Esta bela flor espiritual brotou de uma haste que mergulha as raízes na terra e no sangue, entre os quais se estabeleceram verdadeiros laços de parentesco.
A PAISAGEM
É na região de Entre-Douro-e-Minho, que o Portugal de terra se mostra em alto e nítido relevo. É ali, portanto, que devemos estudar a Paisagem, como fonte psíquica da Raça.
Quem atingir as alturas do Marão, o seu píncaro mais elevado (1400 metros acima do mar) onde está edificada a pequena ermida da Senhora da Serra, avista, para as bandas do nascente, o escuro e montanhoso Trás-os-Montes; e, para os lados de noroeste e nordeste, o Minho viridente. Depois, aproximando o olhar, descobre, nesta mesma direcção as terras vizinhas do Tâmega que participam de Trás-os-Montes pelo acidentado do terreno e do Minho pelo verde e alegre colorido dos seus vales e pradarias.
O doloroso drama transmontano e o bucólico idílio minhoto, fundem-se, na região do Tâmega, numa paisagem original que é o próprio busto panteísta do génio dos lusíadas.
Se exceptuarmos as planícies do Alentejo, monótonas, como que anoitecidas de um vago e antigo sonho mourisco, e os desnudos planaltos transmontanos de uma hostil e amarela aridez judaica, a paisagem portuguesa (1) é quase toda igual à banhada pelo Tâmega.
Entre-Douro-e-Minho é o coração de Portugal casado ao sentir ingénito da Raça.
A reflexão da paisagem no homem é activa e constante. A paisagem não é uma coisa inanimada; tem uma alma que actua com amor ou dor sobre as nossas ideias ou sentimentos, transmitindo-lhes o quer que é da sua essência, da sua vaga e remota qualidade que, neles, conquista acção moral e consciente.
Por isso, a paisagem representa um grande papel na nossa existência; tem sobre nós como que um poder de herança, igual ao dos fantasmas avoengos.
O estudo da sua influência moral sobre o homem, creio que está, infelizmente, por fazer - o que torna incompleto o conhecimento da alma humana, deixando, na sombra, a origem e a natureza de alguns sentimentos e instintos (2) (o da beleza e o do crime, por exemplo, nas suas formas panteístas) de certas modificações que sofrem, de certas nuances que adquirem, etc.
O SANGUE
Empregamos esta palavra como significando Herança.
Serra do Marão |
Os rubros glóbulos sanguíneos trazem, dentro da sua microscópica esfera, antigos espectros que ressurgem e vão definindo o carácter dos indivíduos e dos Povos.
Gritam no sangue velhas tragédias, murmuram velhos sonhos, velhos diálogos com Deus e com a terra, esperanças, desilusões, terrores, heroísmos, que desenham, em tintas vivas, o cenário e a acção das nossas almas.
O sangue é a memória, presença de fantasmas, que nos dominam e dirigem.
À voz do sangue responde a voz da terra; e este diálogo misterioso mostra os caracteres da nossa íntima fisionomia portuguesa.
A Ibéria foi primitivamente povoada por diversos Povos de que descendem os actuais castelhanos, vascos, andaluzes, galegos, catalães, portugueses, etc.
Aqueles Povos pertenciam a dois ramos étnicos distintos, diferenciados por estigmas de natureza física e moral.
Um dos ramos é o ariano (gregos, romanos, godos, celtas, etc.); e o outro, é o semita (fenícios, judeus e árabes).
O Ária criou a civilização greco-romana, o culto plástico da Forma, a beleza concebida dentro da Realidade próxima e tangível (3), o Paganismo; o Semita criou a civilização judaica, a Bíblia, o culto do Espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da Matéria.
O Ária cantou, nos cumes do Parnaso, a verde alegria terrestre, a infância, a superfície angélica da Vida; o Semita glorificou, nos cerros do Calvário, a dor salvadora que nos eleva para o céu, o céu da Redenção, pelo sacrifício do individual ao espiritual (4).
Vénus é a suprema flor do Naturalismo grego; a Virgem Dolorosa, a suprema flor do Espiritualismo judaico. A primeira simboliza o amor carnal que continua a vida, esta, o amor ideal que a purifica e diviniza.
