a raiva dos mansos.

(...) A religiosidade portuguesa, tal como a galega, a que alguém chamou, não sei com que fundamento, religiosidade céltica, há que procurá-la por baixo das formas regulares e canónicas da religião oficial. Por baixo delas, palpita e vive ainda um certo naturalismo, que tem muito de pagão e não pouco de panteísta.

Aqui, há sempre latente uma certa religiosidade pagã, diferente da castelhana, que nos recorda mais a religiosidade dos povos semitas.



El Cristo de Velázquez



O Cristo espanhol, dizia-me uma vez Guerra Junqueiro, está sempre no seu papel trágico: nunca desce da cruz, onde, cadavérico, estende os braços e alarga as pernas cobertas de sangue; o Cristo português anda pelas encostas e prados e montes, brincando com a gente do povo, ri com eles, come com eles, e de vez em quando, para representar o seu papel, recolhe-se por um pouco à sua cruz.

No entanto, a religiosidade portuguesa não é tão risonha e alegre como a irreverente parábola do imaginativo poeta poderia fazer crer. Aqui, existe o culto da morte; só que, em vez de ser trágico como em Espanha, é elegíaco e tristonho».

Miguel de Unamuno («Por Terras de Portugal e de Espanha»).


«(...) Camões, n'Os Lusíadas obedecendo ao instinto da sua raça, não hesitou em casar as Divindades do Olimpo e Jesus Cristo. Parece que Almeida Garrett não quis perceber a lógica daquele aparente contra-senso...

Camões respondeu em português ao movimento da Renascença italiana. Foi muito espontaneamente ao seu encontro, fazendo ouvir, em todo o mundo, o canto imortal d'Os Lusíadas.

(...) Sob a influência da Saudade as formas inferiores da Natureza, formas ainda de existência e não de vida, atingem o seu corpo de lembrança, o seu modo imaginário de ser, o estado angélico perfeito - a Imagem. E por meio dela comunicamos também com a Família, Pátria, Humanidade, Deus. O homem, em virtude do seu poder saudosista, de lembrança e esperança, eleva-se da própria miséria e contingência à contemplação do Reino Espiritual. Vemos Deus pelos olhos da Saudade; e assim reconstruímos espiritualmente a sua figura que, sendo por nós reconstruída, participa de nós também. Por isso, a imagem de Deus nos aparece vestida de humanidade, cristianizada, e é Jesus.

Orfeu, Apolo, Hércules foram homens divinizados pela nossa faculdade mitológica; Jesus Cristo é Deus humanizado para nosso conforto e salvação. Depois de o homem subir a Deus, baixou Deus ao homem, porque se a Esperança divinizou o homem, a Lembrança humanizou Deus.

Eis o sentido do nosso Cristianismo familial e patriótico, abençoando a Família no culto da Virgem Mãe, e consagrando a Pátria no Campo de Ourique.

Como se vê, o nosso Idealismo é religioso e anti-intelectual, porque as ideias consideradas em si, na sua pureza olímpica e longínqua, esterilizam-se. É preciso que sejam sentimentais, que se confundam com o nosso próprio ser e representem estímulos direccionais da sua actividade.

E é antimecanista, contrário à Filosofia que concebe a Vida como simples jogo mecânico de forças determinadas, roubando-lhe todo o poder de iniciativa e de sonho fecundo, dissecando a criatura e reduzindo-a a uma sombra inerte de egoísmo e cepticismo.

O nosso Idealismo é saudoso, porque o animam a esperança e a lembrança; e é religioso e popular. Desejaríamos tornar sentimental a VERDADE PORTUGUESA demonstrada neste livro, para que ela desse nova energia aos portugueses.

Também o platonismo, tornado sentimental e popular, originou o Cristianismo que abriu uma nova era à alma humana...».

Teixeira de Pascoaes («Arte de Ser Português»).





PEQUENAS E GRANDES CIDADES


Catedral de Salamanca


Já disse aos meus pacientes leitores de La Nácion que, em algumas destas minhas correspondências, pretendi entretê-los um pouco falando da influência respectiva das pequenas e das grandes cidades na formação do espírito.

Sinto não ter à mão um ensaio do tão conhecido Guillermo Ferrero, sobre este mesmo assunto. Li esse ensaio não sei em que revista; mas lembro-me que me interessou muitíssimo. Ferrero abordava a questão com dados e considerações de carácter histórico e sociológico; eu, que não sou nem historiador nem sociólogo, vou abordá-lo, como é hábito meu, baseando-me em considerações estritamente pessoais e de impressão individual. (É este o meu hábito e nem mesmo assim consigo livrar-me dos que se empenham em alcunhar-me de sábio por troça e falam das minhas teorias, eu que não tenho teorias. O que tenho são impressões e sensações).

