terça-feira, 2 de novembro de 2021

O problema do milagre

Escrito por Leonardo Coimbra

 




«A vida filosófica de Leonardo Coimbra consistiu principalmente em perscrutar os mistérios do Universo, numa série de interrogações à Natureza e ao Espírito, e em admitir progressivamente a revelação de Deus. Leonardo Coimbra afirmara-se sempre cristão; transferindo, porém, o seu conceito de cristianismo, do plano moral para o plano religioso, foi levado a admitir a divindade de Jesus, e a aceitar a teologia católica; o espírito de Leonardo Coimbra não pertencia à família dos impenitentes heterodoxos, como Teixeira de Pascoais, nem à dos ocultistas lunares como Fernando Pessoa: todo ele era alvoraçada procura do sol da ortodoxia. Não teve, pois, mero carácter episódico e sentimental esta discutida conversão religiosa; tem o correspondente movimento intelectual registado nos escritos de diversas fases, o que garante a profunda sinceridade do pensador; filósofo católico como Maurice Blondel, Édouard Le Roy ou Jacques Chevalier, mas pensador de raiz portuguesa, Leonardo Coimbra, se tivesse podido continuar a sua actividade espiritual, não seguiria o movimento neo-escolástico das Universidades de Lovaina e de Milão.»

Álvaro Ribeiro («Leonardo Coimbra – Apontamentos de biografia e de bibliografia», Lisboa, 1945).

 

«A formação inicial de Leonardo Coimbra não se fez dentro das escolas superiores portuguesas. Digamos que elas lhe foram úteis na aquisição de informação e competência científica, mas que não parecem ter tido influência positiva na orientação filosófica do pensador. Leonardo formou-se sozinho, formou-se no convívio com jovens radicais da sua geração do Porto, formou-se no convívio com Sampaio Bruno, formou-se sob a influência cristã materna. A universidade portuguesa não marcou positivamente o jovem Leonardo Coimbra. Pelo contrário, marcou-o negativamente; Leonardo é contra a Universidade que conheceu como estudante desde o mais fundo das suas entranhas. É mais contra a Universidade de Coimbra do que contra o Curso Superior de Letras, de Lisboa, que conheceu nos primeiros anos do século XX e em que teve Adolfo Coelho como um dos seus professores. O antagonismo com Lisboa não demorará, no entanto, a estalar; a defesa da sua dissertação de concurso não poderá chegar ao fim, em 1912.»

Manuel Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra e Henri Bergson: semelhanças e diferenças»).

 

«Os livros de Leonardo Coimbra não estão construídos sobre repetições. São demasiado ricos, para poderem ser explorados ou resumidos à primeira leitura; são demasiado elípticos para consentirem a fácil utilização didáctica. São o meio oferecido a quem quiser determinar o princípio e o fim.

Leonardo Coimbra estava demasiado atento ao estudo das ciências para conferir à filosofia o lugar que lhe compete quer no quadro da cultura, quer na hierarquia das manifestações do espírito humano. Atribuía-lhe uma função mediadora entre a ciência e a religião, sacrificando talvez a prejuízos positivos da época uma vocação destinada a mais altos êxitos especulativos.

Analisava os métodos e os resultados das ciências, cujos progressos mais recentes não lhe passavam incompreendidos, e por essa análise verificava os limites e a insubsistência do cientismo. A teoria da ciência clamava por mais ampla teoria do conhecimento que abrangesse também a metafísica, a arte e a religião. Nenhuma doutrina intelectualista conseguiria, porém, coordenar todas as formas da experiência, e muito menos poderia garantir a afirmação da transcendência. A realidade aparecia como irracional, atraindo e desafiando os esforços do pensamento humano. De aí a necessidade de completar o intelectualismo: com o intuicionismo, no domínio do conhecimento, com a fé, no domínio da acção moral.

