Escrito por Miguel Bruno Duarte
«...porque nascestes, não sois imortais nem
incorruptíveis».
Platão («Timeu»).
«...a alma é uma substância no sentido de forma de
um corpo natural que possui a vida em potência».
Aristóteles («De Anima»).
A pluralidade de substâncias não obsta a que no homem subsista uma única alma, do mesmo modo que múltiplos raios unindo-se, resplandecem numa única luz. E assim daremos lugar à consideração do que mais filosoficamente importa intuir quanto à coexistência de três possíveis soluções para o complexo problema do que por ora simplesmente denominaremos os elementos constituintes da alma humana. Ora, entre tais soluções susceptíveis da mais remota, não obstante perene controvérsia, avultam as seguintes: a primeira respeitante à existência de uma única forma[1] com diversas operações ou faculdades anímicas[2]; a segunda relativa à existência da alma humana enquanto forma única numericamente considerada, pese embora contendo em si mesma incompletas e variegadas formas, ordenadas entre si, concorrendo as inferiores como disposições materiais para a superior; a terceira e última concernente a uma triplicidade de substâncias diferentes numa única alma, semelhante a uma nascente luminosa mais intensa absorvendo outras luzes menores.
Dirão decerto alguns críticos estarmos
perante uma questão obscuramente escolástica, hoje cientificamente nula porque
materialmente insondável e, por isso mesmo, inexistente. Diremos nós, porém,
tratar-se de uma indagação filosoficamente viável, ou teoreticamente apta a uma
cadeia de raciocínios silogísticos conceptualmente reveladores dos mais
insignes mistérios no domínio da psicofísica e, dessa forma, no domínio não
menos crucial da psiconoética. A essa indagação corresponderá necessariamente uma
tripla principialidade consubstanciada na vida vegetativa, sensitiva e
intelectiva reunida no homem como um todo, onde, sem embargo, três substâncias
diferenciadas se nos afiguram perfeitamente distintas.
A alma intelectiva, formada à imagem do Criador, governa e conserva a vida no homem mediante a concorrência de duas substâncias anímicas, a vegetal e a sensível, que dispõem o corpo para a sua recepção e a auxiliam nas suas operações e demais necessidades do corpo. A unidade existente no homem aparece desde logo estabelecida pela alma racional enquanto distinta da alma vegetativa e da sensitiva, estando estas unitariamente integradas naquela sem que disponham no seu seio de qualquer substancialidade[3]. De resto, a infusão da alma humana no corpo é própria da alma intelectiva, porque o mesmo se não dirá quer da alma vegetativa quer da alma sensitiva, posto que provenientes, por geração, da potencialidade da matéria[4].
As duas últimas encontram, portanto, o
fundamento da sua origem num princípio intrínseco natural, isto é, na acção da
natureza, enquanto que a primeira encontra a sua origem num princípio extrínseco
proveniente da acção divina. Aqui, não existe unicidade de essência das almas vegetativa e sensitiva com a
intelectiva, pelo que diremos que as almas fundadas na matéria jamais podem ser
infundidas no corpo, podendo somente ser geradas
pela actividade da natureza. Sem as duas formas, a vegetal e a sensível,
enquanto receptáculos corporais, a alma intelectiva jamais inclinar-se-ia para
a união com o corpo.
De tudo isto se infere a diferença substancial das almas, pois as
duas primeiras, provenientes da matéria, são passíveis e corruptíveis, ao passo
que a alma intelectiva, pela sua simplicidade incorpórea, não tem orgão
corporal próprio e, por conseguinte, não recebe da matéria corporal nem
extensão[5]
nem divisão. Sendo por definição a perfeição do corpo, a alma racional vivifica
e governa todas as partes do mesmo, dela resultando a unidade do composto
humano. Melhor ainda: a alma intelectiva, dando a última perfeição, não anula a
pluralidade de almas, dado que mantém, ordena e dirige a identidade e
diversidade de substâncias mediante uma unidade de perfeição comparável à união
de três chamas que se reúnem para emitir uma só luz.
Na verdade, não estamos perante um agregado substancial, mas, sim, de uma unidade
de ordem existente entre as três substâncias anímicas. Por outras palavras, uma
coisa é saber estabelecer com relativa precisão as relações entre aquelas três
formas anímicas, conquanto distintas entre si, outra coisa é compreender como elas
constituem de algum modo uma unidade de perfeição, de ordem e de direcção. Em
suma: três almas ou três substâncias como uma unidade essencial, diversas só
quanto às potências[6].
O princípio mediador de união entre a
alma e o corpo é, no que especialmente respeita à fisiologia humana, o espírito vital[7],
que reside no coração. Demais, o pluralismo de formas na alma humana pode ser,
em parte, explicado através do desenvolvimento embriológico, visto que, por
contrapartida à alma intelectiva, a vida animal só existe em potência no
embrião, enquanto não acha formados os orgãos indispensáveis para a sua
actividade. Assim, resta saber se, antes de realizada a embriogénese, e até à
infusão da alma intelectiva, o embrião vive da alma da mãe, da qual é como que
um membro, ou se é necessária a presença de uma alma vegetativa proporcionada
ao seu corpo[8], já de si distinta da alma própria das plantas. Do que resulta que a alma racional não chega
a ser introduzida no corpo senão quando este está cabalmente formado, absorvendo
e evanescendo a alma vegetativa do mesmo modo que uma luz mais intensa absorve
uma luz menos intensa.
Nas questões da alma pode, entretanto,
colocar-se o problema não já em termos de pluralidade de almas mas de
diversidade de substâncias quanto à sua origem e natureza. Nessa medida, poderá
afirmar-se que o homem tem uma substância incorpórea, transmitida por geração,
pela qual vive; uma outra, oriunda dos corpos celestes, que lhe garante a vida
sensitiva; e uma terceira, a alma racional, criada por Deus. A união das três
substâncias, conformando uma só alma, pode igualmente comparar-se à união de um
raio corruptível de fogo com um raio incorruptível de sol, convergindo numa só
luz.
A unidade de substância também pode
eventualmente salientar a possibilidade da alma humana como uma só substância
dotada de uma tripla potencialidade[9].
