terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Filosofia e arquitectura ou não há imagem sem legenda

Entrevista a Orlando Vitorino




Arranha-céus em Hong Kong


«(...) Assim se vai alimentando a ilusão de que as dimensões do espectáculo cabem num lugar, apesar de tudo arquitectónico, como é um estádio desportivo. Ainda se ignoram as verdadeiras dimensões do espectáculo. Ainda se admira o projecto de um prédio para cinquenta mil moradores a construir em Hong Kong. O Estado ainda insiste em gastar milhões a erguer, com interiores frios de túmulo egípcio (as imagens sepulcrais vão sendo obsessivas) e a designação de Centro Cultural de Belém, um edifício de tamanho e local destinados a ensombrar uma obra-prima portuguesa da história da arquitectura.

Mas a dimensão dos lugares não cessa de ser empolada pelo contínuo entumescimento do espectáculo absorvendo a realidade. Sempre extraídos dos impostos que as populações, submissas e dóceis, vão pagando com fome mas sem sombra de protesto, mais milhões se esbanjam na tentativa de fazer de uma cidade inteira um recinto de espectáculos, a "Lisboa 94". A coisa saiu frouxa e pífia, não porque não se tivessem posto nela cuidados, entregando-a a bons burocratas presididos por um elemento da corporação dos contabilistas, Vítor Constâncio, e pagos tanto a ouro que provocou assomo, logo abatido, de mais um efémero escândalo, de mais uma "inútil indignação moral". A coisa saiu pífia porque não é de festas e festarolas que se trata, porque o espectáculo é outro. Mas a planificação continua a não ver onde está metida e enquanto, pela província, pequenas autarquias, como a da vila de Almeida, recebem milhões - noventa! - para fazerem numa noite de cançonetas a sua "Lisboa 94", mais milhões se lançam na construção de um lugar de vários hectares, a "Expo-98", onde se meterão amostras de todos os mares e gares de caminho-de-ferro "praticáveis". Na província, Santa Maria da Feira adianta-se à "Expo-98" e faz um gigantesco "Euro-Parque". E num projecto para Sagres, há uma pirâmide como as do Egipto - acentua-se a obsessão sepulcral -, mas de luz e com um quílometro de altura.

Assim, passo a passo, de veleidade em veleidade, de pifieza em pifieza, a medida das coisas se vai fazendo ver, assim se vai mostrando que o "gigantismo é a tendência da nossa época". Mas nem o gigantismo chega. Não se trata já nem de planificação, nem de cultura, nem de simulacros de uma e outra. Do que se trata é do espectáculo único, de dimensões planetárias, onde caiba toda a realidade. Porque só o espectáculo é real».

Ernesto Palma («O Plutocrata»).



Hong Kong





A entrevista que se segue resultou de uma conversa entre o Filósofo Orlando Vitorino e o Arquitecto João Luís Ferreira, então ainda estudante da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. A entrevista foi publicada em língua inglesa na revista arquitectura Utópica, em 1988, editada conjuntamente por diversas associações de estudantes de arquitectura da Europa, entre as quais a da F. A. U. T. L.



Filosofia e arquitectura ou não há imagem sem legenda


João Luís. – Quer falar de arquitectura para uma revista que se intitula “Utópica”?

Orlando Vitorino. – Porque não? A contradição pode ser estimulante.

 J.L. – Onde está, neste caso, a contradição?

O.V. – É que toda a arquitectura é tópica. A utopia é o que não tem lugar. Ora nada pode haver sem lugar, o que é sobretudo evidente na arquitectura.

J.L. – Como entender que no nosso tempo – e em todos os domínios, desde a política à, como vemos, arquitectura – se situem na utopia todos os projectos revolucionários?

O.V. – Entendendo que esses projectos não consideram a utopia, e não se instalem nela, como algo de definitivo e dogmático, mas a vejam antes como um caminho que levará, naturalmente, ao abandono do utópico. Martin Bubber, grande mestre contemporâneo dos judeus, escreveu um livro sobre “Os Caminhos da Utopia”.

J.L. – A utopia é, nesse caso, um método de conhecimento?

O.V. – A utopia é, primeiro, uma expressão de desespero, o desespero de não se encontrarem satisfações, nas condições deste mundo real em que vivemos, para os desejos e ambições dos homens. É, depois, um fenómeno caracteristicamente moderno, pois só surge com o Renascimento, embora haja certas interpretações estultas que chamam utopia à “República” de Platão. É, por fim, um género literário, como as novelas de cavalaria, que conta algumas obras notáveis (“Utopia” de T. Morus, “A Cidade do Sol”, de Campanella) entre numerosas mediocridades internacionais, entre elas “O Capital”, de K. Marx, cuja natureza de literatura utópica reside na afirmação da existência de uma abundância de produtos capaz de satisfazer todas as carências da humanidade, afirmação que condiciona todo o cientismo que o livro pretende expor.