Não foi Leonardo Coimbra um mero representante português de qualquer doutrina estrangeira condizente com este simples resumo; foi um pensador e um filósofo. Foi um pensador. Quer dizer: conjugou sempre, e de maneira independente, a reflexão crítica sobre as alheias doutrinas filosóficas com a busca de uma interpretação pessoal e nacional das soluções dos problemas eternos; cada um dos seus livros marca bem as fases de um pensamento que de múltiplas maneiras vai procurando a verdade. Foi um filósofo. Quer dizer: não se limitou a meditar quando excitado pela leitura ou pelo trabalho de laboratório. Tudo quanto era humano, natural e mundano, servia de tema à sua especulação. Basta ler os títulos dos livros e dos artigos; mas interrogando-os, verificar-se-á que não contêm expedientes jornalísticos ou literários para cativar um público fútil, antes ressoam a intensidade dramática de uma alma que se defronta com o mistério.»

Álvaro Ribeiro («Leonardo Coimbra – Apontamentos de biografia e de bibliografia», Lisboa, 1945).

 

«Tanto Bergson como Leonardo ensinaram filosofia a nível superior: Bergson na Escola Normal, entre 1897 e 1900, e no Colégio de França, a partir de 1900 e até à jubilação (ensinou primeiro Filosofia grega e romana, tendo sucedido depois a Gabriel Tarde na cátedra de Filosofia moderna); Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no quadro da Renascença Portuguesa. Bergson não pôde entrar na Sorbonne, tendo sentido, bem expressa, a hostilidade da Universidade tradicional. Leonardo entrou na Universidade, mas esta não descansou enquanto não o expulsou do seu seio. Num certo sentido Bergson teve, apesar de tudo, uma vida académica mais feliz do que Leonardo Coimbra: acabou em glória e cumulado de honrarias. Pode dizer-se, no entanto, que não deixou discípulos, com a excepção de Édouard Le Roy. Leonardo acabou praticamente excluído e votado ao ostracismo e à insignificância de professor liceal de Matemática e Desenho, mas deixou uma plêiade notável de discípulos e seguidores mais ou menos próximos: Álvaro Ribeiro, José Marinho, Sant’Anna Dionísio, Delfim Santos, Casais Monteiro, Augusto Saraiva, Eugénio Aresca, Agostinho da Silva, etc.».

Manuel Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra e Henri Bergson: semelhanças e diferenças»).





«(...) o erro de Leonardo levara-o a ver em Aristóteles “a ausência da característica essencial do conhecimento científico”. E, nisso, a razão que Leonardo aduz assenta, sobretudo, no que diz ser o carácter fixista do formalismo aristotélico, que consiste, a seu ver, numa hierarquia natural dos abstractos procedente das mais simples generalizações da experiência e da observação. Além disso, convém ainda frisar que, para o filósofo criacionista, uma tal hierarquia toma da experiência e da observação “a analogia da distribuição dos seres vivos por géneros e espécies”.

O método de Aristóteles afigura-se então, a Leonardo, como um método inteiramente vicioso, na medida em que o seu formalismo fixista e extensionista representa o oposto da sua concepção platónica de ciência, cujo formalismo, aberto e progressivo, procede da simbólica matemática que é, na sua essência, um ideal que preconiza, na ordem do inteligível, o método hipotético-construtivo. Hipotético, porque “a teoria é modelo de que a experiência se afasta como cópia”; construtivo, porque “sempre as teorias serão em movimento, saindo de todos e de cada um dos seus formalismos, na inquieta e interminável ansiedade de fazer o modelo que coincida com a cópia”. Daí que, ainda para Leonardo Coimbra, o inteligível, no qual se fundamenta a ciência moderna, “desfaz, para refazer”, através da imaginação científica, todos os “complexos do senso comum”, de que Aristóteles seria a figura de proa.»

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa»).