Daí que, regressando à embriogénese, a questão passe por saber se, de facto, em
Aristóteles é lícito admitir se na alma humana podem realmente coexistir várias
substâncias, qual uma sucessão de almas[10],
ou se, por outro lado, não será que no Filósofo a diversidade de substâncias venha
antes a significar que no embrião começam por se manifestar em primeiro lugar as
actividades da vida vegetativa para no seu seguimento terem lugar as da vida sensitiva
em virtude da alma racional[11].
Nesta particular acepção, a alma racional constitui a substância por excelência
da qual procede, em última instância, a realização teleológica das potências
vegetativa, sensitiva e intelectiva[12],
e, nessa medida, ela actua como princípio de vida entendido ora como forma ou
enteléquia, ora como instância preparadora dos orgãos necessários para a vida
que lhe compete.
Consideremos entretanto que os tratados
zoológicos aristotélicos, entre os quais se incluem o De animalibus[13], De anima e Parva naturalia, foram sobretudo conhecidos entre a escolástica
latina através dos árabes que previamente os conheceram na sua ânsia de
reconstituir a enciclopédia aristotélica. Contudo, o conhecimento desses
tratados vertidos em latim trazia consigo uma ameaça à ortodoxia reinante no
século XIII, pelo que as autoridades eclesiásticas proibiram o seu ensino em
Paris. De Aristóteles, portanto, além das obras lógicas[14], só
a leitura dos livros II e III da Ética
é autorizada, acompanhada dos respectivos comentários.
Sem embargo da proibição dos libri naturales do Estagirita como texto
de curso na Faculdade das Artes, vários são, todavia, os professores da
Faculdade de Teologia de Paris quem larga ou sumariamente os utiliza a título
particular. E não é por acaso que já na primeira metade do século XIII vários
são os escolásticos que a propósito das questões da origem, unicidade e
pluralidade de formas da alma citam o De
animalibus, não só os de Paris, mas também muito particularmente os de
Oxford, por não estarem, como aqueles, sob qualquer restrição quanto à
utilização do novo Aristóteles. Dentre os últimos contam-se, a título de
exemplo, Roberto Lincolnense, João Blund, Adão de Buckfield, Ricardo Fishacre e
o franciscano Ricardo Rufo de Cornwall.
Os comentários ao De animalibus sob a forma de questiones
disputata representa, pois, um aspecto pertinente na introdução do
aristotelismo no Ocidente. E com a redescoberta de Aristóteles no século XIII,
segue-se uma radical alteração da problemática expressa na questão da origem da
alma humana, profundamente distinta das várias doutrinas de ordem teológica e
exegética dos primeiros padres da Igreja, com especial ênfase para o
criacionismo e o generacionismo espiritualista ou materialista. Ou seja: se a
doutrina acolhida pelos teólogos no início do século XIII, recorrentemente
baseada, correcta ou incorrectamente, na autoridade de Santo Agostinho, preconizava
que a origem da alma humana é directamente criada
por Deus e infundida no corpo, o problema que à época surgia é que, com
Aristóteles, o aparecimento da concepção hilomórfica[15] da
natureza anunciava que a alma do homem, sendo uma enteléquia, é na sua
perfeição um composto de formas substanciais extraídas da potencialidade da
matéria por causas naturais. E se a geração, como toda a mudança, é, na
qualidade de movimento natural, a transformação da matéria pela passagem a acto
de uma forma substancial nela contida em potência, então algo de idêntico se
passaria na geração humana conforme os ensinamentos zoológicos de Aristóteles.
Santo Agostinho de Hipona |
Consequentemente, o embrião humano está
inicialmente animado de uma vida vegetativa, a que se segue depois uma vida
sensitiva, ambas extraídas da potencialidade da matéria[16].
Só a alma intelectiva, culminante no homem, tem uma causa exterior, porque na
verdade a sua actividade psiconoética é intrinsecamente independente do corpo[17]. E
assim se compreende que os escolásticos da primeira metade do século XIII procurassem
uma tentativa de conciliação entre a filosofia natural aristotélica e a
concepção teológica da criação da alma humana, pese embora entre eles se
operasse, fruto das mais diversas interpretações, a disputada controvérsia
sobre se a alma vegetativa, sensitiva e intelectiva constituem afinal três
substâncias, três formas, ou uma só[18].
No problema de saber se entre a alma e o corpo há elemento intermediário de união convém notar que, da parte da alma racional, estão a alma sensitiva e a alma vegetativa, ao passo que da parte do corpo destacam-se o tríplice espírito[19] e o calor elementar. E é mais precisamente ao nível da vida sensitiva que o spiritus se nos revela como o seu meio instrumental, da mesma forma que no âmbito da vida vegetativa o calor desempenha uma função paralela. Mas, no limite, uma vez sabido que tudo quanto é gerado é corruptível, segue-se que tanto a alma vegetativa como a alma sensitiva, provenientes da geração, são igualmente corruptíveis.
É perfeitamente sabido que, segundo o maior filósofo da Antiguidade, debalde é tudo aquilo que fisicamente não atinge o fim a que se destina[20]. Logo, se a natureza, tendo por fim a vida sensitiva, não agisse em conformidade própria, gerando a alma sensitiva, seríamos forçados a concluir que a natureza, enquanto primeira categoria do real, seria de per si destituída de regularidade inteligível que, por contida no particular, pressupõe o universal. E com mais razão diríamos o mesmo para a vida vegetativa enquanto disposição preparadora, primeiro em potência e depois em acto, da vida sensitiva.
Seja como for, sempre se nos depara a questão de saber se a vida, nas plantas e nos animais, é imediatamente criada por Deus[21], ou se as almas dos animais foram criadas nos primórdios propagando-se e multiplicando-se desde então, ou ainda se a vida animal tem origem por criação na potência ínsita da matéria, senão mesmo na virtus que realiza o desenvolvimento embriológico. Em todo o caso, estamos em crer que Deus opera na matéria, substracto da natureza, intervindo criadoramente enquanto agente sobrenatural informador.