Nos últimos tempos, o sentido das “utopias” literárias inverteu-se. Uma vez realizadas algumas delas – as comunistas, especialmente – e confirmando-se que toda a utopia é a abolição da liberdade (as políticas são sempre o controlo de toda a existência dos homens, as artísticas são sempre o condicionamento da imaginação) o género literário passou a ser anti-utópico e apareceram obras como o “Brave New World”, de Huxley, o “1984” ou o “Triunfo dos Porcos”, de G. Orwell, o “Eumeswill”, de E. Junger, que são as mais radicais condenações do utópico.

J.L. – Os “caminhos na utopia” conduzem, portanto, à anti-utopia?

O.V. – Sim. Mas há sempre a possibilidade de entender a utopia como um idealismo provocado por uma justa reacção ao que se encontra institucionalizado. Neste caso, dir-se-á utópica a procura de caminhos (já não na utopia como queria M. Bubber) que o institucionalismo – regimes políticos, universidades, opinião pública… – tem por função impedir. Creio que é este o caso da sua revista “Utópica”. Podemos, portanto, conversar.

Templo de Poseidon (Grécia).


J.L. – Diga-me então: que é a arquitectura?

O.V. – É lugar e proporção.

J.L. – Que é o lugar?

O.V. – É, primeiro, a negação do espaço.

J.L. – Como nega o lugar o espaço?

O.V. – Marcando-lhe limites, definindo-o.

J.L. – A definição é negação?

O.V. – Foi o que nos ensinou Espinosa, que era geómetra, ao pôr como princípio de imaginar e pensar que “toda a afirmação é negação” pois nega o que fica fora do que se afirma.

J.L. – Onde começa a arquitectura?

O.V. – Começa ou na Grécia ou no Céu ou no Céu ou na Grécia.

J.L. – E o Egipto?

O.V. – Aí, foi só geometria. Faltava a proporção para ser arquitectura.

J.L. – Julguei que na Grécia só havia começado a filosofia.

O.V. – A filosofia é o embrião que contém todas as artes.

J.L. – Tudo, então, é filosofia?

O.V. – Nada é sem filosofia.

J.L. – Onde está, no embrião, a arquitectura?

O.V. – Na geometria.

J.L. – Foi por isso que Platão escreveu sobre os umbrais da escola: “só entram os que são geómetras”?

O.V. – Exactamente.

J.L. – Que é a geometria?


Pirâmides do Egipto


O.V. – É a primeira determinação do lugar e a primeira negação do espaço.

J.L. – Diz-se que os gregos ignoraram o infinito. Foi por serem geómetras?

O.V. – O infinito é a negação do limite, portanto do lugar. Onde está o infinito, não há geometria. Há só matemática.

J.L. – Os gregos não foram matemáticos?

O.V. – Aristóteles deixou escrita a refutação da matemática. Dos modernos, só Hegel compreendeu e repetiu a refutação. Dos contemporâneos, só Leonardo Coimbra.

J.L. – Fala em Leonardo Coimbra. É um pensador português que nós temos como o mais importante filósofo deste século. Com ele (e já com o filósofo português que o precedeu, Sampaio Bruno) a negação do espaço, e também do tempo, própria dos gregos, é substituída pela distinção entre espaço homogéneo e espaço heterogéneo. Como se situa esta distinção em referência à concepção do lugar?

O.V. – O lugar supõe, além da definição do espaço, a heterogeneidade que torna possível a definição. A noção de espaço acaba por ser resultante da noção de lugar, ao contrário do que acontece nas culturas do norte da Europa nas quais o lugar ou não é atendido ou é apenas o modo abstracto de um espaço homogéneo.

J.L. – É aí que se funda a distinção entre as arquitecturas nórdicas e a portuguesa, bem como a dos países meridionais ou mediterrânicos?

O.V. – Creio bem que sim.

J.L. – A arquitectura portuguesa, bem como a nossa paisagem ou o nosso país, é composta de lugares, não se insere num espaço homogéneo.

O.V. – Creio que isso explica que tenhamos sido os criadores do barroco, como os gregos e os italianos foram os criadores do clássico.

J.L. – Que fica para os nórdicos?

