quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Fernando Pessoa, poeta e filósofo

Escrito por Álvaro Ribeiro







«Na classificação dos sistemas filosóficos temos a considerar duas coisas: a constituição do espírito e os fins a que tende na sua actividade metafísica.

O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente - interiormente e exteriormente - percipiente, nunca se pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que se esforce por chegar, e até certo ponto chegue, a uma concepção monística há um dualismo. Mesmo que dos dois elementos constitutivos da Experiência - matéria e espírito - se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência - o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o espírito, um dualismo.

O género de dualismo, porém, depende de, é condicionado por, o que se considera a Realidade Absoluta, a realidade realmente real; e é a procura dessa realidade que é o fim da especulação metafísica. O espírito não pode admitir duas realidades: a ideia de realidade absoluta envolve a ideia de unidade. Mesmo, portanto, que o espírito admita, como em alguns sistemas - e flagrantemente no espiritualismo clássico - dois princípios, com igual objectividade, reais, é forçado a admitir que o género de realidade de um desses princípios é superior ao da do outro.

Temos, pois, que todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe, por mais que ele lhe queira fugir, que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema pura e integralmente monístico; e um sistema puramente dualístico não seria um sistema filosófico.

Todo o sistema filosófico, sendo, portanto, a tentativa para reduzir a um monismo o dualismo essencial do nosso espírito, é de subentender que represente uma sistematização de elementos da Experiência em torno àquela parte da Experiência - matéria ou espírito - que o filósofo, por causas que, em sua essência, são de temperamento, considera a Realidade. Temos, pois, que, consoante para o filósofo o espírito ou a matéria se apresenta como a realidade essencial, um de dois sistemas pode directamente surgir - o espiritualismo ou o materialismo. - Para o materialista a forma essencial da realidade, seja ela especializadamente qual for no seu especial sistema, é sempre uma realidade de que forma parte inalienavelmente um elemento ou espacial, ou, pelo menos, de inconsciência. - Para o espiritualista, através das várias formas que pode tomar o espiritualismo, há sempre de central e essencial um elemento, o elemento consciência, que é o que o espírito imediatamente concebe como sua base própria. Daqui partem todas as teorias características do espiritualismo - a imortalidade da alma (concebida impossibilidade de anular a consciência), o livre-arbítrio (concebida superioridade do consciente sobre o inconsciente) e a existência de um Deus clara ou obscuramente tido como pessoal, isto é, como consciente.

A ideação metafísica pode, porém, tentar monismo de outro modo mais queridamente absoluto. Não há, é certo, outros elementos da Experiência que não a matéria e o espírito; o pensamento, porém, de certo modo tenta suprimir este dualismo. E de três modos o pode fazer: 1.º Negando toda a realidade objectiva a um dos elementos da Experiência, isto é (consoante já passim vimos), reduzindo o dualismo ao minimamente dualístico (ainda que impossivelmente de todo monístico) dualismo de realidade-aparência. Conforme é o espírito ou a matéria o elemento eliminado, temos o materialismo absoluto ou o espiritualismo absoluto. - 2.º Admitindo a realidade igual de ambos os elementos da Experiência; ora, como isto resulta num absurdo de sistema - dado que a existência de duas, iguais, realidades é impensável -, fatalmente essa dupla realidade tira o seu carácter de realidade de ser, basilarmente, a dupla manifestação de qualquer cousa em sua essência tida por nem matéria nem espírito, ainda que somente existente e real naquelas suas manifestações. Se essa substância as transcendesse, isto é, fosse outra cousa, existisse substancialmente à parte da sua manifestação através de matéria e espírito, estaríamos então piorados para três realidades. 3.º - Negando a realidade a ambos os elementos da Experiência, considerando-os apenas como manifestação, não real mas ilusória, de uma transcendente e verdadeira e só realidade. - Temos assim, além dos citados materialismo e espiritualismo absolutos, no segundo sistema citado o panteísmo, e no terceiro o transcendentalismo».

Fernando Pessoa («A Nova Poesia Portuguesa»).









Fernando Pessoa, poeta e filósofo


O perene diálogo entre a poesia e a filosofia é um dos mais belos capítulos da história da espiritualidade humana. Nunca as duas actividades confundem os seus silêncios ou as suas vozes nas personalidades representativas das épocas e dos povos; cada uma fala por sua vez, com uma regularidade de sentido admirável.

Os híbridos mal designados por «filosofia poética» ou «poesia filosófica» não têm condições de duradoura existência no mais alto plano espiritual; fictícios produtos de dois factores de origens diversas e irredutiveis, mal resistem depois a um estudo que ultrapasse o método analítico das condições do verbo transfigurador. Errada vai a exegese que pretendia atingir a filosofia dos poemas ou a poesia dos filosofemas, julgando reversível a ordem da verdade; diferentes sistemas de categorias determinam os dois tipos de pensamento, sem que qualquer deles possa reivindicar mais alto grau de universalidade.