Quanto à origem da alma nos animais inferiores[22] originados na putrefacção, sempre existe a possibilidade, posto que devidamente afastada a da sua directa criação por Deus, da acção dos corpos celestes já admitida por Tomás de Aquino em toda a actividade sublunar[23], conquanto subtraídos os actos humanos da vontade e da inteligência, assim como os acontecimentos fortuitos. Tais excepções constituem, pois, fenómenos acidentais aos princípios universais da ciência astrológica preconizada pelo Doutor Angélico, não obstante a célebre objecção ao próprio dirigida de que a alma sensível nos animais inferiores provenientes por putrefacção não poder ser de modo nenhum originada nos corpos celestes, uma vez serem estes inanimados. S. Tomás responde, porém, que, embora inanimados, os corpos celestes agem em virtude da substância viva que os move, seja porventura um anjo, ou Deus.
Sabemos ainda com Aristóteles que toda a
operação natural, cuja raiz reside na matéria ingerada e incorruptível[24], se
realiza com base no princípio do contacto, que o mesmo é dizer por acção das
operações corpóreas, que assim se distinguem das forças, potências ou
faculdades às quais aquele princípio não se aplica de todo. Daí também que toda a
operação corpórea se disponha e ocorra por meios corporais, sendo predominantemente corpóreas as actividades da alma vegetativa e sensitiva, com sua origem na natureza. Subjacentes ao corpo, uma e outra são corruptíveis, podendo, no entanto,
multiplicar-se em virtude de sua natureza latente.
Conforme se distinguem as operações, assim se vão igualmente distinguindo as substâncias de que aquelas procedem, como certamente sucede com as operações da alma vegetativa e sensitiva, que, por se aterem a disposições corporais, distinguem-se das peculiaridades operativas próprias da alma intelectiva, independentes do corpo. E uma vez mais se explica quão diversas são as substâncias da alma vegetativa e sensitiva da substância da alma intelectiva, quanto mais não seja por implicarem em si elementos de origem corpórea. Em suma: as primeiras duas provêm de geração, sendo que a última, incorporal e incorruptível, provém directamente do primeiro princípio por criação.
Passagem do Timeu de Platão, numa edição de 1578, acompanhada da tradução latina e notas de Jean de Serres. |
Platão distinguira, na Politeia, “três partes” ou “funções” da psique humana, nomeadamente uma alma concupiscível, outra irascível e uma terceira intelectiva. Porém, enquanto que no filósofo da reminiscência uma tal divisão era compreendida à luz da conduta ética do homem, no Estagirita a divisão tripartida da alma começa por obedecer à observação cuidada dos seres vivos e das suas funções no plano dos fenómenos da vida, supondo, para o efeito, determinadas operações constantes perfeitamente diferenciadas que assim pressupõem a alma como princípio de vida[25] cujas capacidades ou funções presidem àquelas mesmas operações e as regulam. Deste modo, para que se saiba atender às diferenciadas operações no âmbito da vida vegetal, animal e racional, é necessário saber questionar, para cada tipo de ser vivo, o «tipo de alma a cada um específico: qual a alma própria à planta, ao homem, ao animal selvagem.» E assim desenvolve Aristóteles:
«Por que razão são as almas assim dispostas segundo esta ordem, tal consiste numa questão que devemos examinar. Na verdade, assim desprovida de faculdade nutritiva, a faculdade sensitiva nunca poderá ser concedida; mas, pelo contrário, pode encontrar-se a faculdade nutritiva sem faculdade sensitiva nas plantas. Uma situação idêntica se pode verificar em relação ao tacto: sem ele não poderá existir qualquer outro sentido; porém, o tacto pode existir separado dos outros sentidos: muitos animais carecem realmente do sentido da visão, da audição ou do olfacto. Além do mais, entre os animais dotados de sensibilidade, possuem uns movimento localizado enquanto que outros, não. Apenas um restrito número possui faculdade de pensamento discursivo e de raciocínio – na verdade, todos aqueles seres mortais e dotados de faculdade de raciocínio podem gozar de todas as outras faculdades. Existem também aqueles seres mortais que não possuem nem uma nem outra destas faculdades – nem todos podem possuir raciocínio – enquanto que outros são, contrariamente, mesmo totalmente desprovidos de faculdade de imaginação, só podendo aqueles outros devido a ela viver. Quanto ao intelecto teorético, a questão que se coloca é diferente. Tratar cada uma destas faculdades em particular é, com efeito, o método mais apropriado para se investigar acerca da alma.»[26]
Várias são, pois, as faculdades e as
funções da vida, como as de carácter vegetativo
(o nascimento, a nutrição e o crescimento[27]),
sensitivo motor (as sensações e o
movimento) e intelectivo (o
conhecimento, a deliberação e a eleição). Estas faculdades não constituem
propriamente partes da alma qualitativamente diferentes, mas potências cada uma
das quais possui a qualidade do todo que é o homem. Dir-se-ia que a alma é
homeómera, como se, por analogia, de um tecido se tratasse e não de um orgão.
A alma vegetativa preside igualmente à reprodução, que é a finalidade de toda a forma de vida finita no tempo. Na realidade, toda a forma de vida, reproduzindo-se, está destinada a perpetuar-se para a eternidade e não para a morte, inclusive a forma mais elementar de vida, consoante determina o nosso Filósofo:
«A alma nutritiva pertence tanto ao homem como aos outros seres vivos, sendo a primeira e a mais comum das faculdades da alma; através dela pode a vida ser concedida a todos os seres animados, sendo as suas funções respectivamente a geração e a nutrição. Com efeito, a mais natural de todas as funções de todo aquele ser que é perfeito, não incompleto e de geração não espontânea, consiste na sua capacidade em conceber um outro ser vivo semelhante a si mesmo: o animal concebe o animal, a planta, a planta, participando, tanto quanto possível, do divino e do eterno. A isso aspiram realmente todos os seres, agindo precisamente todos eles com vista a esse fim, com toda a sua actividade natural (deve o fim ser entendido como fim em si mesmo, sendo o sujeito entendido como tal em relação a esse mesmo fim). Em virtude de ser impossível poder comungar directamente daquilo que é eterno e divino de uma maneira contínua – nenhum ser corruptível poderá, na verdade, perdurar na sua identidade e na sua unidade individual – o ser só poderá fazê-lo se nisso participar, num grau mais ou menos elevado; porém, se permanece no ser, não será em si mesmo mas, antes, como semelhante a si mesmo, nunca na sua identidade individual mas, antes, na unidade da espécie.»[28]
A primeira faculdade da alma sensitiva é
a sensação[29],
além do apetite[30] e
do movimento. Os objectos sensíveis
produzem nos orgãos dos sentidos imagens
sensíveis que permitem conhecer fielmente os aspectos dos corpos
apreendidos pelos cinco sentidos externos ou sentidos próprios[31]:
a vista, o ouvido, o olfacto, o gosto e o tacto[32].