Ora, visto que não posso encabeçar estas linhas com algum texto de Ferrero - isto de se apoiar numa autoridade alheia é uma forma convencionalmente enganosa de conferir uma aparência de objectividade às nossas afirmações -, vou iniciá-las com umas palavras de Georges Meredith, o subtilíssimo romancista inglês, quando diz no seu romance The Egoist que Villoughby «abandonou Londres, que odiava como um cemitério do homem individual», as the burial-place of the individual man.

Neste momento a minha crença é como a de Villoughby, ou seja, que as grandes cidades nos desindividualizam, ou, melhor dito, nos despersonalizam. E talvez isso dependa do facto que, se não sou um egoísta como o herói do romance de Meredith, sou, na opinião de Ramiro Maeztu (1), um egoísta até hoje incorrigível.

As grandes cidades nivelam, erguem o que está em baixo e rebaixam o que está no alto, realçam as mediocridades e deprimem as sumidades. Efeitos da massa, que são poderosos tanto em química como na vida social.

Pouco depois de chegar a esta velha e hoje para mim tão querida cidade de Salamanca - cidade que conta cerca de trinta mil almas -, escrevi a um amigo dizendo-lhe que se, passados dois anos de aqui estar, viesse a saber que eu jogava ao voltarete todos os dias, dava voltas à praça durante uma ou duas horas e me deitava à sesta, me considerasse um homem perdido; mas que se, passado esse tempo, eu continuasse a estudar, a meditar, a escrever e a lutar pela cultura em debates públicos, me considerasse aqui muito melhor do que em Madrid. E foi o que aconteceu.

Rio Manzanares (Madrid).


Recordo que a conclusão de Ferrero em relação à Grécia, à Itália do Renascimento e à Alemanha de há um século, e de acordo com outros dados, era que, para a vida do espírito, o melhor são as pequenas cidades, com uma população como a desta, e não as aldeiazinhas nem as grandes cidades que ultrapassam as cem mil almas.

Tudo depende, claro está, dos espíritos de que se trata. Estou convencido de que o claustro monástico, que tantas almas anulou e que embotou em triste rotina tantas inteligências regulares, exaltou uns quantos espíritos excepcionais pela sua têmpera vigorosa.

As grandes cidades são fundamentalmente democráticas; e devo confessar que sinto pelas democracias um invencível receio platónico. A cultura difunde-se e dispersa-se nas grandes cidades, mas vulgariza-se. As pessoas põem de lado a leitura sossegada de um livro para irem ao teatro, essa escola de vulgaridade. Sentem a necessidade de estar juntos; acirra-lhes o instinto gregário; precisam de ver-se uns aos outros.

Parece-me que foi Taine quem fez a observação que a maior parte dos génios franceses ou foram aldeões ou filhos de aldeões. E garanto que me custa a crer no génio de um parisiense filho de parisienses.

Dizia-me uma vez Guerra Junqueiro: «Que felicidade a sua! Você vive numa cidade em que qualquer pessoa pode caminhar por uma rua sonhando, sem receio que lhe interrompam o sonho!». Com efeito, nas ruas de Madrid não se pode caminhar sonhando, não tanto com medo das carruagens, trâmueis e automóveis, quanto pela contínua descarga de tantos rostos desconhecidos. Esse bulício de grande cidade, bulício de que tanto gostam os que precisam de preencher a sua fantasia com alguma coisa, seja o que for, tem de molestar os que procuram que não lha esvaziem. Para o meu gosto, não há nada mais monótono do que um boulevard parisiense. As pessoas parecem-me sombras. Não resisto a uma multidão de desconhecidos.

Em Madrid, tenho-lhe medo, quer dizer, tenho medo de mim mesmo quando lá vou. Porque é muito fácil dizer que nas grandes cidades cada um pode fazer a vida que mais lhe agrada: é mais fácil dizê-lo do que fazê-lo. Quando lá estou, todas as noites volto para casa lamentando ter ido à reunião ou tertúlia a que fui, e prometendo não voltar, mas reincidindo no dia seguinte. Um letal ambiente de condescendência envolve-me, cinge-me, penetra em mim. Ambiente que brota da chamada vida de sociedade.

Plaza de Cibeles (Madrid).


Sempre senti aversão a isso que chamam vida de sociedade e cujo fim útil é cultivar relações. Há alguma coisa mais terrível do que uma visita? Nela, passam-se em revista todos os mais gastos lugares-comuns. Juntamente com o teatro, as visitas são as grandes fontes de vulgaridade.