 

«Todos concordamos, comentando, que convém dar ao aristotelismo actual expressão técnica, científica e metafísica. O problema que aflige tradutores e comentadores dos textos aristotélicos consiste em responder satisfatoriamente a quantos negam a compatibilidade dos conceitos de Aristóteles com os conceitos da cultura contemporânea. Tal problema tem sido enunciado diversamente nas várias épocas históricas. A argumentação anti-aristotélica própria do nosso tempo encontra-se distribuída ao longo da obra polémica que Luís Rougier publicou em 1925 com o título de La Scolastique et le Thomisme, obra que deu motivo a réplicas notabilíssimas nos meios eclesiásticos e escolásticos. Um livro com mais de oitocentas páginas, recheadas de afirmações hauridas em boas fontes bibliográficas, um livro de erudição, poderá talvez parecer um requisitório incontestável; com critério selectivo de argumentos, demonstra apenas que nem sempre os escolásticos foram fiéis aos preceitos da metodologia científica de Aristóteles. Nada prova o livro contra a perenidade do aristotelismo. Se considerarmos o progresso das ciências nos séculos XIX e XX, se soubermos distinguir técnica, ciência e metafísica, não estranharemos que pensadores e filósofos continuem a julgar compatível com a cultura contemporânea a obra de Aristóteles. Em França, apesar da vida oficial do cartesianismo, reagiram contra a filosofia "moderna" pensadores aristotélicos tão célebres como Ravaisson, Boutroux, Duhem, Hamelin e Bergson. Se dissermos que as obras destes autores nutriam o pensamento de muitos estudantes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, abriremos caminho para a interpretação do aristotelismo de Leonardo Coimbra. O génio deste filósofo superior, visionando a harmoniosa conciliação do realismo com o criacionismo, permitiu dar uma solução portuguesa ao problema escolástico, ante a qual se inclinam respeitosos os admiradores e os discípulos.»

Álvaro Ribeiro («Aristóteles e a Tradição Portuguesa»).


«A mecânica é o socorro de Deus levado ao Nada».

Leonardo Coimbra





 

O problema do milagre


A noção vulgar de milagre apresenta-o como um acontecimento em oposição com as leis da Natureza.

Essa mesma noção tem, todavia, sob este primeiro aspecto, uma realidade um pouco diferente. É miraculoso o fenómeno conhecido, que excede a nossa expectativa, muito principalmente quando tal acontece em proveito nosso.

É neste contexto que reside a virtude do milagre.

Analisemos, pois, a qualidade deste excesso.

A nossa expectativa é a atitude resultante da adaptação ao meio em que vivemos. Essa atitude representa a conclusão dum longo trabalho das forças profundas da vida e da educação individual e social. É uma atitude subsistente e bem garantida por seculares esforços vitoriosos.

Dirige a nossa actividade entre o agir dos fenómenos que nos cercam. Ora estes fenómenos produzem-se dentro do determinismo que permite prever o resultado das suas combinações.

A capacidade teleológica do seu livre agir tem um limite mais ou menos conhecido.

Daí a admiração especial, no caso dum excesso teleológico da nossa expectativa, que em nós produziria um fenómeno novo compreensível como consequência de fenómenos familiares. É a admiração profundamente emotiva perante um excesso de capacidade teleológica que nos beneficia ou prejudica.

Não é preciso que as chamadas leis da Natureza sejam desrespeitadas para que haja um milagre, basta que os fenómenos naturais se enlacem de molde a aparecer uma inesperada harmonia.

É o aparecimento deste excesso de capacidade teleológica dos fenómenos que, por não ser habitual, toma o aspecto estranho de contrário às leis da natureza.

Quer o milagre seja uma revogação das leis naturais, quer um excesso teleológico dos fenómenos, seria preciso conhecer integralmente os fenómenos, ou a Natureza, para se poder aquilatar da virtude miraculosa de qualquer acontecimento.

Por tal motivo vão os milagres evoluindo ao par do progresso no conhecimento da Natureza.[1]

A produção fonográfica excede a capacidade teleológica da matéria vulgar e, por isso, é o fonógrafo miraculoso antes que se conheça a acústica e a anterior inscrição fonográfica, que foi a teleologia realmente implicada no fenómeno. Não poderíamos nada dizer sobre a possibilidade ou impossibilidade do milagre, se não fora o princípio da continuidade a permitir a passagem ao limite. Não é possível o Universo com realidades virtuais sem laço com as realidades actuais e guardadas para se actualizarem arbitrariamente num arbitrário momento. Se as realidades todas se relacionam, em cada fisionomia do Universo entra o conjunto dos elementos fisionómicos. O princípio da continuidade elevando ao limite a fuga do milagre perante o progresso científico irá demonstrar a impossibilidade do milagre?

