segunda-feira, 9 de maio de 2011

O humanismo cristão

Escrito por Leonardo Coimbra








«Leonardo Coimbra afirmara-se sempre cristão; transferindo, porém, o seu conceito de cristianismo, do plano moral para o plano religioso, foi levado a admitir a divindade de Jesus, e a aceitar a teologia católica; o espírito de Leonardo Coimbra não pertencia à família dos impenitentes heterodoxos, como Pascoaes, nem à dos ocultistas lunares como Fernando Pessoa: todo ele era alvoraçada procura do sol da ortodoxia».

Álvaro Ribeiro



(...) o Absoluto não é a ideia das ideias, o bem dos bens, a verdade das verdades; mas o Deus abscôndito em presença humana, salvando os homens e, por estes, a própria matéria.

Absoluto real, absoluto verdadeiro, não primeiro acto dum processo de actualizações; mas Acto primeiro, criador de matéria e de formas, das coisas e da vida, dos mundos e das almas.

O Deus eterno do povo fiel, a despeito de traições e quedas; o absoluto, em eterno, do tempo que discorre; o inacessível, o ignoto e insondável, o Criador que envia o seu verbo aos homens e o «Verbo de fez carne e habitou entre nós».

E a história adquire, de pronto, todo o seu sentido e todo o Universo é histórico.

Antes de Cristo: o homem e o pecado, o homem e a virtude por si é inoperante para além de cada e de todas as almas.

Cristo: o homem e a graça, o homem e a natureza capazes de harmonia, readquirida inocência e acordo - a própria matéria penetrável, até à medula do seu ser - ser que foi criado, e não é, pois, pura dispersão - pelas intenções benévolas das vontades amantes.

Depois de Cristo: o homem e o seu esforço, a semente do mérito germinando em glória e eternidade no seio da Terra, no âmago do sensível e do múltiplo, transfigurando as almas e os mundos até à beatitude duma contemplação eficiente, até à harmonia das novas Terras e dos novos Céus.

O ideal é uma vida, essa vida é a verdade porque é o amor e é o amor porque é a verdade e a vida.

O Ideal nem é uma meta inacessível, nem o caminho dum esforço insuficiente; mas uma Pessoa, um coração, um amor, a própria Caridade criadora e redentora.

O ângulo da avidez humana abre-se em toda a extensão, e, em toda a extensão e altura e profundidade da sua fome de ser, pelo encontrar o infinito do ser, dando alimento a essa fome, água a toda a sede, vida em crescimento sem fim a uma avidez aquietada e sempre crescendo na alegria de se banhar, de posse, em presença viva e real da verdade, no infinito do mar do Ser, que é o mar infinito do conhecimento e do amor.

O lugar do homem é dum certo modo - o modo humilde - o centro da criação.

O coração humano é como o filtro onde a natureza se purifica para servir a vida do Espírito.

Somos semeados em corpo de morte e corrupção, ressuscitaremos em incorruptível corpo de imortalidade.

A Parúsia marca a conclusão de toda a viagem do homem e da natureza desentendidos (porque o homem se afastou de Deus), viagem de inquieta procura, na névoa, do Deus de que o homem se separou, das linhas da harmonia duma natureza obscurecida por sua pecaminosa vontade de domínio e orgulho.


O homem idealista do paganismo era uma natureza, que não poderia explicar as suas irredutíveis exigências de infinito. Traduziu-as na palavra Ideal, mas o Ideal era inacessível, insuficiente e incapaz.

A vida era um desterro do inteligível e este era o lugar metafísico duma possível contemplação filosófica e não a vida plena, a integral vida do conhecimento da vontade aquietada mas forte e querendo sempre mais, da posse perfeita, do reencontro e do Amor repousando e em crescimento sem fim.

Fons vincit sitientem, fonte maior que as sedes e, por isso mesmo, sedes aquietadas, sem febre, nem receio de perda, mas sedes crescendo sempre e permanentemente saciadas.

Cresce a sede e a água e a sede cresce porque a água é amor e amor de mais amor.

Vida de plenitude, mas plenitude viva, um pleno que se faz e refaz perenemente, porque esfera tangente a um Infinito que a envolve, e, por Amor, a contacta, solicitando-a para além.

O humanismo pagão não tinha infinito, o seu infinito era o simples sinal (de álgebra da ontologia) de carência aposto a todo o contingente. Nessa carência se movia a ansiedade humana tentando a libertação.

