quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Da cultura peninsular

Escrito por Agostinho da Silva




Cabo da Roca (Sintra).



«Eis aqui quase cume da Europa...».

Luís de Camões



Tomando como um todo a cultura peninsular, talvez nela encontremos, não digo uma característica, mas pelo menos um movimento ou um problema mais constante do que o de querer determinar se na realidade a Espanha, aqui no sentido de toda a Península, se deve dedicar, por ter atingido a Plenitude do que é melhor para o mundo, se deve dedicar à tarefa de hispanizar o dito mundo; ou se, modestamente reflectindo no que lhe falta e considerando desejável o que não tem, se deve, pelo contrário, matricular numa espécie de escola de universalismo, como moço de aldeia que afronta pela primeira vez, porque ele ou a família o acharam desejável, ou simplesmente o Estado o tornou obrigatório, a cultura elaborada nas cidades e por elas imposta. Hispanizar o mundo, ou às vezes, apenas a Europa, por quanto se sabe que através dela, na sua época áurea de expansão, o universo se teria hispanizado, eis um dos termos do dilema; europeizar a Espanha, eis outro dos termos do dilema.

Acontece, porém, que não só, e em primeiro lugar, a atitude inteligente e largamente humana não é a de aceitar dilemas, mas ou a de mostrar que são falsos ou a de se encarreirar a terceiras soluções de que o lógico se não lembrou, a não ser que lhe não fosse conveniente pô-las; como também, e em segundo lugar, conviria saber de que modo a Espanha já é suficientemente hispânica. Isto é: se na realidade, antes de procurarmos resolver o problema em face da Europa, não teremos de resolver o problema em face de nós próprios. Porquanto pode perfeitamente suceder que, em virtude de várias circunstâncias históricas, e poderemos pôr assim a questão, para não termos de entrar em discussão sempre enfadonha e dificilmente terminável de quem teve ou não a culpa, pode ser que, em virtude das tais circunstâncias históricas, a nossa península nunca tivesse podido desenvolver-se plenamente, e todo o resto venha daí.

Por um e outro motivo, pois, deixaremos de lado o tomar parte na polémica que opôs, por exemplo, Verney e gente do anti-Novo Método, Feijóo e gente do anti-Teatro, e, mais modernamente, Gasset e Unamuno ou metade do dito Unamuno à outra metade de Unamuno. Nitidamente nos recusamos à batalha. O que não quer dizer que se não tenha uma ideia muito clara do que vale a Europa em face da Hispânia. Não creio que a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade e o verdadeiro futuro do mundo estejam para lá dos Pirenéus; não creio que aquilo a que se deveria chamar a Europa, excluindo cuidadosamente não só a nossa Península Ibérica, mas igualmente o sul da Itália, daquilo a que hoje se chama Europa, não creio que a Europa da gente loira, ordenadora e filosófica seja muito mais do que isso, ordenadora e filosófica, e possa ver-se livre, a não ser por uma transformação que lhe atingiria o próprio cerne, daquele feitio utilitário, prático e mecânico, que a América do Norte, sua herdeira, levou às últimas consequências.

Posto este credo, que é talvez um pouco violento e simplista, mas que tem a vantagem de ser firme, e bastantes vezes a Europa, para ser firme, tem sido violenta e simplista, não voltaremos à questão senão acidentalmente e se tal se oferecer. O que nos importa aqui é a Península, o que nos importa aqui é a tal Espanha, de Mediterrâneo a Atlântico e do Cantábrico a Gibraltar. E a interrogação que nos pomos a nós próprios é se essa Espanha alguma vez o foi plenamente; e, se o não foi, quando a deixaram à vontade; e o que protestou, quando impedida; e o que, ou atinge ou morre, se apresenta sob dois signos, por assim dizer: o signo da variedade e o signo da convivência.



Pirenéus



Ninguém vai dizer que a França é um país monótono. Nem monótono na paisagem física; nem monótono na paisagem humana; nem monótono nas realidades culturais. Seria extremamente fácil enumerar todas as variedades da França. Mas aqui me interessa uma coisa outra: o rememorar, para mim, e para todo o viajante que passa da França para a Espanha pela entrada mais habitual, o pulo de mundo para mundo que representa o deixar-se a última cidadezinha francesa e entrar na primeira das terras espanholas. A diferença consiste no seguinte: que do lado da França a convivência se consegue por se ter atingido um tom neutro de cortesia humana numa paisagem de certo modo neutralizada pelo paciente esforço de séculos; do lado de Espanha ninguém sacrifica a personalidade à convivência; espanhol convive com espanhol como molécula convive com molécula na teoria cinética dos gases; chocando, chocando e chispando no choque. Então, e insistindo na tal teoria cinética, eu só tenho duas maneiras de conseguir que um número elevado de moléculas num recipiente limitado me não faça explodir: uma consistirá em reforçar as paredes, e isso calcula-se em pressão por centímetro quadrado; a outra consistiria em fabricar um vaso de paredes elásticas.