O Ária (celtas, gregos e romanos) trouxe, portanto, à Ibéria o Naturalismo, e o Semita, (árabes e judeus) o Espiritualismo (5).
Povos destes dois ramos étnicos tão diferentes, misturam-se na Península, originando as antigas Nacionalidades que Castela submeteu à sua hegemonia, com excepção de Portugal. Todavia, conservam uma certa independência moral (6) revelada pelos idiomas ainda hoje falados na Espanha.
Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça.
Estes dois sangues, equivalendo-se em energia transmissora de heranças, deram à Raça lusitana as suas próprias qualidades superiores, que, em vez de se contradizerem - pelo contrário - se combinaram amorosamente, unificando-se na bela criação da alma pátria.
DA ALMA PÁTRIA E SEU CARÁCTER
Já vimos que a maior parte da paisagem portuguesa está de acordo com o génio ariano e semita, pela aparência alegre e dolorosa dos seus ermos montes emsombrados de árvores, subindo de viridentes campinas, ou espraiando-se em planaltos luminosos.
É uma paisagem de contrastes que se abraçam e beijam com amor. Também a alma pátria é uma alma de contrastes que se abraçam e beijam com amor. E neste amor que os casa, encontra ela, por assim dizer, a alma da sua alma, a parte mais etérea e sublime da sua fisionomia religiosa que ao Futuro compete definir, concretizar em formas reais.
Na alma da Paisagem, como na do Povo, existe Cristianismo e Paganismo: Religião.
A dor múrmura dos pinheirais sombrios, a mágoa silenciosa dos ermos escalvados e o verde riso das campinas representam, na Paisagem, a tristeza espiritual e o sentido alegre e plástico do mundo, que dão vulto ao génio dos lusíadas.
E este carácter do génio lusíada idealmente se completa pela sua feição religiosa que, absorvendo a ideia cristã e a pagã, deste dualismo extrai a sua unidade sentimental, aquele sentimento saudoso das Coisas, da Vida e de Deus, que anima de original e mística beleza a nossa Arte, Poesia, Literatura e Cristianismo (in Arte de Ser Português, Assírio & Alvim, 1998, pp. 51-62).
Notas:
(1) Muito se tem escrito, em prosa e verso, acerca da paisagem de Coimbra. Toda de melancólica suavidade, dilui-se em meigos tons que se combinam numa doce fisionomia parada e contemplativa, e traduz propriamente o indeciso alvorecer do nosso génio, a tristeza da meia sombra matutina, a lágrima alvorante dos nossos primeiros elegíacos.
«Mas a região de Entre-Douro-e-Minho define-se pela combinação amorosa ou dramática dos seus contrastes». Veremos, adiante, como estes coincidem com os da alma pátria.
(2) Em Trás-os-Montes, paisagem dolorosa, há mais crimes de morte do que no Minho, paisagem alegre e feliz.
Ali, a navalha que mata, converteu-se no cacete, no ramo de árvore que faz barulho. O instrumento criminal vegetalizou-se, e a «pancada» ou «paulada» é, por assim dizer, o crime de ofensa corporal paganizado...
(3) ... admitimos duas realidades: a realidade - meio («animal») e a realidade - fim («espiritual»). ... este «dualismo» se converte em «unidade» no sentimento característico da «alma pátria» - inesgotável fonte de beleza e pensamento filosófico, religioso e social.
(4) E assim o amor filial e o amor pátrio, representados por um idêntico sentimento de sacrifício, se cristianizam; e aqueles dois amores tornam-se, como já dissemos, as duas primeiras formas de amor a Deus que é a atitude ideal de todos os nobres sentimentos.
(5) Cf. O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, Ed. da Renascença Portuguesa, Porto, 1912, pp. 8-9.
(6) Principalmente a Catalunha, esse belo Povo nosso irmão, a quem devemos a mais fraterna simpatia, e ainda a Galiza que, em virtude da sua herança celta, tem o parentesco mais íntimo com os povos do Minho. O rio deste nome não separa as duas províncias... A límpida corrente, reflectindo as duas margens, parece casá-las numa lágrima eterna de saudade...
Continua
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