O aparecimento da imagem sensível é uma representação das formas sensíveis sem
a matéria, ou, se quisermos, uma representação imaterial[33] que atinge o seu apogeu no sentido da
visão[34],
pois, além de ser o sentido mais universal em virtude do seu objecto, já que o
seu campo de percepção se estende inclusive aos corpos celestes, ele é o único
capaz de conhecer sob a actuação da luz e da cor[35].
Os conceitos universais, que em sua
representatividade abstracta surgem independentemente das condições de lugar e
tempo, já revelam, por seu turno, a natureza imaterial da inteligência. Desprovidos
de qualquer conteúdo, os conceitos universais não são inatos mas adquiridos,
visto que o acto intelectivo é uma potência
receptiva relativamente às formas inteligíveis, do mesmo passo que o acto
perceptivo é analogamente uma assimilação das formas sensíveis[36],
embora difira em si mesmo da faculdade perceptiva, por não se misturar com qualquer actividade corporal nem com algo de corpóreo. Assim, a inteligência
humana é, na sua potencialidade receptiva, a capacidade de conhecer as formas
inteligíveis que estão contidas em potência nas sensações e nas imagens
sensíveis (phantasmata)[37],
o que supõe necessariamente algo mediante o qual o pensamento, por um lado, se
actualize apreendendo em acto a forma, por outro que a forma contida nas imagens da fantasia venha a ser o
conceito apreendido e realizado em acto. Isto pressupõe a distinção escolástica entre o intelecto activo (intellectus agens) e o intelecto receptivo (intellectus possibilis), o primeiro agindo sobre as imagens
sensíveis produzidas, durante o acto perceptivo, pelas coisas sensíveis, daí
formando as species intelligibiles, o
segundo recebendo as species
intelligibilis impressa para proceder ao acto de as pensar mediante a
actividade conceptual[38] e
eidética[39].
Nisto, de um lado está o intelecto que produz todos os objectos
tal como a luz converte em acto as cores que só o são em potência, do outro
está o intelecto que tem a potencialidade
de ser todos os objectos. Assim, tal como as cores seriam invisíveis à
vista se não existisse a luz física, também as formas inteligíveis contidas nas
imagens sensíveis quedariam inapreendidas pelo intelecto em potência se não
houvesse a luz inteligível que permitisse ao intelecto recebê-las em acto. Daí
se segue que a forma inteligível é o acto do intelecto receptivo, e, nessa
medida, o intelecto em acto e o inteligido em acto se identificam.
Templo de Poseidon |
É ainda a orientação da inteligência
para o conhecimento do mundo natural que torna possível a apreensão do singular. Sendo embora um conhecimento
indirecto por estarem implicadas as imagens de fantasia (phantasmata) que representam o singular, ele é, no entanto,
perfeitamente possível mediante a formulação de juízos singulares como Sócrates é homem. Além disso, imortal e
eterno só mesmo o intelecto que, segundo Aristóteles, não tem em si qualquer
mistura[40],
“vem de fora” e é divino. E assim se explica a sua transcendência enquanto
alteridade de essência relativamente ao corpo, num sentido de diferença de
natureza em sua dimensão supra-empírica e espiritual.
A alma humana é, enquanto forma
espiritual subsistente, princípio de actividade que através do pensamento em
acto apresenta características transcendentes às actividades orgânicas, de modo
que pela natureza inorgânica da intelecção alcança um conhecimento imaterial do
ser em si das coisas e das relações essenciais que as ligam entre si. Graças à
sua subsistência espiritual pode também conhecer, por representações infusas
recebidas por influxo divino, as almas separadas ou espíritos puros. Contudo, a
alma humana, sendo um composto hilomórfico[41],
tem um duplo estatuto ontológico simultaneamente presente ora na forma
substancial da matéria (forma materiae),
ora na forma imaterial ou espiritual (forma
immaterialis), nesta, pois, residindo a sua substância própria não obstante
os diversos condicionamentos provenientes das actividades orgânicas que também
explicam que não há pensamento sem imagens[42],
nem acto de conceber que não tenha como primeira referência o real percebido
pelos sentidos[43].
Houve decerto, ao longo dos milénios, vários
estudiosos do De anima de Aristóteles
que se questionaram sobre a possível ambivalência de uma tal obra pertencer,
por um lado, ao campo das ciências naturais, por outro ao domínio especulativo
da ciência metafísico-teológica, independentemente ou não de haver no
experimentalista grego uma solução de compromisso entre o mundo natural e o
mundo sobrenatural. Por outras palavras, a questão estaria fundamentalmente em
saber se o filho de Nicómaco seria sobretudo um fisiólogo da psyché ou se, porventura, seria antes um
psicólogo noético da alma subsistente e imaterial. Seja como for, uma coisa é
certa: o fundamento da psicologia aristotélica é, sem dúvida,
orgânico-vegetativo por constituir a origem e a fonte das funções vitais da
vida, e, nessa medida, substância comum generativa do corpo animado ou raiz da
qual dimanam todas as potências da alma[44].
[1] Entenda-se aqui a psyché como forma, no sentido de acto,
de um corpo que possui a vida em potência. As faculdades ou potências (dynameis) da alma, uma vez em acto, são,
por definição, a realização (entelecheia)
do corpo ou de uma parte do corpo. Se quisermos, além disso, uma definição
geral aplicável a todas as espécies de alma, diremos que ela é enteléquia primeira de um corpo natural
organizado.
