sábado, 2 de fevereiro de 2013

Um antónimo 'sui generis' (i)

Escrito por Álvaro Ribeiro 




Sidónio Pais presta juramento no Parlamento após a sua eleição para Presidente da República.



«Efectivamente, a restauração da Monarquia no Porto, ou Monarquia do Norte, em 19 de Janeiro [de 1919], foi seguida de vinte e seis dias de regência que terminaram a 13 de Fevereiro, por vitória militar das forças republicanas. A 28 de Janeiro foi em Lisboa nomeado presidente do ministério o Dr. José Relvas que se propôs estabelecer um governo nacional de transição entre o sidonismo e o democratismo, mas logo a 30 de Março o Partido Republicano Português, maioritário e democrático, reassumiu a integridade do poder executivo que confiou ao Dr. Domingos Pereira, ministro da Instrução Pública na composição anterior.

Fora durante o curto período do governo do Dr. José Relvas que surgira a chamada "questão universitária", circunscrita efectivamente aos domínios institucionais da cidade de Coimbra. As forças republicanas, partidárias e populares, acusavam os professores coimbrões de em 17 de Janeiro de 1918 terem praticado um acolhimento faustoso e luxuoso ao ditador Sidónio Pais, de manifestarem pública hostilidade às leis e às instituições da República, e de haverem feito política monárquica no recinto das aulas. A interpretação dos factos, comentada pela exaltação oratória dos militantes, obrigaria o Governo da República a proceder às averiguações honestas, para o que foi nomeado um inquiridor sindicante.

"Fazer política nas aulas". Frase de indignação absurda, que não pode apontar qualquer realidade, visto que tal ilusória pretensão de um professor estulto jamais alcançaria o respectivo objectivo. Tal não é permitido pela reacção imediata do aluno, o qual logo ouve ou observa que o professor está a desviar-se do método didáctico ou a transgredir o programa oficial, toma uma atitude de defesa, de impugnação ou de hostilidade contra a função abusiva do docente, tanto nas provas orais como nas provas escritas, acaba por exibir o seu protesto em manifestações públicas.






(...) Acusações mais graves do que a de "fazer política nas aulas" deveriam ser aquelas que, em 14 de Março, motivaram o ministro da Instrução Pública, Dr. Domingos Pereira, a suspender das suas funções docentes quatro professores da Faculdade de Direito: Carneiro Pacheco, Fézas Vital, Magalhães Colaço e Oliveira Salazar. O Poder Executivo, mais uma vez pressionado pelas circunstâncias revolucionárias, ofendia a Universidade, negando-lhe os privilégios e reduzindo-lhe os direitos. Ante o facto administrativo, o reitor eleito, Professor Dr. Mendes dos Remédios, declarou voluntariamente ao Governo considerar-se também suspenso das suas funções académicas.

O Governo da República nomeou reitor interino uma pessoa estranha à docência universitária: o Dr. Coelho de Carvalho. Não seria a primeira vez, nem a última, que a Universidade de Coimbra teria de aceitar como reitor interino uma personalidade política, sem habilitações doutorais nem aptidões docentes. Aconteceu, porém, que dessa vez os doutores titulados e honrados aproveitavam muito bem a oportunidade para exprimir a sua justa irritação contra o Governo da República.

A permanência do Dr. Coelho de Carvalho como representante do Governo junto da Universidade de Coimbra decorreu de 18 de Março a 24 de Junho, com manifesto descontentamento do corpo docente como do corpo discente da veneranda e respeitada Corporação. Foi também juiz sindicante aos actos dos professores suspensos o Dr. Vieira Lisboa, o qual procedeu a um rigoroso e minucioso inquérito, que demorou de 27 de Março a 4 de Abril. Depois de citados a depor estudantes e lentes, foi concluído o inquérito que teve por desfecho a portaria de 25 de Abril que revoga o infeliz despacho de suspensão dos professores.

Oliveira Salazar Honoris Causa, pela Universidade de Oxford, em 19 Abril de 1941. Teve lugar na Sala do Senado da Universidade de Coimbra. Oxford esteve representada por Thomas Higham, William Entwissete e John Weaver. Coube a Higham o elogio latino de Oliveira Salazar.


São notáveis, e ainda hoje dignas de ser lidas, as respostas que os professores acusados apresentaram no processo e que depois correram impressas em opúsculos adequados. Entre elas distingue-se pelo valor histórico a do Dr. Oliveira Salazar. É um trabalho conduzido com dedicação intelectual e dignidade moral que ainda hoje nos causa admiração.

O Dr. Oliveira Salazar nesse documento confessa a sua abstenção política e a sua indiferença perante os regimes de governo. Aponta para o ideal do verdadeiro professor universitário: dedicar-se inteiramente ao magistério. Anuncia o propósito de elaborar trabalhos profundos e originais.