O que importa averiguar em cada ciclo de cultura é tanto a doutrina pelo filósofo elaborada acerca da poesia como a opinião do poeta a respeito da filosofia, para das mutuais relações aferir a qualidade da alma dos homens e dos povos. Por até agora se ter feito a crítica demasiado literária à poesia e crítica demasiado científica à filosofia, contrariando indevidamente a audácia especulativa, parece ilegítimo o método proposto neste género de estudos; mas as dificuldades que apresenta a reconstituição do diálogo, longe de deprimirem o ânimo do investigador, logo se tornam progressivos estimulantes de uma actividade espiritual de deslumbramento imprevisto.

Os estudos de Leonardo Coimbra acerca da poesia portuguesa, embora ocasionais e fragmentários, podem contudo oferecer o exemplo da mais compreensiva atitude filosófica; do outro lado, Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, marcando diversas atitudes de simpatia para com a actividade filosófica, deram uma contribuição notável para a interpretação do génio português. Se tais páginas admiráveis dos quatro citados escritores fossem com atenção lidas pelos críticos e historiadores da literatura, já a espiritualidade portuguesa teria adquirido maiores possibilidades de desenvolvimento e melhor reputação no concílio dos povos.






Profunda e conscientemente nacional, o movimento da «Renascença Portuguesa» (1911-1915) teve a dupla expressão poética e filosófica; na literatura, na ciência e na política outros movimentos, que surgiram depois, tiveram por fim solidarizar Portugal com os destinos da cultura europeia, e conseguiram de facto maior aceitação no público de mediana leitura; nenhum apresentou, porém, a característica da originalidade: o diálogo da poesia com a filosofia.

A doutrina deste movimento não foi obra isolada de Teixeira de Pascoais. É certo que este escritor proferiu notáveis conferências que elucidaram alguns aspectos da nova poesia; mas por muito insistir na teoria romântica da saudade - sentimento que não se projecta no passado histórico, mas no passado mítico -, a doutrinação de Teixeira de Pascoais foi por vezes mal interpretada. Ao novo movimento foi atribuída uma intenção regressiva e passadista, cuja ameaça política alterou a confiança do povo que esperava entrar numa época de optimismo heróico.

A obra dos poetas da «Renascença Portuguesa» deu motivo a duas interpretações de ordem filosófica: a de Fernando Pessoa, nas páginas de A Águia, e a de Leonardo Coimbra, no livro intitulado O Criacionismo e em outros escritos menores. É sabido que Leonardo Coimbra foi o primeiro filósofo português do seu tempo, e que exprimiu, numa obra complexa, difícil e por vezes enigmática, um drama espiritual que terminou pelo acto da conversão religiosa. Mas quanto a Fernando Pessoa, há quem ignore que ele escreveu alguns ensaios de estética e de metafísica que enriquecem o património filosófico dos portugueses.

A poesia de Fernando Pessoa começou já a ser estudada, e o poeta, desconhecido pelo grande público durante a vida inteira, tem hoje o preito das moças gerações. Os escritos filosóficos não têm sido considerados com igual atenção; são, porém, outras tantas obras-primas de uma inteligência penetrante que não se detém perante os mistérios da alma e os segredos da cultura. Um estudo revelará mais tarde a unidade de pensamento de um escritor que se dissocia em vários heterónimos; à primeira leitura o que bem impressiona é a variedade, e portanto a riqueza, dos pontos de vista que Fernando Pessoa sucessivamente adoptou, deliciado talvez com o espectáculo de incompreensão que lhe davam os contemporâneos. (Leonardo Coimbra, pelo contrário, sofria com as manifestações de intolerância e de desinteligência dos seus conviventes).

A doutrinação de Fernando Pessoa nas páginas de A Águia surgiu subitamente como um escândalo nos círculos literários e mundanos. O caso é que Fernando Pessoa profetizava para breve «o aparecimento do poeta supremo da nossa raça», «o poeta supremo de todos os tempos»: «... a alma portuguesa atingirá em poesia o grau correspondente à altura a que em filosofia já está erguida». Anunciava, enfim, «o próximo aparecer de um super-Camões na nossa terra».






De certo, este elemento de profecia não estava já na linha de coerência do pensador, e representava intencionalmente um exagero perturbante; porque todo o valor do extenso ensaio sobre a nova poesia portuguesa consistia, pelo contrário, no carácter de lógica necessidade, copiosamente fundamentada, do gradual desenvolvimento da mais alta poesia. Tal doutrina ia de encontro aos hábitos da cultura franco-portuguesa, onde tudo é considerado contingente, casual, fortuito ou caprichoso na história literária, para que não se dilua a iniciativa das respeitadas figuras no fundo movente da nação e da humanidade. É patente a influência da filosofia de Hegel - «essa catedral do pensamento», «exemplo único e eterno» do transcendentalismo panteísta - nesta fase doutrinária de Fernando Pessoa. Também Leonardo Coimbra se encontrava, na mesma época, perto do sistema hegeliano, de que mais tarde se afastou. Não que os dois portugueses aceitassem as categorias lógicas e o movimento sintético do filósofo alemão; ambos foram construindo sistemas filosóficos próprios e originais, procurando o sentido inscrito na história da humanidade, e considerando a marcha necessária da cultura que atrai para o infinito a poesia como a filosofia. Mas a filosofia de Hegel, fora, contudo, o «exemplo único e eterno».