[2] Referimo-nos às faculdades
nutritiva, desiderativa, sensitiva, de locomoção e de pensamento.
[3] À alma vegetativa, primeira
forma substancial extraída da potência da matéria, sucede-se a alma sensitiva,
também ela forma substancial que passa a conter as funções e as potências da
anterior, a qual se torna inútil e se corrompe. Por fim, a alma racional, única
forma e enteléquia do homem, conserva em si todas as funções e potências
anteriores, tornando igualmente inútil a alma sensitiva, destinada à corrupção.
[4] Daí não ser aleatória a
afirmação de que a alma vegetativa é o universal e comum princípio de vida em
todos os seres vivos. E é nessa acepção que se pode geralmente dizer que a alma
é princípio comum a toda espécie de vida animada, conquanto propriamente
entendida não a partir do corpo orgânico animal, mas do corpo orgânico comum
aos seres vivos.
[5] O corpo é, por definição, uma
realidade extensa. Enquanto corpo de tal
natureza, um corpo não pode ser indefinidamente divisível, pois todo o
corpo natural tem uma certa e determinada grandeza que o situa entre um máximo
e um mínimo, isto não obstante a propriedade da extensão constituir um contínuo
indefinidamente divisível em partes homogéneas, o que já implica uma indeterminação profunda da quantidade
fundada, por analogia, na matéria-prima. Divisível, a extensão não é
actualmente dividida, mas contínua.
Essa é, aliás, a razão segundo a qual os argumentos de Zenão de Eleia são
primorosamente refutados por Aristóteles, ao demonstrar que, para alcançar a
tartaruga, Aquiles não precisa de vencer um espaço infinito. A substância
corporal tem, portanto, de ser composta de um princípio de determinação
específica e de um princípio de si indeterminado, se bem que determinável pelo
primeiro. Só assim se explica que indeterminação implicada na propriedade da
extensão seja, por conseguinte, o ponto de partida para a formulação
aristotélica da composição hilomórfica das substâncias corporais, que decerto
vale para todos os corpos, incluindo os corpos celestes.
[6] Em todo o caso, para alguns
escolásticos, como Filipe Chanceler, a aceitação de três substâncias não implica
a afirmação de três almas, na medida em que a alma é nome de perfeição, de modo
que as substâncias vegetativa e sensitiva não constituem perfeições completas,
como nas plantas e nos animais. No homem tais substâncias são como que a
matéria em relação à alma intelectiva, só ela forma e perfeição.
[7] Curiosamente, Ali ibn al Abbas
dá-lhe o nome de espírito espiritual.
E Isaac de Stella, não menos curiosamente, encontra na imaginação, na qualidade
de um espírito ínfimo que, sendo corpóreo, não é corpo, o elemento de
conciliação entre a alma e o corpo. Este elemento corpóreo, entrando em
contacto com o espiritual, coincide porventura com o espírito animal em Isaac de Stella, o qual parece aceitar a doutrina
galénica a propósito do espírito vital.
[8] Há aqui a possibilidade da
existência de um dúplice princípio de vida vegetativa: um que é substância,
proveniente na sua transitoriedade da potência da matéria, e outro que é
potência da alma intelectiva e torna o homem ser perfeito porque completado
pela faculdade racional. Analogamente se admite um dúplice princípio de vida
sensitiva, um proveniente da matéria, e outro infundido com a alma racional.
[9] Por isso se diz que a alma
intelectiva é a única forma substancial do homem, na medida em que qualquer
pluralidade de formas comprometeria a unidade substancial da natureza humana.
No mais, esta forma única contém em si a perfeição de todas as formas
inferiores enquanto princípio substancial de todas as actividades do composto
humano. Numa palavra, tais actividades procedem da unidade de substância por
intermédio das potências de operação.
[10] Neste sentido, pode porventura
argumentar-se que, uma vez que nas plantas a alma vegetativa é o princípio das
suas operações naturais, próprias da vida vegetal, igualmente no homem as
operações da vida vegetativa e sensitiva têm a sua origem nos princípios
correspondentes, pelo que nele subsistirão três substâncias.
[11] A dado passo do De anima, Aristóteles questiona-se nos
seguintes moldes: «Será que nós pensamos, sentimos, fazemos e sofremos com a
totalidade da alma ou, pelo contrário, possivelmente algumas funções poderão
pertencer a uma parte da alma, enquanto que outras, a outra parte? Será que a
vida reside numa parte, em várias partes ou em todas as partes da alma? Ou,
então, residirá a causa de tudo isto em qualquer outra coisa?
Alguns
filósofos afirmam que a alma se encontra dividida em partes, pensando com uma
parte enquanto deseja com a outra. Neste caso, em que poderá, então, consistir
aquilo que mantém a alma unida, se, de facto, é ela realmente formada por
partes? Certamente o corpo não o poderá ser já que, pelo contrário, parece ser
a alma a reunir o corpo no seu todo, dissolvendo-se e decompondo-se o corpo
indiscriminadamente quando a alma dele se aparta. Se, por conseguinte, será uma
outra coisa a conceder unidade à alma, tal coisa só poderá ser a própria alma.
É, no entanto, necessário que questionemos mais uma vez se essa coisa
consistirá numa unidade ou num conjunto de várias partes. Se for uma unidade,
por que razão não poderia a alma ser directamente descrita como uma unidade? Se
for um conjunto de partes, o desenvolvimento daquele argumento exigirá, por sua
vez, que se tenha de conhecer o princípio da composição daquilo que a compõe, e
assim sucessivamente ao infinito» (Aristóteles, Da Alma, Edições 70, p.48). E noutro passo mais adianta o
Estagirita a favor do princípio de que há uma ordem nas formas materiais como
nas imateriais, cada uma das superiores supondo as inferiores, preconizando «o
facto de o quadrilátero poder conter o triângulo ou aquela circunstância de
poder a faculdade sensitiva conter a faculdade nutritiva» (Da alma, pp. 58-59). Esta analogia entre as capacidades da alma
vegetativa e da sensitiva com as formas geométricas, pode ser entretanto
alargada ao quadrilátero e ao pentágono, posto que no segundo se contém o
primeiro tal qual na alma intelectiva se contêm a alma vegetativa e sensitiva.