"Professor, tenho vivido para os meus alunos, e, homem de estudo, para os meus livros. Coimbra absorve-nos e esgota-nos. Uma grande obra de educação nacional, de levantamento do ensino universitário, de cultura das ciências, de revolução nos processos do ensino, de reorganização dos cursos absorve suficientemente todas as atenções. Não há efectivamente vagar nem forças para as lutas políticas: donde só poderem ser políticos os raros professores que já não estudam ou já não precisam de estudar" (Oliveira Salazar, A Minha Resposta. No processo de sindicância à Universidade de Coimbra, 1919, p. 11).

Homem de estudo, sem pretensões a homem do Estado, o Dr. Oliveira Salazar confessava ainda noutro passo do seu depoimento:

"Vivo absorvido na minha ideia e na minha obra. Quem não tem um grande pensamento ou um grande afecto a encher-lhe a vida, não sabe o que isso é".

Palavras memoráveis e memorandas, elas consagram a sublime posição medieval de quantos souberam cumprir como um sacerdócio a docência universitária, renunciando para sempre a outros cargos eclesiásticos, políticos e financeiros, onde a vontade e o sentimento afogam as virtudes da inteligência. A filosofia, - o amor da sabedoria ou a dedicação, à verdade, que se adunam e até se unificam, - é perfeitamente comparável à mais alta vida religiosa que se cumpre em sociedades iniciáticas. A Universidade foi uma instituição que se inspirou em tais princípios humanos, mas que degenerou, na Idade Moderna, por transigência com a sedução do espírito tecnológico, ou politécnico».

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», II).






Um antónimo sui generis


Para a desmistificação do republicanismo popular muito havia contribuído a doutrinação da Seara Nova, revista onde a crítica contrária e contraditória prevalecia sobre a edificação ideológica, porque sempre a coesão negativa, mais do que a unidade programática, assegura na vitória da moção política. Sem compromisso nem solidariedade com os políticos activos dos partidos republicanos, um notável grupo de escritores afirmava-se como poderoso adversário do Integralismo Lusitano, sistema nacionalista cujos corifeus ilustres haviam ganho centenas de adeptos entre a população adolescente dos estudantes universitários. Em Coimbra também o Centro Académico da Democracia Cristã agrupava e cultivava alunos e professores que haveriam de revelar-se políticos intervenientes em sucessivas alterações da estrutura da República.

Com efeito, desde a publicação da encíclica papal Rerum Novarum, em 1891, inclinou-se a Igreja Católica para a doutrina de que ao cristianismo compete resolver, directa ou indirectamente, aqueles problemas económicos que colidem com a justiça social. Variavam as expressões católicas da economia dirigida, mas era assim oposta uma barreira jornalística à extensão do liberalismo económico, político e ideológico. A distinção profana entre ricos e pobres começava a reflectir-se no operariado cristão como justificativa da luta de classes e, portanto, da instituição sindical.

A 28 de Maio de 1926, o Exército facilmente conquistou a República, e procedeu à ocupação militar dos governos civis e das câmaras municipais, enfim, de todos, ou quase todos, os lugares políticos. Suspensa a Constituição de 1911, não haveria motivo para eleições, opções e votações, e assim desapareceram os partidos demagógicos que não correspondiam a escolas filosóficas, porque haviam sido mal formados por causas de dissidências nas discussões parlamentares. Não era a primeira, nem seria a última vez que tal processo governativo se registava na História de Portugal.

O Exército dizia-se republicano, mas logo instaurou a monarquia militar, (pois dizia-se que Carmona era o anagrama de monarca) e assim se situou, na presidência da República, um general ou almirante. Tal magistério, ou tal magistratura, que nas constituições políticas aparece designado para assegurar e garantir o princípio unitário, só pode ser atribuído, em pleno direito, a um homem superior que haja dado provas escritas, ou provas públicas, de conhecer e continuar a tradição espiritual da Pátria. Os reis estavam para tal habilitados, mais pela educação recebida enquanto infantes no convívio palaciano com doutores de escola, do que por atavidade dinástica, e os principais presidentes eleitos pelo Congresso da República figuravam como pares dos melhores pensadores, escritores e artistas de que era então dotada a nação portuguesa.

Qualquer estudioso de política poderá verificar, desde os textos de Aristóteles, que toda a constituição real pressupõe três elementos paradigmáticos, como no triângulo ou na pirâmide: o monárquico, o aristocrático e o democrático. A constituição legal é para distinguir as instituições, que denomina, enumera e separa, ou poderes designados por legislativo, executivo e judicial, segundo uma nomenclatura sujeita a modas ideológicas, a revisões oportunas e a reformas contraditórias. Ao circunscrever o triângulo para que a inteligência atinja a evidência, diremos que a revolução política se configura na rotação do esquema trilateral dos elementos que, recompostos, voltam a restabelecer a pirâmide inicial.