À consciência do nada do ser contingente respondia Platão apondo o sinal positivo, da álgebra da ontologia, ao mundo inteligível - a libertação era, então, a morte ou fuga do desterro em condições de não regressar à vida.

A Vida partida em dois hesmiférios -de luz e trevas - e o resgaste era a fuga das trevas para a luz com a negação de todo um hemisfério da Vida.

À consciência do nada podia responder-se com a renúncia, encontrando na vontade humana a luz consciente desse nada e soprando-lhe para a apagar - o budismo (1); podia responder-se com a aceitação, tudo recebendo da Vontade total da natureza, dando razão ao que é e fazendo calar as exigências do que deve ser no mais fundo da alma do homem - o estoicismo.






Um hemisfério da vida desprezado, a vida apagada num sopro, extinguindo-se na fusão nirvânica; o dever e o próprio ideal desaparecendo na ascese negativa da total aceitação.

O homem natural não pode, com efeito, subir com mais largas e abertas asas que as do platonismo e aí ficará voando para um Céu distante num desprendimento do concreto, do vivo, do real, da carne e do sangue, da Terra e do eficiente heróico amor da vida integral: de carne, sangue e alma.

A fidelidade ao sentido da Terra de Nietzsche acorda, em nós, a simpatia, porque somos da Terra também: são nossos ossos irmãos do dorso montanhoso do planeta, corre em nosso sangue a água que nele é o mar - o seu imenso coração - lançando, pelos rios, em suas veias a revitalização do seu imenso e vigoroso corpo.

E que o homem natural não existe, para o cristianismo o homem natural é um simples esquema abstracto para marcar possibilidades.

O homem foi criado em natureza para se fazer em liberdade.

A sua natureza é de ser livre, mas o ser livre é o ser que recebeu a possibilidade de se fazer livre.

Um ser livre é dum certo modo já um ser ilimitado - o que não quer dizer um ser infinito.

Um ser livre não fica no ponto de inserção de séries de fenómenos; mas, superior aos fenómenos, digamos, perpendicular à vida, pode atar e desatar as relações do plano a que é sobranceiro.

(...) Há, com efeito, no mundo contemporâneo, uma forma de humanismo que reduz o Universo a uma integral referência, subordinação e dependência do homem - o humanismo antropolátrico.

Mas este humanismo só é nítido depois do cristianismo e em consciente negação de Cristo, de Deus e do espírito, deixando o homem reduzido a uma vontade-força, a uma exclusiva vontade de domínio exaustivo e conquistador.

O humanismo idealista, de idealismo realista, não nega o espírito, e, encontrando o puro homem natural (dado em natureza, refazendo-se em liberdade) reduzido, quando não desviou para o erro e o mal a sua liberdade, ao indefinido duma acção, sempre a mesma, de relações harmoniosas no Universo, fica suspenso no vazio de uma aspiração ideal, sem termo que feche num abraço totalizante o curso dispersivo da Vida.

O puro homem natural (simples esquema abstracto) que vimos estudando é na realidade inexistente e prova a sua inexistência pelo absurdo da sua posição no real - requerendo um ilimitado que seria um ciclo de repetições, da mesma medíocre existência dum acordo, que não foi perdido e que pela simples atenção duma vontade benévola se repete e mantém indefinidamente.

O homem real não é o puro homem natural, mas sim o homem que optou e opta, o homem que usou mal a sua liberdade e que, enredando as suas relações com os seres e os mundos, as suas universais relações, vive longe de Deus e em desarmonia com o Universo.


Mosaico da Transfiguração, no Mosteiro de Santa Catarina (Monte Sinai, séc. VI).




Igreja da Transfiguração, no Monte Tabor




Não é ainda o homem decaído do estado de natureza, pois já vimos que tal estado é meramente abstracto e não explicaria a fome de infinito e eterno, a transfiguração e transmutação da vida que faça esta substancial, de lábios colados a uma fonte capaz e não em permanente caminho por entre fontes insuficientes para a sede que transporta.

O homem real é o homem decaído dum estado sobrenatural, em que a natureza, dada em liberdade, pela liberdade se possui aumentando-se no amor de Deus ou diminuindo e perdendo-se em rebeldia e afastamento.

Este o significado do pecado original.

O homem autêntico, o homem da realidade é o ser de liberdade merecendo ou desmerecendo a vida deiforme, e, quando a não mereça, descendo da liberdade para a natureza até minguar e obscurecer a própria natureza no que ela teoricamente seria sem a Graça, que a põe em condições de escolher o Infinito Bem ou de Ele voluntariamente se afastar.

