quarta-feira, 10 de abril de 2019

O Conhecimento Teosófico

Escrito por Leonardo Coimbra



«O obstáculo ao entender algumas frases de Leonardo Coimbra provém de certos termos que não são usados pelos iletrados, termos que, não sendo oriundos da terminologia científica, provêm do vocabulário lógico ou do vocabulário metafísico. Leonardo Coimbra usou e abusou dos adjectivos com inicial maiúscula, substantivando-os e dando-lhes portanto um alcance metafísico e mitológico de que viviam sem oportunidade em tempos de positivismo dominante. Nada e Tudo, Absoluto e Infinito, são palavras usuais na língua portuguesa que o leitor pode ouvir em frases feitas ou em lugares comuns, sem se escandalizar no seu uso normal, comparativo e superlativo. Transformadas em substantivos, e escritas com inicial maiúscula, logo evocam os usos da ortografia alemã, e a mentalidade do povo germânico que tende a transformar as ideias em mitos.

Associar e dissociar as palavras, eis o segundo momento, ou o segundo movimento, que se oferece ao pensador. A originalidade de Leonardo Coimbra patenteia-se na associação por analogia, acto mental que o filósofo criacionista opunha aos raciocínios de indução e dedução, assentes numa espécie de princípio de inércia, segundo o qual é dada ao espírito a faculdade de repetir indefinidamente as mesmas operações.

Deveremos notar que o raciocínio preferido pelo filósofo Leonardo Coimbra é a analogia, proveniente da metáfora linguística ou da hipótese científica, em sua semelhança com o verso poético. A analogia nem sempre é desenvolvida em proporção, ou seja, até à exibição de quatro termos, pois aparece numa forma elíptica que é um apelo à inteligência do ouvinte ou do leitor. A inteligência portuguesa também é despertada e excitada em outros textos em que só a díade é enunciada, para que o leitor reconstitua a tríade, indispensável para a inclusão do pensamento filosófico.

Deste primado atribuído à analogia, que alvorece na mentalidade infantil, que se aperfeiçoa e enriquece no decurso da experiência humana, que atinge altura divina no espírito dos poetas, dos filósofos e dos sábios, se infere a crítica que Leonardo Coimbra sempre faz ao pensamento cousado nos sólidos geométricos, à preponderância das formas escolásticas, e à lógica formal, tripartida nos capítulos de conceito, juízo e raciocínio. As apreciações injustas sobre a filosofia de Aristóteles, superficiais, equívocas e falsas, resultam do condicionalismo cultural em que se afundava o cientismo inane do século XIX. Ao reencontrar, na hora do século XX, a doutrina de que o animal racional se explica pelo "homem de sempre", Leonardo Coimbra concedeu aos escolásticos a gratidão do que lhes devia no decurso da sua manobra irreverente, removente, revolucionária.»

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», I).


«Existimos no Cosmos imediatamente e por mil formas. Assim, contemplando a Aurora, o lento emergir da luz, penetramos no sentido da Origem, sentido sem o qual não é dado ao homem compreender o ser que é e o que se lhe patenteia: "Imaginai um rio - escreve o pensador - de repente solidificado em toda a sua extensão; eis o Universo do homem descrepusculizado da Origem".

Assim, também, quando nos inclinamos para o misterioso ser infantil se nos desperta o sentido de outra origem, a qual, contraditoriamente, nos é também próxima mas não menos remota que a primeira: pois o que está autenticamente na Infância nunca se nos diz e o que em nós está da Infância nunca por completo se diz. Mas a contemplação reflexiva da Aurora, como a de qualquer forma de ser, suscita outras dificuldades, a da sensação e a da imagem; tal como a atenção ao ser infantil ou a qualquer forma ou estádio do humano ser, revela outras ainda, também implícitas naquelas, a da memória e a do amor. Têm apenas sensação e imagem o sentido que lhes atribuímos ou outro? Têm apenas memória e amor o alcance que lhes concedemos, ou outro, mais profundo?