A 'República Portuguesa'


Parece erróneo designar as revoluções por pontos da história, ou da cronologia - tais como 31 de Janeiro, 5 de Outubro, 28 de Maio, 25 de Abril, que significam súbitos acontecimentos político-militares de repercussão efémera - porque a revolução é um movimento circular ou periódico que desenha uma alteração profunda na situação das camadas constitutivas da sociedade. A revolução dura mais do que um dia, pelo que não deve ser designada pela data comemorada. Só depois de restaurada a ordem velha ou de codificada a ordem nova será possível determinar e julgar o valor histórico de uma revolução.

A doutrina republicana caracteriza-se pela importância atribuída ao elemento democrático, o qual tem lugar na constituição apenas para criticar os impostos suportáveis e para fiscalizar a aplicação das receitas públicas, segundo os vários mas concorrentes critérios dos partidos políticos. Tal fiscalização é constitucionalmente indispensável como a limitação dos poderes. O Exército, profissionalmente habilitado para as funções urgentes de desarmar o inimigo, defender o território e realizar a população, nem sempre entende as exigências pacíficas do Direito, recta, régua ou regra do procedimento que compete ao Estado prudente e previdente.

A ética militar de viver heroicamente é muito honrosa e também muito proveitosa para a população civil. Dela resulta a compreensão activa dos cuidados devidos aos doentes, mutilados, inválidos e velhos, e a intenção prática de garantir uma assistência pública de que o liberalismo, por demasiado confiante no valor do indivíduo, politicamente se desinteressou. O funcionalismo civil esforçou-se por imitar, sem o conseguir, o exemplo que lhe era oferecido para garantia dos direitos do homem. A psicologia militar aparece, porém, limitada por preconceitos de nobreza realmente opostos aos conceitos próprios da burguesia industrial.

A soberania militar, latente ou patente na legislação política, terá a contradição de vantagens e inconvenientes que se revelam na administração pública. Não nos cumpre fazer nesta página de memórias a destrinça mitológica, metafísica e positiva de um longo período da história portuguesa. Em certos aspectos, porém, de juízo pessimista os acontecimentos foram confirmando a previsão das pessoas mais inteligentes.

De um governo militar ninguém esperaria quaisquer providências legislativas no sentido de resolver os problemas dos pensadores, dos escritores e dos artistas, quais fossem as que tendem a libertar do trabalho servil quem se dedica, por inspiração ou por vocação, a glorificar a Pátria, quem merece a recompensa por meios indirectos das honras, dos diplomas e das medalhas, quem deve ser acautelado da pobreza injusta e da humilhação na miséria. Uma política de força e de acção, mais pragmatista do que positivista, enquadraria nos limites dos serviços técnicos, - ou seja, na tecnocracia, - a investigação científica, a imaginação artística e a especulação filosófica. Defender o território e conservar a população, sem qualquer programa de progresso ou prosperidade, eram os lemas prioritários do escol militar.

Gomes da Costa no 28 de Maio de 1926.


Os militares compreendem muito bem a afinidade psicológica existente na pessoa humana entre o instinto, a vontade e o hábito, e assim entendem a noção da disciplina num contexto diferente daquele que lhe é atribuído pelos civis. A disciplina, longe de lhes parecer uma docência intelectual própria da filosofia, é por eles definida como passiva, estrita e rigorosa obediência à autoridade. O superior pensa, decide e manda; a sua decisão é indiscutível e irrevogável; só assim pode ser garantido o êxito certo das operações armadas.

A censura militar aos meios de comunicação pública, procedimento justificado pela táctica e pela estratégia da beligerância, é um orgão político do legislador em ditadura. A liberdade linguística, retórica e dialéctica, característica do humanismo e do civismo, deixa de se exprimir como voz da razão oral e escrita. A psicologia do militar profissional é adversa à crítica, combate-a e desarma-a no jornal, na revista, no livro, no teatro, na rua, em qualquer manifestação pública.

A liberdade de escrever, a liberdade de falar e a liberdade de pensar foram sucessivamente reprimidas pelos governos da ditadura militar que não fomentavam a arte, a cultura e a instrução. Os cidadãos que não escreviam, e que não falavam, viviam em silencioso receio de serem acusados ou suspeitos de livre-pensamento, ou até de espírito subversivo. A situação militar era tão contrária à dialéctica como à retórica, mas era-o também ao juízo tácito.

O juízo é a junção de um adjectivo a um substantivo. Juízo implícito quando reduzido aos seus dois termos essenciais, juízo explícito quando insere também o verbo unitivo, geralmente ser. O juízo explícito pode ser afirmativo ou negativo, conforme ensinam os livros clássicos, mas autores há que interpretam o não do juízo negativo como um juízo segundo, porque o pensador só afirmando julga, já que o não-ser é contraditório, insubstante, evanescente (1).