O.V. – Ficará a arquitectura funcional. Isto é, a arquitectura condicionada, orientada e determinada pelas carências sociais, sobretudo pelo desacordo entre uma natureza (paisagem, clima, ritmos agrários, etc.) agreste e a livre existência dos homens. Este desacordo manifesta-se, por exemplo, na distinção entre o burgo, que é nórdico, e a cidade, que é mediterrânica. O burgo fecha as populações dentro de muralhas que, não só as defendem mas também as isolam. A cidade é sempre aberta: aberta à paisagem, à natureza, à hospitalidade e aos estrangeiros. E não se diga que o burgo, surgindo na Idade Média, foi condicionado pela exigência da segurança face às ameaças guerreiras. Nós, sobretudo em Portugal e Espanha, durante séculos sofremos, como os nórdicos não sofreram, essas ameaças. Todavia não construímos burgos, mas cidades, como os antigos gregos e antigos romanos. Dir-se-ia que os nórdicos são incapazes de imaginar, pensar e erguer cidades. Quando nós as erguíamos, eles construíam burgos. E hoje, em que já se não podem invocar as ameaças guerreiras, eles erguem aquilo a que já chamaram tecnópolis, dando por passada a época das cidades. É este o nome utilizado pelo pensador americano Harvey Cox, da Universidade de Harvard, num livro famoso, publicado em 1965, “ A Cidade Secular”.

J.L. – Tudo isso justifica a existência, entre nós, de uma arquitectura original que está por afirmar ou cuja afirmação tem sido impedida?

O.V. – Sem dúvida. E aí nos refugiamos no utópico para resistirmos à repressão do institucionalismo.

J.L. – Essa arquitectura original foi levada para oriente e ocidente, para o Japão e o Brasil: o barroco, o Bom Jesus e o Aleijadinho, a arquitectura colonial (a religiosa, a civil e a urbana, Nagasaki)…






O.V. – V. conhece o caso de Nagasaki?

J.L. – Decerto. Foi um brasileiro seu amigo, o Arquitecto Carlos Moura, quem estudou a singularidade de Nagasaki, uma cidade traçada e erguida no Japão pelos portugueses e onde foi lançada, logo a seguir a Hiroshima, uma bomba atómica.

O.V. – Mas enquanto Hiroshima se pulverizou, Nagasaki resistiu, o que é explicado pelas características portuguesas do seu urbanismo arquitectónico.

J.L. – Disse que a arquitectura não é só o lugar, é também a proporção. Que é a proporção?

O.V. – É o que o arquitecto acrescenta à geometria. O geómetra define o lugar segundo a medida, que é o homem. Os gregos disseram: “o homem é a medida de todas as coisas”.

J.L. – Como pode o homem ser a medida?

O.V. – Sócrates viu na legenda, que estava gravada sobre os umbrais do Templo de Delfos, o princípio “conhece-te a ti próprio”. Só depois de se conhecer a si próprio pode o homem ser a medida.

J.L. – A medida não é, pois, geométrica?

O.V. – Não. A geometria utiliza a medida. Quem dá a medida é a filosofia. Utilizar a medida é pensar. Por isso pensar é a mesma palavra que pesar. A epígrafe “aqui só entram geómetras” significa: “aqui só entram os que pensam”.

J.L. – Definir o lugar é, então, pensar o lugar como lugar do homem?

O.V. – Não há só o homem. Também não há só o lugar do homem. Há o lugar de Deus, há lugares de outros, seres e ideias. Há a cidade celeste e há a cidade terrestre. A diferença entre a Grécia e o cristianismo está em Santo Agostinho que colocou na terra “a cidade de Deus” como em Cristo encarnou a divindade.

J.L. – Qual o lugar arquitectónico do homem. É a cidade? É a casa?

O.V. – Hegel, que era nórdico e, como protestante, “trazia o Deus na barriga”, disse que a primeira obra arquitectónica é o templo a que chamou “a casa de Deus”.

J.L. – Está certo?

O.V. – Está errado. Tudo o que é do homem tem início no homem.

J.L. – Então o início está na casa do homem?

O.V. – O primeiro arquitecto foi o que imaginou a rua. Depois da rua é que vem a casa e, depois da casa, o templo.

J.L. – Se bem entendo, a ordem é esta: a rua, a casa, o templo, e em seu conjunto, a cidade.

O.V. – É isso, mas, previamente, tem de se determinar o lugar da cidade. Será uma paisagem de colinas para que haja os “vales de lágrimas” bíblicos onde se situarão os edifícios de trabalho, para que haja encostas onde se traçarão as ruas em espiral ladeadas pelas casas de morar, para que haja montes onde se erguerão os templos.