O fonógrafo de Edison

É o que pretendem todos os filósofos que transcendem, em nu, os simples resultados do empirismo. Mas estes não o podem fazer porque não demonstraram a integral supressão do excesso teleológico sobre a capacidade natural. Não demonstraram os seus limites, em biologia sobretudo, e nem sequer analisaram o excesso psíquico, cujo papel, no problema, é primacial.

Só as filosofias dogmáticas se poderiam pronunciar sobre o milagre, e destas teríamos de excluir as que partem de postulados para só atendermos uma filosofia crítica, que partisse das condições da experiência. Só o kantismo se poderia pronunciar no plano do fenómeno, mas tal filosofia para logo anula a sua decisão com o reconhecimento do plano numenal, de pura liberdade.

Será então possível o milagre?

Conservemos-lhe o seu comum sentido de excesso teleológico e podemos dizer que o milagre é não só possível, mas até a própria fonte do Ser. Os casos menos interessantes seriam ainda os casos de aparente desrespeito pelas leis naturais, como, por exemplo, as levitações, etc.

Estes casos seriam apenas interessantes para mostrarem a efectividade de pensamento no plano do mundo físico, se tal efectividade não estivesse, de sobejo, demonstrada[2] nos fenómenos de histerismo, onde vai das modificações funcionais até às modificações anatómicas. Fora disso eram redutíveis a novas forças de ordem física, etc.

Um plano mecânico é preciso a toda a acção, pois é a sua garantia e o seu ponto de apoio. O nosso mundo físico é, por assim dizer, um plano mecânico para a nossa estatura ou ritmo. Mais ou menos é precisa a sua estabilidade para a nossa acção, sem que isto implique a impossibilidade de outros seres, de outra estatura moral, nele cortarem a sua acção sobre a estabilidade do seu plano mecânico, etc.

Por isso os casos interessantes começam, quando nos encontramos em pleno mundo psíquico e moral. Aí são tão possíveis os milagres que representam o próprio crescimento moral. Uma alma excede-se, crescendo em liberdade, que é a maior capacidade de harmonia e beleza. Uma alma diminui-se, fragmentando-se em dispersão e hostilidade. Uma atenção benéfica concentra-a? Ei-la que se excede em capacidade teleológica. Um histérico paralítico readquire a sinérgica actividade dos seus membros por uma concentração da atenção dispersa.

Uma criatura pode, em certas condições, adquirir a posse duma língua desconhecida. É, nos casos mínimos, a demonstração duma subconsciência, que guarda conhecimentos perdidos para a consciência central, que nunca os possuíra. Esta subconsciência é dum benéfico providencialismo, pois guarda o que a consciência central perderia. O recurso a esta subconsciência (que, de resto, é ainda de inesgotáveis horizontes) permitirá sempre um excesso de vida moral.

E serão mais limitados os horizontes da consciência central? Não haverá, em nós, como uma hiperconsciência, quando colocamos o centro de gravidade da nossa vida moral no esforço duma pura fraternidade?

O coração pessoal, quando se acorda com o espírito da raça, não é capaz de extraordinários excessos? Não haverá lances em que a voz humana atinge notas de suprema certeza? Quando, em Alfarrobeira, aqueles lábios de lealdade perfeita se despedem do corpo, não vemos como a entreaberta de dois mundos, a noite a diluir-se em aurora, a matéria a esfumar-se em espírito?





Há, sim, um infinito moral para o qual se pode esforçar a consciência e onde, permanentemente e sempre, pode beber a energia, que em contínuo excesso a erga e sublime.

Leonardo Coimbra («DISPERSOS – III – FILOSOFIA E METAFÍSICA», Editorial VERBO, 1988, pp. 106-109).



[1] Natureza é aqui o conjunto de percepções actuais e possíveis de que a elaboração posterior há-de tirar a realidade em sistema de noções.

[2] E a causa não pode ser física porque o ciclo é «pensamento – acção física – pensamento acção física». E ainda aqui teríamos o incompreensível epifenomenismo.

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