Eis o homem cristão.

Desterrado, sim; não do mundo inteligível para o mundo sensível, mas do mundo edénico para o mundo de prova, da dor, da angústia, do trabalho, que pode ser de perda ou de resgate.

Sim, porque essa natureza era de liberdade e liberdade sobrenatural.

Corrompeu o que seria a natureza esquemática dum possível homem de simples natureza em liberdade não sobrenatural?

Não; porque este homem jamais existiu, e o que, no homem, poderemos encontrar de correspondente a essa possível natureza é o homem incompleto do idealismo realista, onde o verdadeiro homem de Deus aparece na insatisfação de um Ideal, que ele pensa e compreende, mas que o deixa inquieto, removido duma ansiedade que aquele Ideal não pode tranquilizar: é um homem com fome e sem conhecer o Pão, com sede e sem ver a Fonte, pressentindo-a, porém, na própria angústia da sua sede.

Eis, pois, como sendo o homem um só homem - o homem de Deus - nele encontramos teoricamente dois homens - o da natureza e o da graça.

(...) O cristianismo, por isso mesmo que é o supremo transcendentalismo, é também o supremo imanentismo: as relações são as mesmas que as da natureza e da graça, do natural e do sobrenatural.

(...) A sensibilidade magnetizada pelas linhas de força da espiritualidade elevará a natureza até o homem, o homem à graça; e natureza e homem, reencontrando-se na harmonia da intenção divina, hão-de fazer em si uma amizade como a da alma com o corpo, pois que a matéria mais não é do que o verdadeiro corpo do homem purificado e livre.

Do mesmo modo e mais claramente ainda é a ciência uma promoção do homem católico.

A ciência é de origem grega e o idealismo realista dos Gregos era a prefiguração e o esforço, a orientação no bom sentido, o pressentimento no pleno de aspiração humana e no impossível dum Ideal, da Pessoa infinita, ou o desenho, em vazio aspirante, do infinito do amor, ou seja, do Deus-Caridade.

A ciência grega era contemplativa, um como querer platónico de escalada do mundo inteligível, a anamnese platónica, a visão aristotélica dos princípios e das formas.

Os problemas científicos que nos legaram os Gregos mostram claramente o jeito platónico do seu pensamento como o da quadratura do círculo, o problema de Delos, etc.

Não eram soluções que lhes interessavam, mas as soluções aristocráticas, dentro do condicionalismo das suas exigências de beleza e desinteressada contemplação. A ciência interessava essencialmente como ascese da alma, subindo ao mundo inteligível, às formas e aos princípios.



Pitágoras de Samos



O escândalo dos irracionais (a incomensurabilidade de certas linhas descobertas por Pitágoras), a ponto de aparecer a lenda de naufrágios em castigo de certas inconfidências, mostra bem qual a exigência de ordem, harmonia e beleza que movia os Gregos na procura da verdade.

A verdade e a sua magnífica existência coroava-se de resplendor, e esse resplendor era a beleza... Beleza, verdade e bem eram as estrelas zenitais de toda a cultura helénica.

Saber era subir da sombra à luz, da imagem ao objecto, da cópia ao modelo, das aparências aos seus arquétipos com Platão, ou era, com Aristóteles, ver nos indivíduos as formas que são o acto da sua existência, reduzir os fenómenos às causas e razões pela sua participação na luz dos princípios.

Se a física de Platão é uma promoção da matemática, seja uma anamnese do inteligível pitagórico, a de Aristóteles, pela hierarquia das potências actualizando-se até ao acto puro, é, no pensamento, uma ascensão para os princípios universais e é, no objecto, uma aspiração para o inacessível vértice da pirâmide da natureza, que é o Motor Imóvel. Pouco experimental e sem cuidado de aplicações, o desinteresse da ciência grega não é apenas abstenção superior perante o imediato, por disciplina e superação, mas é também o desdém aristocrático por esse imediato, justificado aliás pela sua implícita e explícita metafísica do radical negativismo e rebeldia da matéria.

A ciência moderna é a ciência helénica baptizada, quer dizer, iluminada por um transcendente espírito de caridade, é omnímoda, experimental, prática, confiante no indefinido das suas possibilidades e aspirando a encontrar em todo o campo da realidade inserções para o proselitismo duma vontade apostólica.