Um homem de sociedade, um homem que resulta agradável às damas em visita ou em salão, é um homem cujo cuidado principal consiste em afogar a espontaneidade e em não deixar transparecer a sua própria personalidade, incomoda outros. As pessoas gostam de se encontrar com o homem médio, com o homem corrente, que não é excepcional em nenhum aspecto. A excepção incomoda sempre. Quantas vezes não ouvi a frase terrível: «Pesa-me o homem!» E assim é, «o homem» pesa-nos, e a luta mais difícil para o que se sente assim é a luta para conquistar o respeito à individualidade. Tudo vantagens da democracia citadina.

Quando, algumas das pouquíssimas vezes que fui ao teatro, ouvi ao sair críticas sobre se era ou não verosímil o que ali se tinha representado e se era ou não possível que se traçasse um carácter como o desta ou daquela personagem representada, sempre disse para comigo: que uma coisa tenha podido acontecer uma única vez, já é verosímil; e resulta muito certo o paradoxo daquele que afirmou que, correndo atrás da verosimilhança, foge-se da verdade. E eu acrescentava para comigo mesmo: esta gente só vem aqui para ver se os põem em cena, continuando com os seus falatórios fúteis; e se surge em cena o reflexo de alguma coisa que não pertence ao seu mundo ou que é excepcional, protestam de uma forma ou doutra. Eu, por mim, não vou ao teatro para continuar a ouvir as ingenuidades que ouço diariamente, e é por isso que não aprecio aquilo a que chamam a alta comédia. Iria, isso sim, ver e ouvir Prometeu, Macbeth, Hamlet, Carlos Loor, Segismundo, D. Álvaro, Brand; mas não todos esses senhores bem-educados que me incomodam.

E numa cidade pequena? O seu cenário social é muito reduzido, as pessoas depressa se aborrecem e se cansam dos papéis que representam e aparecem por baixo dos homens, com as suas fraquezas, ou seja, aquilo que os faz homens. Sinto uma grande afeição pela vida provinciana, porque nela é mais fácil descobrir a tragédia, por baixo de uma calma aparente. E assim, na medida em que aborreço a comédia, na mesma medida amo a tragédia. E sobretudo a tragicomédia.


Tenho ouvido dizer que não há tropel de rancores e discórdias internas como um navio-mercante ou um convento; que, em medida em que uns quantos homens se vêem obrigados a viver juntos e separados dos restantes, logo entram em conflito nas suas entranhas personalidades, naquilo que realmente são. E parece-me que esta é a única forma de se conhecerem a si mesmos, o que deve ser o nosso supremo anelo. Parece-me quase impossível que chegue a conhecer-se alguém que se encerre num ermo e que passe os dias contemplando-se... A melhor forma de uma pessoa se conhecer é entrar em choque com um semelhante, entranha contra entranha, ou seja, rocha contra rocha.

Já sei que o leitor vai dizer-me que me deixo levar pelo amor ao paradoxo; eu, porém, digo, se é certo que as mais ardentes admirações são as que se nos apresentam sob a forma de inveja, muitas vezes as mais fortes atracções assumem a aparência de ódio. Conheço, numa destas pequenas cidades trágico-cómicas, ou melhor dizendo, cómico-trágicas, dois homens que, tendo de se ver continuamente e de tratar um com o outro, não se cumprimentam na rua e afirmam detestar-se mutuamente. No entanto, no fundo, sentem-se atraídos um pelo outro, e cada um deles é a preocupação mais constante do outro.

Estes irreconciliáveis grupos em que tão frequentemente estão divididas as pequenas cidades são muito mais favoráveis ao desenvolvimento de uma poderosa personalidade do que a branda comédia das grandes metrópoles, onde se abraçam entre bastidores os que em cena travaram um duelo de morte. Julgais possível numa cidade milionária - refiro-me ao número de habitantes - a tragédia de Romeu e Julieta?

Digam-me, de imediato: uma pessoa que, ao fim do dia, vê uma multidão de pessoas, que hoje ouve este, amanhã aquele, mais adiante outro, e assiste a vinte ou trinta conferências, julgam que essa pessoa consegue manter a sua integridade espiritual sem qualquer diminuição? Com uma vida assim, um ouriço vai acabar em borrego, transformando-se os picos em velos de lã, e, quanto a mim, prefiro ser ouriço a ser borrego.




Há poucos dias contemplava eu, melancolicamente, uma perdiz branca encerrada numa gaiola, e a grande quantidade de ranhuras marcadas num arco de madeira que cingia a gaiola, onde a pobre ave prisioneira afiava o bico. Para quê? Certamente não era para comer. E acham que, se metêssemos o ouriço numa gaiola - felizmente para ele, não canta -, não arranjaria maneira de afiar os seus picos? E uma grande cidade, uma cidade milionária, é uma gaiola muito maior do que uma cidade pequena; cada um dos seus para nós desconhecidos habitantes faz de arame, de grade. E entre todos nos aprisionam.