Jerusalém


J.L. – Como se denomina o lugar?

O.V. – Conhecendo o arcano. Todo o lugar é lugar de um arcano que está presente em todo ele e se identifica com todo ele.

J.L. – Que é o arcano?

O.V. – É o que no lugar se guarda, como numa arca da aliança bíblica por exemplo, ou o que guarda o lugar, como pensavam os maçons quando chamavam arcano ao que hoje chamam loja. Ou ainda o que é guardado pela arca e simultaneamente a guarda, como o homem, arcano da casa.

J.L. – O homem é, pois, um arcano?

O.V. – Sim.

J.L. – Há outros arcanos?

O.V. – Sim. Sensíveis e inteligíveis, nomináveis e inomináveis.

J.L. – A arquitectura, a obra arquitectónica, varia segundo o arcano?

O.V. – Segundo o arcano e segundo o conhecimento que o arquitecto tem do arcano. Um deficiente conhecimento de Deus impede a arquitectura de um templo perfeito como o da Acrópole, o dos Jerónimos em Lisboa, o da Sagrada Família em Barcelona. A ignorância de Deus inibe a arquitectura de um templo.

J.L. – O mesmo acontecerá quando o arcano é o homem?

O.V. – Inevitavelmente.

J.L. – Quando se refere ao homem refere-se ao indivíduo, à humanidade, à sociedade?

O.V. – Só o indivíduo é homem real. Só ele é arcano. Só ele pode e deve conhecer-se a si próprio.

J.L. – Mas há uma arquitectura social: casas, bairros, até cidades e burgos de finalidades sociais. E há famosos arquitectos dessa arquitectura. Le Corbusier, por exemplo.

O.V. – Não é arquitectura, não são arquitectos. São funcionários sociais ou só funcionários pois a sua “arquitectura” é em função de, não possui o princípio ou a arché da qual se deduz. A arquitectura faz-se a partir de, não para. Faz-se a partir do homem, não para o homem.

J.L. – Há formas arquitectónicas a que não podemos negar um certo carácter social. Um teatro, por exemplo.

O.V. – Não há aí nenhum carácter social. Trata-se de uma arquitectura a partir de um arcano que será difícil, talvez impossível, entificar pois pertence ao mundo dos inteligíveis, ao mundo das ideias. O arquitecto faz o edifício de um teatro a partir de uma certa concepção do teatro que varia de religião para religião.

J.L. – Quer dizer que há vários tipos de arquitectura teatral? Quer dizer que de cada concepção do teatro se deduz um tipo diferente de arquitectura?

O.V. – Exactamente.

J.L. – Pode exemplificar.



William Shakespeare



O.V. – Consideremos três modelos de arquitectura teatral mais marcados: o grego, o elizabethiano e o romântico: O modelo grego sabemos como é, um círculo que o diâmetro corta, destinando-se uma metade para os actores, a outra metade para os espectadores. O arcano desta forma é, primeiro, uma concepção do mundo em que co-habitam deuses e homens, seres inteligíveis e seres sensíveis, essências e aparências; é depois, a consequente concepção do teatro como o confronto entre essências e aparências representado no conflito entre deuses e homens: O círculo arquitectural figura o lugar que tem por arcano o mundo não infinito cujas duas metades se vão contrapor no espectáculo dramático. O modelo elisabethiano (o do “globo” de Shakespeare, dos corrales espanhóis e dos pátios portugueses) é também o de um círculo que define o mundo. Mas nele não estão divididas suas duas metades pois a divindade inseriu-se no mundo pela mediação de Cristo. E o podium ou palco fica no centro do círculo como a acção dramática decorre no centro dos homens que a ela assistem e até interferem como coisa sua. Finalmente, no modelo romântico, o círculo ovaliza-se e um corte secante, tão diminuto quanto possível e tendendo para o ponto tangencial, marca o lugar dado à representação dramática. O teatro é, então, o lugar de encontro entre a realidade e o sonho, o finito e o infinito, entre este e o outro mundo. Na linha oval dentro da qual se colocam os espectadores a arquitectura representa este quotidiano mundo real dos homens; no ponto tangencial para que tende o corte secante, estará a possibilidade ou a abertura para o outro mundo, infinito e onírico, irreal e ideal. Creio ter-lhe dito o suficiente para demonstrar como a arquitectura de um edifício teatral se deduz da concepção do que é a arte dramática. Este exemplo pode constituir um paradigma de como toda a arquitectura se deduz de seu princípio, arcano ou arché e não é em vão que se chama arquitectura.


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