domingo, 22 de maio de 2011

O Bateleur (i)

Escrito por António Telmo








A CONSPIRAÇÃO DOS LINGUISTAS


... A linguística sempre me tinha aparecido como uma actividade intelectual neutra ou neutral nas grandes lutas dos espíritos que se ocupam de filosofia, de religião ou de política. Via nos linguistas uns seres humildes e trabalhadores tão inofensivos como os coleccionadores de selos ou de moedas que organizam catálogos para outros coleccionadores. Depois do que ouvi a Tomé Natanael, dizia para mim: "A linguística só tem interesse para os linguistas. Lêem-se uns aos outros. Formam entre si uma esfera fechada que roda sobre si mesma. Não pretendem sair dessa esfera para influenciar outras zonas de acção do pensamento. São dotados de uma grande paciência e de um grande interesse pela minúcia. Estudam as engrenagens da língua com o espírito de um relojoeiro perante a engrenagem de um relógio. A influência que possam ter no mundo é nula como a do relojoeiro: este não impede que o tempo continue inalteravelmente a passar, aqueles que se continue a falar como Deus dá".

Pus estas interpretações a Tomé Natanael que sorriu, olhando-me com amizade:

- A linguística é o que há de mais importante, porque o seu objecto é a palavra, sem a qual não poderíamos pensar e comunicar o nosso pensamento.

- Mas têm os linguistas consciência disso - perguntei eu - ao ponto de se entenderem entre si numa conspiração?

- Os menores não têm. São simples instrumentos.

Tentei resistir:

- A história da linguística tem sido contada muitas vezes e sempre da mesma maneira. Não há dúvidas de que se estabeleceu como ciência no princípio do séc. XIX, ao longo do qual se foi desenvolvendo até aparecer na forma do "estruturalismo" que domina todo o séc. XX. O que ficou para trás é pré-história.

- Até agora que eu saiba ninguém disse que o estruturalismo constitui uma reacção dos judeus contra a linguística alemã.

Sempre que ele mencionava elogiosamente os judeus, sentia-me incomodado interiormente; era como que uma sensação de uma ameaça indefinível que lembrava aquela que, no conto, o poeta tivera ao visitar a exposição [1]. Pareceu notá-lo, porque disse:

- Não pense que eu estou inteiramente de acordo com o estruturalismo. Sou um cabalista e, por isso mesmo, alguém em quem se concilia o judaísmo com o cristianismo. Eu nunca poderia subscrever esta afirmação de Emílio Benveniste: "Eu considero a praga a expressão blasfematória por excelência, inteiramente distinta da blasfémia como asserção difamante em relação à religião ou à divindade (assim a "blasfémia" de Jesus proclamando-se filho de Deus, Marc 14,64)".

Fiquei estarrecido.

- Emílio Benveniste escreveu isso?

Foi até a uma estante, tirou um livro, abriu-o numa dada página e entregou-mo. Voltei a ler o que ele dissera de memória. Era o segundo volume nas Edições Gallimard de Problemas de Linguística Geral. A página era a 254.

- Está aí a prova do judaísmo de um dos mais notáveis estruturalistas do nosso tempo. Mas repare nos nomes dos outros famosos: Jacobson, Noam Chomsky, Benjamin Lee-Worf, Eduardo Sapir... Há nos escritos destes homens evidentes relações com a Cabala, mas só Benjamin Lee-Worf se lhe refere explicitamente, dando-a como base do seu pensamento linguístico.

Não estava a compreender. Ele dissera, há instantes, que era um cabalista e, por isso mesmo, alguém em quem se conciliava o judaísmo com o cristianismo; mostrara, depois, como Benveniste se opunha ao cristianismo nos termos próprios de quem segue a religião de Moisés; dizia agora que os estruturalistas, entre os quais punha Benveniste, eram cabalistas, velada ou declaradamente. Mostrei-lhe estas contradições como se viessem da obscuridade do meu espírito.