Note-se, ademais, que esta analogia pode ser interpretada em dois sentidos
opostos, quiçá complementares, caso se pretenda optar ou, pelo argumento a
favor do pluralismo de formas, ou pelo argumento a favor da unicidade de
substância da alma humana.
[12] E assim se explica que no
desenvolvimento embriológico tudo dependa essencialmente de um princípio
incorpóreo que não pode ser extraído da matéria corpórea, podendo mesmo
dizer-se, num sentido bio-fisiológico, que a alma, infundida pela Inteligência
suprema no organismo preparado, encontra-se em potência no germe, ou seja, na virtus do sémen. As funções vitais do
embrião não dispensam, contudo, a concorrência de uma sucessão de formas
tiradas da potência da matéria, como se originadas numa forma incoativa. E daí que já quando do processo atribuído às
potências vegetativa e sensitiva cada forma tornada acto seja por si mesma
incompleta, porque destinada a receber uma forma superior. Dir-se-ia, pois,
tudo estar in fieri, salvaguardada a
intervenção do Primeiro Motor, apenas nos restando acrescentar que a alma
humana enquanto substância única tem uma dupla origem, partim ab intrinseco e partim ab extrinseco.
[13] Foi sob o título comum De animalibus, agrupado e dividido em
dezanove livros, que entraram no Ocidente latino De historia animalium (I-IX), De
partibus animalium (XI-XIV) e De
generatione animalium (XV-XIX). Consideram-se unanimemente da autoria de
Guilherme de Moerbeke as versões latinas dos tratados zoológicos contidos no De animalibus. Também, de resto, lhe é
atribuído o De motu animalium, considerado
como espúrio, e o De progressu animalium,
aceite como autêntico.
[14] Do Organon de Aristóteles se conheceu no Ocidente até ao século XII o
tratado das Categorias (Praedicamenta) e o De interpretatione (Perihermeneias),
o primeiro nas traduções de Mário Vitorino e de Boécio, e o segundo na versão
de Boécio. A tais escritos aristotélicos se chamará Logica vetus, passando a Logica
nova a ser constituída a partir da altura em que, no século XII, se
divulgam as traduções latinas de todos os tratados lógicos de Aristóteles. Além
dos dois tratados da Logica vetus, conhecia-se
ainda, até ao século XII, a Isagoge de
Porfírio, traduzida por Mário Vitorino e também por Boécio, que sobre a mesma
redigiu e parafraseou vários comentários a que se juntariam outros mais
particularmente relativos às Categorias
e ao De interpretatione de
Aristóteles.
[15] Na sua raiz etimológica, hylè, do grego, significa matéria, e morphè, forma.
[16] Devido à aceitação do
criacionismo pelos teólogos a partir do século XII, o problema da distinção
entre as origens da alma vegetativa e sensitiva, separadamente da intelectiva,
torna-se no século seguinte motivo de controvérsia com a nova problemática
posta pela biologia aristotélica, ensinando uns que a unidade da alma humana
não provém da matéria, mas da criação, outros ainda procurando uma conciliação
entre a doutrina tradicional e a novidade filosófica, ensaiando diversas
explicações sobre a unidade da alma com a triplicidade da sua distinção em
vegetativa, sensitiva e intelectiva.
[17] Por isso se diz que a alma
intelectiva, nem quanto à sua substância nem quanto à sua actividade incorpórea, não está dependente da matéria. Em nenhum sentido, portanto, necessita de uma
preparação realizada pela natureza, o que já não sucede quanto à alma
vegetativa e sensitiva, ambas, no entanto, inteiramente aptas, em razão de sua
virtude vegetativa e sensitiva, para a recepção da alma intelectiva no momento propício
à sua infusão.
[18] A alma humana pode ser
inclusivamente concebida à imagem da Trindade, isto é, uma substância com três
potências.
[19] O espírito natural, o espírito
vital e o espírito animal ou psíquico.
[20] Com autorizada razão averba
Aristóteles: «É também evidente o seguinte facto: a alma constitui ainda a
causa enquanto fim. Assim como se verifica com o intelecto ao agir perante um
determinado fim, do mesmo modo procede a natureza em relação a
determinado fim, sendo por isso mesmo que nos é possível dizer “fim”. Aquilo
que, entre os animais, desempenha essa função – sendo, aliás, conforme à
natureza – é a própria alma. Todos os corpos naturais são simples instrumentos
da alma, assim sucedendo com os animais e as plantas, demonstrando isto que
eles possuem a alma como fim. O termo “fim” deve, por conseguinte, ser
entendido num duplo sentido: no sentido de fim em si mesmo e como sujeito cujo
fim é essa finalidade.» (Da Alma, p.
61).
[22] Também aqui se pode recorrer à
distinção entre os animais perfeitos
e os animais imperfeitos, os
primeiros sendo aqueles que se reproduzem pelo sémen, tendo, portanto, o poder
activo de se reproduzir, os segundos sendo os que são gerados em certas
matérias em putrefacção sob a luz solar, como os insectos e os vermes.
[23] Entenda-se aqui por actividade
sublunar os quatro elementos, os corpos mistos, a geração das plantas e dos
animais produzidos tanto por putrefacção, como por um princípio activo superior.
[24] Daí a sempre possível mas não
tão convincente defesa a favor da geração da alma intelectiva, dado nada ter em comum com a matéria.
[25] Nas palavras de Aristóteles: «A
alma é para o corpo causa e princípio. Ora, estas palavras comportam várias acepções:
é consequentemente a alma, ela própria, a causa segundo aquelas três
modalidades, conforme assim foi determinada. A alma é, com efeito, princípio do
movimento, fim e ainda causa, sendo a substância formal dos corpos animados. A
circunstância de ser a alma a substância formal é suficientemente evidente: a
causa do ser, em todas as coisas, é a substância formal. Viver é, para aqueles
que vivem, o seu próprio ser, sendo a alma a sua causa e o seu princípio,
possuindo, além disso, o ser em potência a enteléquia como forma» (Da Alma, p. 60).