É impossível resumir a doutrina de Fernando Pessoa, para a qual julgamos dever chamar a atenção. Fernando Pessoa estuda os movimentos poéticos designados por Renascença e Romantismo, vendo como características predominantes, do primeiro a poesia da Alma e do segundo a poesia da Natura, o que, estabelecido com uma argumentação lúcida e poderosa, permite considerar a nova poesia portuguesa como a conciliação superior. Para justificar este ponto de vista, Fernando Pessoa estabelece uma nova classificação dos sistemas filosóficos. Diz ele: «... todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe, por mais que ele lhe queira fugir, que pense dualisticamente; a noção da realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema puro e integralmente monístico; e um sistema puramente dualístico não seria um sistema filosófico». A tendência monista leva a afirmar o materialismo ou o espiritualismo, satisfazendo-se, porém, a exigência dualista ao considerar o termo oposto como redutível e inferior. Mas além destes dois sistemas, mais acessíveis ao vulgo, outros se apresentam aos pensadores de escol: o materialismo e o espiritualismo absolutos, o panteísmo e o transcendentalismo, materialistas ou espiritualistas, e, finalmente, o transcendentalismo panteísta. E ao expor as linhas fundamentais deste sistema, Fernando Pessoa escreve: «... a essência do universo é a contradição do Irreal - uma afirmação é tanto mais verdadeira quanto maior contradição envolve. Dizer que a matéria é material e o espírito espiritual não é falso; mas é mais verdade dizer que a matéria é espiritual e o espírito material. E assim, complexa - e indefinidamente...».



Transitando do pensamento e da filosofia para o sentimento e para a poesia, Fernando Pessoa escreve agora: «... ao atentar bem nos característicos que deduzimos como devendo ser os da poesia transcendentalista, revela-se-nos imediatamente que estamos em Portugal e em plena descrição da poesia de Antero. Concluímos, pois, que especiais condições de raça fazem do sentimento transcendentalista apanágio de Portugal. Não é preciso mais do que atentar na mera expressão da nossa nova poesia para nos encontrarmos em pleno transcendentalismo panteísta. Logo no vestíbulo da investigação nos aparece a característica contradição deste sistema. 'Materialização do espírito' e 'espiritualização da matéria', 'choupos de alma', quedas que são ascensões, folhas que tombam, que são almas que sobem - não é preciso mais, repetimos. Eis, em seu pleno estado emotivo, o transcendentalismo panteísta».

Uma poesia capaz de corresponder no plano sentimental ao mais elevado sistema filosófico, tal como a que estava acontecendo no nosso país, deveria anunciar o terceiro movimento poético dominante na Europa, tal como a Renascença e o Romantismo outrora o foram.

Fernando Pessoa não acompanhou por muito tempo a «Renascença Portuguesa» nem propagou a doutrina que junto dela tinha explicitado. Nos ensaios estéticos e metafísicos que mais tarde escreveu para a revista Athena, manteve o dualismo fundamental do seu modo de pensar: sentimento - conhecimento, sensibilidade - entendimento, etc., e a sua aspiração unitarista para o divino. A colaboração dada àquela revista é, talvez, a mais significativa do ponto de vista filosófico. Além do artigo sobre a hierarquia das artes, têm particular interesse os ensaios em que Fernando Pessoa preconiza a transformação das ciências virtuais, a metafísica e a sociologia, em artes reais, e a substituição da ideia de beleza pela ideia de força na poética moderna.

Fernando Pessoa era poeta e filósofo, ouvia dentro de si as falas do diálogo eterno. Era também um profeta. Não foi arrancar a realidade portuguesa às trevas do inexistente, com a candeia de historiador ou de passadista: viu-a imediatamente, de olhos erguidos para o Céu, à luz brilhante dos mitos.






Terá o povo que esperar alguns anos pela publicação integral da obra filosófica, estética e política, de Fernando Pessoa. Se, durante esse prazo, nos convencermos definitivamente de que não nos cumpre receber lições do passado, nem do estrangeiro, chegará o público amadurecido à compreensão de uma obra original. Será o momento próprio de determinar os valores autênticos da espiritualidade portuguesa pelo diálogo constante entre a poesia e a filosofia (in prefácio a A Nova Poesia Portuguesa, de Fernando Pessoa, Lisboa, 1944, pp. 7-13, 2.ª ed.).


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