Moisés e a serpente de bronze


Defendeu-se assim:

- A Cabala é uma coisa muito antiga. É propriamente a tradição secreta hebraica. Jesus Cristo foi o supremo cabalista, como pode facilmente ver-se nos Evangelhos. Os judeus ortodoxos desconfiam da Cabala, porque vêem nela uma possível garantia para o cristianismo. Você conhece os livros do maior historiador judeu da Cabala, G. G. Scholem? Deu-a como nascida no século XII, tirando-lhe assim o prestígio da sua antiguidade milenária; explicou-a como uma forma da gnose cristã com vestes hebraicas. A verdade, porém, é que há uma Cabala hebraica, tão antiga como Moisés; há uma Cabala cristã, tão antiga como Cristo e há a Cabala de Portugal, que é a minha, e que faz a síntese das duas. (Perdoe-me lembrar-lhe: não foi esta síntese que inspirou a sua Gramática Secreta da Língua Portuguesa?). Como Tomé, de meu nome, reactualiza-se em mim o irmão gémeo de Jesus e como Natanael o judeu sábio que o procurou. Mas você é Telmo e tem, por isso, de pensar-se à luz do que é Hermes. É a razão por que lhe dei a ler o conto e lho dei para que fizesse dele o que quisesse. Não lhe digo a relação com Hermes que há no conto. É você que tem que descobri-la.


A PRIMEIRA FIGURA DO TAROT


O que é que Telmo teria que ver com Hermes?

Depois de ter consultado vários dicionários onomásticos que nada me disseram, deparei por acaso com a explicação. É sempre assim. Estudamos, estudamos. Seguimos todas as pistas possíveis e imaginárias e um dia, quando já estávamos a ponto de desistir, deparamos por acaso com a solução do problema.

Eu tinha comprado um livro de Rodrigues Lapa de que não me lembro o nome. Cheguei a casa e pu-lo numa estante para o ler mais tarde. A minha cadela que tem um nome foneticamente parecido com o meu, o nome de Elba, ficou muito contente de me ver entrar e, observando que eu saía de novo sem a levar comigo, ficou furiosa. Foi-se ao livro onde ficara o cheiro das minhas mãos, arrancou-o da estante e rasgou-o com os dentes em pedaços. Quando, horas depois, regressei a casa, deparei com este miserável espectáculo. Apanhei do chão uma folha que me pareceu em melhor estado e vi, espantado, que ali estava a explicação do meu nome. Diz o ilustre filólogo que havia na Galiza, algures, o culto de Hermes. O cristianismo apropriou-se desse culto, interpretando o deus grego como um dos seus santos. De Santo Hermes veio Santo Ermo e depois Santo Elmo e por fim São Telmo. Fiquei assim a saber que Telmo era uma modificação de Hermes, graças à fúria da minha cadela e ao seu amor por mim. Mas o que é que isso tinha que ver com o conto?

Encontrei a resposta à minha pergunta num livro sobre o Tarot que comprara anos antes e nunca tinha podido ler. É um livro de uma portuguesa. Thereza de Melo, que tem por título completo O Tarot, A Arte de Adivinhar com Cartas. Ali, obtive a seguinte afirmação sobre a primeira figura do Tarot, aquela mesma que o protagonista do conto queria realizar em si:

"O mágico exprime o primeiro estado de consciência, a construção de uma personalidade que pode manifestar-se como expressão de uma vontade firme ou como um manejo de máscaras, ilusões e enganos. Em ambos os casos representa pictoriamente Hermes-Mercúrio.

"Hermes, filho de Zeus e Maia - o Céu e a Terra - é o mediador. Daí os seus atributos hermafroditas: fusão do masculino e do feminino; para os alquimistas, Mercúrio era um elemento neutro.

"Segundo uma lenda, tendo-se desgostado de seu irmão Apolo, Hermes deu-lhe uma lira para se reconciliarem e, em troca, recebeu uma vara cujo poder consistia em apaziguar as querelas e conciliar as oposições. Hermes encontrou-se com duas serpentes que lutavam ferozmente e interpôs a sua vara: as serpentes entrelaçaram-se à volta da vara, formando o caduceu. As duas serpentes simbolizam as duas formas de energia: masculina e feminina, e Hermes aparece como conciliador. Esta função de mediador leva-o a ser o mensageiro dos deuses, o intermediário por excelência. O seu dom da palavra e da eloquência dá-lhe a ambiguidade do verdadeiro e do falso. É um mago e, simultaneamente, um prestidigitador.

"Hermes está vinculado a Thot, que também traz um bastão característico da conciliação e da imortalidade.

"Também é interessante a conexão do Mago com o mito de Prometeu. Assim como Hermes tentou roubar o raio de Zeus, também Prometeu procurou roubar o fogo divino com um ramo oco de funcho (a vara que o Mago ostenta na carta?). A este Deus mediador se atribui o cômputo do tempo, a invenção do alfabeto e dos números, a medicina e a previsão do futuro.