[26] Da Alma, p. 59.
[27] A causa do crescimento não é,
segundo as explicações dos fisiólogos, nem o fogo ou o calor, nem em geral a
matéria. Em todos os fenómenos mais elementares da vida vegetativa, como a
geração, a nutrição e o crescimento, encontra-se a alma. Segundo Aristóteles:
«Por outro lado, julgam certos pensadores que a natureza do fogo é, de uma
certa maneira absoluta, a causa da nutrição e de crescimento. De facto, ele
parece ser o único, quer entre os corpos quer entre os elementos, a se
alimentar e a crescer. Além disso, também poderíamos considerar que, tanto no
mundo das plantas como entre os animais, o fogo poderia ser o princípio activo. Com efeito, se de facto o for, será, em sentido determinado, uma causa
concomitante, evidenciando esses pensadores alguma hesitação em relação à casa
absoluta, já que este papel antes pertence à alma. O crescimento do fogo
produz-se infinitamente enquanto durar o seu combustível mas, por outro lado,
em todos os seres cuja constituição é obra da natureza, existe um limite e uma
respectiva proporção de grandeza relativa ao crescimento, dimanando esta da
alma, e não da forma ou da matéria» (Da
Alma, p. 62).
[28] Da Alma, p. 60.
[29] A faculdade de sentir é a união
entre o sujeito e o objecto, condição sine
qua non de todo o acto de conhecer.
[30] E assim o desejo, o ardor e a
vontade, por constituírem espécies de apetite.
[31] Os sentidos próprios distinguem-se do sentido comum, que os escolásticos medievais designavam por sensus communis, visto centralizar os
dados dos sentidos externos para assim os comparar e extrair os sensíveis comuns, isto é, as características
comuns a vários sensíveis próprios (sensus proprii): o movimento e o
repouso, a extensão, a figura, a grandeza e o número. Por conseguinte, o sensus communis constitui uma das
quatro potências sensitivas internas no homem, a par quer da imaginação, quer do instinto inato para perceber o prazer e a dor, o agradável e o
doloroso, quer finalmente da capacidade
rememorativa que conserva a produção de imagens, o que o mesmo é dizer a fantasia derivada da sensação que, uma
vez acumulada, dá lugar à experiência.
[32] Nas palavras de Aristóteles:
«Das duas primeiras espécies de coisas sensíveis uma é própria a cada sentido,
sendo a outra comum a todos. Chamo “próprio sensível” àquele sentido que não
pode ser apreendido por um outro sentido e que, além disso, não permite
possibilidade alguma de errar, valendo tal circunstância para a vista, em
relação à cor, para o ouvido, em relação ao som, para o gosto, em relação ao
sabor. No que diz respeito ao tacto, verifica-se possuir ele várias qualidades
diferentes. Cada sentido julga, pelo menos, os objectos sensíveis próprios e,
na eventualidade de se enganar, não poderá sê-lo em relação à cor ou ao som
mas, antes, em relação à natureza ou à colocação posicionada do objecto
colorido, em relação à natureza ou à colocação posicionada do objecto sonoro.
Os objectos sensíveis deste género são chamados “próprios”, sempre que se
encontrarem, enquanto tais, em relação a cada sentido correspondente. Aqueles
precisamente denominados “sensíveis comuns” são o movimento, o repouso, a
figura, a grandeza, visto não serem os objectos sensíveis desta segunda espécie
próprios a cada sentido específico mas, antes, a todos comum» (Da Alma, pp. 67-68).
[33] Não é esta decerto uma
imaterialidade no sentido estrito.
[34] No comentário dos Conimbricenses
ao De anima de Aristóteles, avulta a
pertinente questão: se a visão acontece pelos raios emitidos pelos olhos ou
recebidos do objecto pelas imagens. (Ver Introdução Geral à Tradução, Apêndices
e Bibliografia de Mário Santiago de Carvalho, in P. Manuel de Góis, Comentários do Colégio Conimbricense da
Companhia de Jesus. Sobre os três livros do Tratado ‘Da Alma’ de Aristóteles
Estagirita, Tradução de Maria da Conceição Camps, Edições Sílabo, 2010, p.
85). O comentário coimbrão «conheceu, pelo menos, 4 edições em Itália, 6 em
França e 7 na Alemanha» (idem, ibidem,
p. 81).
[35] Sobre o visível e a visão, anota Aristóteles: «O objecto da vista é aquilo que é visível. O visível é, umas vezes, a cor, outras, uma coisa que pode ser descrita por palavras, embora permanecendo não nomeada (...). Com efeito, o visível é a cor, sendo esta aquela sensação superficial dos objectos sensíveis por si próprios causada (entendo “por si” não no sentido lógico mas, antes, no sentido de possuir o objecto em si a causa da sua visibilidade). Toda a cor põe em movimento o carácter por assim dizer diáfano de um acto, sendo isso precisamente aquilo que constitui a sua natureza. Eis a razão por que a cor não é visível sem luz e, devido a isso, porque é apenas na luz que se vê a cor de cada objecto». Noutro passo, sublinha o Estagirita: «Aquilo que recebe a cor é o incolor, aquilo que recebe o som é o insonoro. O incolor é o diáfano, o invisível, aquilo que não se pode ver, parecendo ser como o obscuro, este último carácter pertencendo ao diáfano, embora não no momento em que se torna diáfano como enteléquia mas, antes, no momento em que é potência – a mesma natureza é tanto obscuridade como luz» (Da Alma, pp. 68-70).