Ora, de um modo geral, eu posso ter diante da vida duas atitudes: a de utilizar e a de deixá-la exercer-se, para meu recreio e dos outros, como se fosse um jogo. De cada vez que as tais circunstâncias históricas, quem sabe por obediência a que leis internas do mundo, precisaram de espanhol sob pressão, fabricaram-lhe recipientes de grossíssimas paredes; prenderam o espanhol; prenderam-no como os romanos, prenderam-no com os visigodos, prenderam-no com Carlos V, prenderam-no com o breve parlamentarismo, e com outros sistemas mais modernos; e talvez outras prisões o esperem, se os fados lhe não correrem favoráveis. Acho que o único recipiente elástico que lhe fabricaram foi o do califado de Córdova e um pouco o dos reinos de taifas; talvez uma rápida Idade-Média, com seus «comuneros». Depois, cilindro e válvula; exígua válvula.

O grande instrumento de todas estas prisões foi sempre o castelhano, pagando com seus defeitos as suas qualidades, pagando com a sua violência a sua paixão, pagando com a sua intolerância a sua fidelidade, pagando com o seu jeito predador a solitária beleza do pastor-cavaleiro. E as vítimas, não falando agora do espanhol individual, foram as outras regiões da Península, nascidas para ser as livres colaboradoras de um grande todo e condenadas, por um trágico destino, a ser, em opressores regimes centralistas, um nada para um quase nada de valor humano. Galiza, Catalunha, Navarra, Andaluzia, Bascos, Levantinos, ao correr da história, pouco mais do que escravos de escravos: porque escravidão, no fim de contas, pelo que respeita a degradação humana, age para os dois lados, para o lado do opressor e para o lado do oprimido. Com uma grande vantagem a favor das regiões periféricas: é que, vencidas, jamais se submeteram; e, no momento oportuno, se poderão comportar como nações livres que jamais renegaram a sua liberdade e jamais, abandonando seus mortos, desistiram da luta.






Fachada da Praça do Obradoiro da Catedral de Santiago de Compostela.



E aqui, ao que me parece, se insere a grande façanha de Portugal. O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o princípio da independência dos territórios periféricos. E o ter mostrado, naquilo que cabia em suas forças, e mais do que isso, porque verdadeira história só se faz assim, naquilo que estava muito para além das suas forças, de que modo uma Espanha livre e convivente poderia ter transformado a face do mundo. Aceita-se hoje em história de Roma que o assassínio de César, impedindo-o de levar por diante o seu projecto de romanização do mundo europeu, do Báltico aos Urais, veio pôr depois todos os problemas que resultaram da existência de bárbaros não romanizados; veio pôr o problema da Prússia e veio pôr o problema da Rússia. Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de «vida conversável», como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o «pique» ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podiam depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto. Que foi decerto modo, o que fizeram, mesmo só com o trabalho de Portugal.

Por ter garantido a possibilidade, pelo menos em amostra, de arquitectar o que teria sido um universo verdadeiramente católico, vejo eu Aljubarrota como a maior batalha da história, a par daquela outra em que Constantino venceu Justiniano. Não apenas por isso, no entanto. Mas igualmente porque é só em Portugal que as outras nações da Península podem ver uma esperança e um ponto de apoio para uma futura liberdade. Por circunstâncias próprias, e evitarei o mais possível dizer da raça, ou de ambiente ou de economia ou de missão divina, e por vontade intrínseca e ainda por longo treinamento, porque estas coisas na realidade não se aprendem na fantasia, mas vendo e pelejando, Portugal, é, de todos os cantos da Península, o único que tem verdadeiramente génio político, talvez, de todas as gentes que falam latim pelo mundo, o único real herdeiro do povo romano.

Só que, por fatalidade, e logo desde o começo, faltou a Portugal, para uma plena acção, a companhia e a integração de seu complemento natural para os lados do Norte. A acção de Portugal no Brasil não teria sido o que foi, apesar de toda a actuação do minhoto nas Gerais, garantindo um Brasil interior, ou do transmontano sobre o Prata, garantindo afinal a fronteira de Oeste, se não tivesse havido o bandeirantismo dos seus alentejanos e, indirectamente, as suas guarnições algarvias para o Sul; a gente mais ou menos mourisca para o sul do Tejo, a gente já de falar crioulo, os que vinham do deserto e de seu gosto aventureiro e livre, serviram de complemento aos de Entre-Minho-e Tejo, verdadeira base de Portugal, o Portugal da gente que finca pé na terra e obriga a terra a dar tudo o que tem, metal ou seiva, ou isso mesmo, base a conto de lança. Mas, para o Norte, a Galiza não estava.




Não estava a Galiza que, para empregar as palavras do dito popular em que se define a casa bem governada, podia ter arcado enquanto Portugal barcava. Com o tal galego «sórdido», no sentido camoniano, talvez o ouro da Índia e Brasil tivesse dado maior proveito e se não tivesse, em plena época de afluxo de riquezas, de fazer aportar ao Tejo frotas de cereal para pão. Por outro lado, talvez sua «nai» não tivesse sido sempre para o galego, que emigra sem ser aventureiro, a eterna figura velada pelas lágrimas dela e pelas lágrimas dele; talvez as «campanas de Bastabales» não ressoassem na delida chuva com o tão melancólico chamar. Mas tempo vem, atrás de tempo; se há «talvez» para o passado da História; pode ser que um dia a reintegração da Península em si mesma, na sua liberdade essencial, se faça através da reunião de Portugal e de Galiza. Dois noivos que a vida separou (in Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, Guimarães Editores, pp. 25-34).


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