"Em todos estes casos as conexões dos mitos apontam ao manejo do poder de conciliar os opostos - daí as figuras hermafroditas.

"O caduceu, a vara de Thot e o ramo de funcho de Prometeu simbolizam a vara do Mago: domínio da magia e da palavra, sinal de vontade. Esta personagem, é sempre rodeada pela ambiguidade do real e do ilusório, da verdade e da mentira, do saber e da astúcia.






"Atribui-se-lhe a letra Beth, que significa casa. Daí a conexão com Hiram e a Construção = Maçonaria".

Compreendi, ao ler este texto, que o antiquário me sugeria a imitação do deus. De leitor do conto eu passaria a actor.

A ideia não me agradou porque punha em perigo a minha inteligência. Os manicómios estão cheios de desgraçados que passeiam pelos corredores as sombras de Napoleão ou de Cristo. A vida dos homens que seguem, neste mundo, a atracção do espírito apareceu-me, de repente, como um manicómio. Sempre amei as manhãs lúcidas de Verão. Compreender ou não compreender essa é que é a questão. A outra, a de Hamlet, acaba sempre em tragédia.

O que me fascinava, neste conjunto de acontecimentos intelectuais que venho narrando, era que, sem que se visse que alguém o quisesse, todo ele se formava à volta da ideia de Hermes: era a descoberta da significação do meu nome, era o conto e a primeira figura do Tarot, eram as nossas conversas sobre a linguística.

Fui a casa do antiquário para lhe dizer isto mesmo que aqui pus, que não me interessava minimamente a imitação do deus, mas sim compreender o que ele ensinou aos homens sobre a linguagem.

- Não sei se é possível uma coisa sem a outra. Você já leu o Crátilo?

Respondi que sim, embora já não me lembrasse bem do que Platão ali dizia.

- Mas lembra-se, com certeza, de que o diálogo nasce e se desenvolve por causa do nome de Hermógenes. Tudo começa com uma discussão entre um jovem chamado Hermógenes e Crátilo, aquele mesmo que deu o nome ao diálogo. A opinião de Hermógenes é que os nomes que damos à multidão dos seres têm uma origem convencional. Assim, a flor chama-se flor, não porque haja qualquer relação directa ou indirecta entre os elementos da palavra, aquilo a que chamamos fonemas, e a essência da flor real, mas porque se combinou designá-la assim. Poderíamos dar-lhe qualquer outro nome. E é o que, de facto, argumentava ele, acontece com a variedade das línguas. Cada uma designa a flor de modo diferente.

Crátilo via naquela opinião de Hermógenes o sinal inequívoco de ele estar de fora perante a ciência das letras, a antiquíssima ciência, outrora ensinada aos homens por Hermes. À luz dessa ciência, à qual os iniciados davam escondidamente o nome de "hermética" e os profanos o de "gramática", a palavra flor era síntese de quatro fonemas, significativa do que era realmente a flor: um sopro de vida (o f) levantando (o l) o ser invisível da planta até à forma suprema de uma esplendorosa rotação (o o e o r).

Compreende-se assim que o Crátilo dissesse ao jovem, pois que o seu nome significa "da geração de Hermes", que não dizia nada quem o chamasse por Hermógenes.

Sócrates surge no momento em que a oposição entre os dois parece irredutível. Ele vem como o terceiro, como aquele que tem um ponto de vista superior ao do primeiro e ao do segundo. Não assume a atitude desdenhosa do iluminado Crátilo. Propõe-se logo iniciar Hermógenes na sabedoria transmitida pelo deus. O facto de se chamar Hermógenes é, ao contrário do que pensa Crátilo, o sinal de que o jovem tem, no próprio nome, a marca de uma predestinação hermética. Sócrates vai proceder de modo a que ele tome consciência de si como de uma manifestação do deus Pan, filho também de Hermes, segundo o mito. Todavia, a duplicidade de Pan, metade homem metade bode, uma vez assumida, pode levar ou à realização de uma natureza superior ou à degradação que conduz à subconsciência animal.

E concluiu:

- Como vê, também Platão ensina que uma coisa não é possível sem a outra. A verdadeira compreensão é sempre a relação do ser com o saber (in O Bateleur, Edições Átrio, 1992, pp. 21-29).


[1] Alusão a Fernando Pessoa visitando uma exposição de caricaturas apresentada por Almada Negreiros. Este episódio encontra-se descrito no Bateleur, nomeadamente em «Um Conto Exemplar».




Almada Negreiros



Continua


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