[36] «De uma maneira geral, em
relação a toda a sensação, é necessário entender o sentido da percepção como
faculdade específica a fim de se receber as formas sensíveis sem a matéria (tal
como a cera recebe o molde do ouro ou do bronze, mas não do ouro enquanto ouro
ou do bronze enquanto bronze). O mesmo se pode verificar com aquele sentido
correspondente a cada elemento sensível da percepção: concede este a tonalidade
de acordo com o objecto colorido, com sabor ou sonoro, de modo nenhum, porém,
enquanto cada um destes objectos for assim apelidado segundo uma coisa em
particular e individual mas, pelo contrário, somente enquanto possuir cada um deles
uma tal qualidade, devendo-se precisamente isso à sua forma. O orgão sensorial
primário será, por conseguinte, aquele em que se domicilia esta faculdade
potencial. Sem dúvida que ambos, o orgão e a potência, não poderão ser senão um
só; a sua essência, porém, é diferente: deve possuir uma determinada grandeza
extensiva a tudo aquilo que sente, não sendo, por seu lado, a essência da
faculdade sensitiva, ou o seu sentido, a própria extensão, mas, antes, uma
certa forma e potência daquilo que sente.
Tudo isto demonstra claramente por que razão
os elementos sensíveis de uma excessiva intensidade podem destruir os orgãos
sensoriais. Na condição de o movimento ser demasiado forte para o orgão, a
forma, que é o sentido, é afectada, tal como acontece com a harmonia e o tom
consequente das cordas tocadas com demasiada violência. Além disso, também
constitui a razão por que as plantas não possuem sensibilidade, embora possam
ter uma parte da alma e sofrer de algum modo sob a acção dos próprios elementos
tangíveis – são elas, com efeito, aquecidas ou arrefecidas; residindo a causa
no facto de não possuírem um meio nem um princípio próprio para captar as
formas dos objectos sensíveis, apenas sofrendo através das formas enquanto
unidas à matéria» (Da Alma, pp.
85-86).
[37] Daí a actividade indispensável
da abstracção e da indução no processo da captação do inteligível no sensível.
A este propósito, assinala Álvaro Ribeiro: «A indução tem por fim o conceito.
Induzir para conceber. Considerados no intelecto humano os aspectos passivo e
activo, nada nos custa a entender a fecunda passividade do intelecto perante o
que é móvel, múltiplo, contingente. De repetirmos a mesma operação intelectual,
tantas vezes quantas as requeridas, nos surge gratuitamente o conceito que merecíamos
em prémio da nossa fadiga» (cf. «Aristóteles e a Tradição Portuguesa», em As Portas do Conhecimento – Dispersos
Escolhidos, Instituto Amaro da Costa, 1987, p. 142). Refira-se também,
neste processo, a crucial distinção aristotélica entre pensar e sentir.
[38] No que particularmente respeita
ao processo de abstracção, a autoridade do Filósofo fala por si: «Aquilo que
denominamos abstracções, concebemo-las da mesma maneira quando consideramos
aquilo que é plano, isto é: chato – um nariz chato é por nós concebido sem o
separarmos da matéria; se o consideramos em relação à sua concavidade
característica e quando o concebemos em acto, exclui, então, o pensamento, a
carne na qual se encontra inserida esta concavidade – por conseguinte, é assim
que os objectos matemáticos, os quais se encontram separados da matéria, são
concebidos como sendo separados, sempre que se pensa em abstracções. O
intelecto de uma maneira geral, torna-se assim em acto, sendo idêntico aos
objectos do pensamento. Quanto a saber se o intelecto pode pensar algum objecto
separado do não-extenso, ou se porventura tal será impossível, é uma questão
que será necessário examinar posteriormente.» (Da Alma, pp. 108-109).
[39] A distinção pormenorizada ao
nível do intelecto só potencialmente se encontra em Aristóteles, a saber: «De
facto, o intelecto é capaz de, por um lado, se tornar em todas as coisas e, por
outro, capaz de produzir todas as coisas, por este modo se assemelhando o seu
estado ao da luz: a luz deixa, de certa maneira, passar as cores do estado de
potência ao estado de acto. Este mesmo intelecto encontra-se separado, sem se
misturar de modo algum, permanecendo, portanto, impassível enquanto essência.
Com efeito, o agente é sempre superior em relação ao paciente, do mesmo modo o
princípio o é em relação à matéria. A mesma situação ainda se verifica naquilo
que à relação entre o conhecimento em acto e o seu respectivo objecto diz
respeito: o conhecimento em potência precede, ele mesmo, no tempo aquele
conhecimento em acto no próprio indivíduo; mas, por outro lado, falando-se de
uma maneira geral, não poderá ser ele anterior segundo o tempo e, se assim for,
não será consequentemente necessário acreditar que este intelecto ora pensa ora
não pensa. Por conseguinte, no momento em que se encontra separado,
imediatamente se torna naquilo que ele é em si próprio, sendo, então, imortal e
eterno. Todavia, lembremo-nos do facto de ser este princípio impassível
enquanto que o intelecto passivo é corruptível, sem ele não podendo existir
pensamento algum» (Da Alma, p. 104).
[40] O intelecto separado não
misturado pode eventualmente conduzir ao imperfeito entendimento de que o mesmo
esteja sempre fora da matéria, quando o que realmente significa é que a
essência que lhe é própria não é material ou orgânica.
[41] Normalmente, o estatuto
ontológico de um dado composto hilomórfico pertence ao composto como tal.
Porém, no caso do homem, o ser (esse)
pertence eminentemente à alma, porque ela é, antes de mais e, acima de tudo,
uma realidade espiritual. E como no homem não subsistem dois seres distintos, o
do composto e o da alma, resta-nos concluir que o composto participa do esse da alma.
[42] Questionam, neste particular, os
Conimbres: «se para pensar se carece
ou não da especulação do fantasma» (op. cit.,
p. 87).
[43] Diga-se de passagem que já
Aristóteles faz principiar na percepção todo o conhecimento e, em certa medida,
o pensamento. Daí a importância concedida à phantasia,
ou à imaginação que tem o poder de produzir imagens, caracterizando-a
simultaneamente como uma faculdade sensível e uma espécie de pensamento, embora
distinta do intelecto (nous).
[44] É também com base nessa raiz que
se desenha a unidade hierárquica das formas, uma vez que a alma exclusivamente
vegetativa está virtualmente contida na alma exclusivamente sensitiva e ambas
na racional.
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