Assim percebo por que motivo Villoughby fugiu de Londres como de um certo cemitério do homem individual. Não é uma coisa terrível percorrer uma, duas ou três léguas numa cidade, cruzar-se com um, dois ou três milhares de pessoas, e não encontrar uma única cara conhecida, donde tomar pé para as nossas reflexões humanas? É mais doce um olhar de ódio de um inimigo conhecido do que o olhar de indiferença, quando não de desdém, de um desconhecido. Porque o homem adquiriu o hábito de desdenhar dos desconhecidos e parece supor que todo o indivíduo deve ser considerado um imbecil até prova em contrário.

E os que afirmam aborrecer-se numa cidade pequena? É porque não tocaram nos seus fundos trágicos, a severidade augusta dos fundos da sua monotonia.

Estou convencido de que nas grandes cidades os orgulhosos se convertem em vaidosos, ou seja, os picos transformaram-se em lã.

Para os que exercem uma determinada acção pública que pode ser exercida à distância, para o escritor, para o artista, a cidade pequena oferece a vantagem inestimável de viver longe do seu público e de ser mais fácil conseguir que não lhe cheguem, a não ser muito joeirados, os efeitos produzidos pela sua obra. Pode viver uma certa independência do seu público, sem por ele se deixar influenciar, que é a única maneira de fazer um público para si em vez de ser ele a fazer-se para o público.

Poderia dizer-se, perante isto, que talvez ainda melhor do que uma pequena cidade seria uma vila, uma aldeia, talvez um lugarejo. Não, porque lhe faltaria um mínimo de sociedade orgânica, sem a qual a nossa personalidade corre tantos riscos como pode vir a correr no seio de uma metrópole.


No fundo, numa certa ordem de relação do sociológico com o psicológico - isto destina-se aos que se empenham em chamar-me sábio por troça -, trata-se do problema talvez mais fundamental, de um problema de máximos e de mínimos. Esses problemas são o nervo da mecânica física e o nervo também da mecânica social, ou seja, da economia. Trata-se sempre de obter o máximo resultado, ou o máximo de proveitos com o mínimo de esforço e de gastos, o maior rendimento com o menor dispêndio. É também um problema fundamental de estética; é a raiz de todos os problemas da vida.

No ponto sobre o qual neste momento discorro, trata-se de obter o máximo de personalidade própria no mínimo da sociedade alheia. Menos sociedade, ou sociedade menos complexa, diminuiria a nossa personalidade e também diminuiria mais sociedade, ou sociedade aparentemente mais complexa. E digo aparentemente porque não acho que um elefante seja mais complexo do que uma raposa.

Ora bem: todo aquele que não sente a sua própria personalidade e não está disposto a sacrificá-la no altar da sociabilidade, esse que vá perder-se na grande metrópole milionária. Para aquele que sente amor pelo Nirvana, é melhor ela do que o deserto; para inundar o próprio eu, melhor as ruas de uma grande cidade do que os páramos de um ermo.

De vez em quando, não faz mal ir até à grande cidade e lançar-se no mar das suas multidões; mas logo se deve voltar a subir para terra firme, a sentir-se pisando o solo. Por mim, como me interessam as pessoas individualmente, tu, João, que estás a ler isto, e tu, Pedro, e tu Ricardo, porém não interessam apenas as massas que eles formam quando se juntam, fico na pequena cidade, vendo todos os dias, às mesmas horas, as mesmas pessoas, com cujas entranhas alguma vez chocaram, e talvez dolorosamente, as minhas, e fujo das grandes metrópoles, onde me açoitam a alma com azorragues de gelo os olhares desdenhosos dos que nem me conhecem nem eu os conheço a eles. Pessoas que nem posso chamar pelo nome... Que horror!

Madrid


É tudo o que posso dizer sobre as minhas impressões. Se desejam considerações menos pessoais, mais objectivas, mais documentadas, talvez menos arbitrárias, devem averiguar onde escreveu Ferrero o ensaio ao qual me referi no início desta correspondência. Por outra via, chegou a uma conclusão análoga à minha.

Salamanca, Junho de 1908.


(in Por Terras de Portugal e de Espanha, Nova Vega, 2009, pp. 122-126).


(1) Ramiro de Maeztu (1875-1936) - escritor espanhol pertencente à geração de 98. Foi preso e fuzilado pelas forças republicanas, no início da Guerra Civil de Espanha. (N. do T.).


Um comentário:

  1. Leiam "Manual dos crimes urbanísticos" de Luis F. rodrigues, editora Guerra & Paz, sobre o que está a acontecer ás nossas cidades...

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