A matéria não é o mal; criada por Deus, ela será, como o resto das existências, ideia, palavra do Verbo por quem todas as coisas foram feitas.

A Idade Média é uma época de assimilação e ordenação das almas e dos povos à luz do cristianismo, época de interiorização e trabalho de desbravamento da natureza indócil e desordenada.

A interiorização em esforço contemplativo é acompanhada duma caridade contemplativa e activa: Maria e Marta, ao serviço de Cristo.

A Caridade activa é ocupada em urgências onerosas das necessidades da vida, das obras de assistência, auxílio, arranjo agrícola das terras incultas e bravias; a Caridade contemplativa é a vida mística e de oração que, acompanhando os trabalhos das artes e lavoura, é, em relação à ciência, procura e guarda dos tesouros da Antiguidade, para uma assimilação, que virá criar em potencial a vontade da ciência moderna.

A Renascença não é o encontro passivo do saber antigo, é, antes, o excitante para vontades já temperadas e tendidas para um largo exercício das novas formas da Caridade activa.

A Renascença é um movimento que num sentido é um simples ressurgir do humanismo pagão, mas, em outro sentido, é a extroversão das vontades de amor cristão, plenas de força duma meditação aumentativa elevando o ritmo da Caridade à audácia duma conquista limitada das forças e bens da natureza.

(...) É esta Renascença que irá, paradoxalmente mas com toda a glória, confluir com a Reforma para o aparecimento das correntes dum humanismo de suficiência em que o homem começa a aparecer como centro do mundo e da realidade. Estas duas correntes, juntando-se com uma veleidade do espírito científico moderno, veleidade dominada nos sábios criadores, fazendo-se querer explícito nos vulgarizadores ou cientistas, virão a dar o humanismo, que, por último, estudaremos e a que daremos o nome de humanismo antropolátrico.

Há um paganismo que não renasceu, mas sempre viveu no homem da Idade Média, pois o homem se superou, em seu realismo pleno, o idealismo realista dos Gregos, não o extinguiu e antes lhe deu o verdadeiro sentido; esse paganismo é a insuficiência do homem natural pressentida e afirmada pelos Gregos e explicada e resolvida pelo cristianismo.

É a esta Renascença, que o não é, que devemos ir buscar o sentido da ciência moderna.

E esse sentido é o que deve ser a superação da ciência grega pela Caridade activa, a contemplação helénica e seu desinteresse aristocrático, e porventura desdenhoso, feitos contemplação, no homem, da carne sangrenta e dolorosa de Cristo, nos elementos, do verbo divino obscurecido nos olhos humanos por falta de diligente e atento amor.


Quer dizer: não há mais matéria rebelde e despida de toda a ideia ou faiscando fogo divino; a própria matéria terá salvação e, portanto, destino transcendente (os sacramentos, S. João, Santo Ireneu, etc.).

Não há mais fuga para o inteligível por desdém aristocrático do trabalho e da experiência no plano da sensibilidade.

Há, pelo contrário, um homem e uma natureza, essencialmente amigos e que o pecado original separou: a Caridade para os homens é também caridade para com a própria natureza.

Assim o amor da natureza, o amor católico do ser vive em S. Francisco e seus filhos, mostrando como a Idade Média preparava o bom espírito à ciência moderna: mais que preparado, tinha-o e usava-o, como um R. Bacon, por exemplo.

A natureza, obra de Deus, abre-se amplamente à curiosidade e ao amor franciscano e o platonismo dos sábios franciscanos é um platonismo baptizado, seja, um platonismo no qual a ideia não é duma classe ontológica (fidalguia?) incompatível com o sensível, mas é a sua alma, sentido e significação.

A ciência moderna é, pois, uma vontade de conquista dos segredos da natureza por amor do que eles significam (desinteresse), como é uma promoção da Caridade activa feita filantropia, para, servindo o homem, o livrar da miséria, doenças, privações e desarmonias duma natureza parecendo madrasta, mas, sendo de origem irmã e amiga, destinada ao serviço do homem, das necessidades do corpo e da alegria intelectual das almas.

A ciência moderna difere, portanto, da ciência grega na sua mais ampla curiosidade e em sua vontade de poder de acção para serviço do homem (in A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, Livraria Tavares Martins, 1962, pp. 18-25; 29 e 32-37).


(1) O budismo é mais do que isto; mas, como ontologia positiva, é, no fundo, isto e só isto.


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