Negar é mais próprio da vontade do que da inteligência. Dizer que «não é» abre lugar para a determinação de outro adjectivo, de outra qualidade ou de outra categoria para satisfazer as exigências do pensamento objectivo. A ontologia critica, fiscaliza e garante os princípios normativos da lógica aristotélica.

Aos juízos implícitos, ou condensados, é, por muitas pessoas bem avisadas, dado o nome de preconceitos. Para resolver ou dissolver o preconceito convém praticar a diérese que intercala o ser entre os termos separáveis e perguntar pela conveniência do sujeito com o predicado. Muitos preconceitos estão fixados em nomenclaturas antiquadas, outros correm livremente por lugares-comuns, todos causam equívocos, ambiguidades e confusões que cumpre ao livre-pensador combater pela análise, pela discussão e pela dialéctica.

Aristóteles


A limitação da actividade de julgar e de relacionar os juízos, praticada pela censura militar à imprensa periódica, teria por efeito necessário a degradação do pensamento social e por consequência a degradação do idioma pátrio. Sem oradores, escritores e publicistas, a língua portuguesa não seria aperfeiçoada mas, pelo contrário, diariamente vulnerada por muitos erros de gramática, desde as faltas de ortografia, aos solecismos de sintaxe e, pior, à impropriedade e à imprecisão nos efeitos de semântica. Tal decadência da língua portuguesa, denunciada em termos alarmantes pelos escritores mais ou menos puristas, significava também a adulteração nacional do pensamento que, de decénio para decénio, fugia às normas de uma clássica teoria da literatura e perdia a expressão simbólica da filosofia especulativa.

A permanência da censura militar era de mau agouro para o futuro das Faculdades de Letras e das Faculdades de Direito. Os estudantes e os professores da Universidade do Porto observavam com receio a legislação militar sobre a instrução pública. A Universidade vale desde a Idade Média pela disciplina unitária, que é a filosofia racional, e os fados não se mostravam favoráveis à cultura na «terra mais antifilosófica do planeta».

A 12 de Abril de 1928, pelo decreto número 15 365, foram extintas várias escolas da República, entre as quais figurava a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Sobre esta escola recaía a alegação de que, sendo frequentada por poucos alunos, não assegurava pela receita anual das propinas, pagas em selos fiscais, uma quantia capaz de estabelecer equilíbrio financeiro com as despesas suportadas pelo Estado. Tal era o argumento geralmente atribuído aos defensores da chamada austeridade financeira e muitas vezes discutido em torno do cálculo sobre quanto pode, ou deve, custar ao contribuinte a formação de um bacharel, licenciado ou doutor.

O decreto concedia aos alunos inscritos antes de 1928 a possibilidade de concluírem na mesma escola, e com os mesmos professores, os seus cursos até 1931, isto é, por mais três anos lectivos. Ficou, porém, definitivamente truncada aos licenciados mais distintos que ainda se doutoraram a carreira de acesso à cátedra docente no ensino superior. Esse acto de administração pública, tão mal inspirado, tão mal justificado e tão mal executado, teve por consequência prolongar a fileira dos descontentes com a nova «situação política», e até engrossar a coluna dos opositores.

Quanto à efectividade e à inamobilidade dos funcionários públicos limitou-se o legislador a dizer secamente, no artigo 6.º, que o pessoal dos estabelecimentos extintos pelo mesmo decreto ficará na situação de adido, devendo o Governo tomar oportunas disposições a fim de o ocupar segundo as respectivas habilitações». Se um decreto não disser quem, quando e onde se executará a disposição legislada, o leitor inteligente poderá extrair sem receio negativas conclusões. Tal artigo teve por consequência baixar na categoria do funcionalismo público, «segundo as respectivas habilitações», alguns professores universitários, se não radicalmente a privar de meios de subsistência os mais idosos ou já inadaptáveis da Universidade do Porto.



Leonardo Coimbra



Àqueles professores da Universidade do Porto era então aconselhado que adquirissem as respectivas habilitações burocráticas, e que para tal se sujeitassem ao interrogatório humilhante dos seus colegas de Coimbra ou de Lisboa, em provas públicas, para desse modo obterem a sanção legal que lhes garantiria a efectividade e a inamobilidade nas funções universitárias. Dois professores assim cumpriram. Considerando incorrecto tal procedimento, Leonardo Coimbra e seus amigos mantiveram-se em orgulhosa mas difícil independência (in Memórias de Um Letrado, III, Guimarães Editores, 1980, pp. 19-26).


(1) Henri Bergson, L'Évolution Créatrice, Paris, 1907.

Continua


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