O preço de ser consciente, lembra-nos então Leonardo Coimbra, é cindir, limitar, distinguir. Sensação e imaginação, memória e amor existem originariamente como formas mais profundas de relação com o Ser que por elas exprime no homem tudo quanto pode, mas não tudo quanto é ou sabe. Tal é o sentido do pecado "impropriamente chamado original": pois na criança, como no ser auroral, como em toda a forma inicial de ser ou de consciência, há uma "promessa infinita", que no homem não dá tudo quanto anunciara. Por isso Leonardo Coimbra nos diz ser inviável qualquer cosmologia autêntica sem restituir à sensação como à imaginação, à memória como ao amor, o seu valor originário de "insofismáveis" caminhos do conhecimento. Do Amor e da Morte assinala (…) o imprescritível sentido e valor da iniciação cósmica pelo amor.

Para compreender tudo quanto em várias linhas de visão, alegoria ou conceito o pensador por tais caminhos estabelece, importa introduzir a noção de símbolo ou correspondência simbólica. Sem isso, a Alegria, a Dor e a Graça permanece um livro cerrado. Há, assim, correspondência explícita entre o processo cósmico - aurora, manhã, luz meridiana, tarde, crepúsculo e noite - e o próprio ritmo da vida do homem - nascimento e infância, puberdade, juventude, maturidade, velhice e morte; essa correspondência, aqui mais difícil de determinar, estende-se aos graus e formas da consciência e da razão, da arte, do saber e da acção, do conhecimento e da religião. Neste sentido já antes vimos uma correspondência entre a Aurora, a Infância e a Sensação. No Cosmos vivente, no homem vivente e na consciência, são formas de relação entre o Universo, o homem e o mais íntimo ser de tudo.»

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).






O CONHECIMENTO TEOSÓFICO


A Teosofia aparece a alguns como uma teoria metafísica arbitrária e imaginosa: a orgia duma imaginação desenfreada resolvendo o problema do ser e da realidade ao capricho dos desejos ou das particularidades ideopáticas de seus adeptos.

Para outros é a Teosofia uma síntese filosófica do saber e do sentir, da realidade científica e da idealidade estética e moral, da Natureza e da alma, dos mundos e do homem.

Será então uma hipótese geral sobre a Vida e seu significado, com mais ou menos valor que qualquer outra hipótese filosófica da mesma generalidade, consoante melhor ou pior fizer a unidade a todo o saber experimental.

Desde logo aparece, no entanto, como uma simples hipótese da imaginação poética, pois se os fenómenos a não desmentem inteiramente, de modo algum sugerem uma explicação tão abertamente do tipo alma, tão antropormófica e familiar.

O Universo é antes, e para a percepção humana, um deserto de almas, onde a voz humana se perde sem eco ou companhia.

A concepção que o homem possa fazer desse Universo pela elaboração dos seus dados percepcionais é, quando muito, a de uma esperança heróica, esperança na realidade e no valor do espírito, que em si apreende como a actividade síntese, unidade do disperso da percepção na viva generalidade do conceito.

A percepção (em seu limite ideal, pois ela é sempre penetrada do conceito) seria a passiva matéria da realidade, que a actividade sintética da concepção informa.

E como o homem actua, prevê e acerta, não pode inibir-se da suposição que a exterioridade da matéria de qualquer modo seja parente e amiga da interioridade do espírito, que a informa, organiza e prevê.

Mas só no acto do conhecimento se encontra este lugar de crença e esperança; pois, no conhecido, as almas são pontos singulares, parcos e minúsculos, na vasta imensidade da matéria.

Neste ponto de vista, a hipótese teosófica é o salto sobre o abismo da dúvida, em frente ao qual o pensamento humano heroicamente afirmava.

Salto da afirmação heróica, isto é, da afirmação apesar de tudo, de todas as aparências em contrário, para a afirmação tranquila, obesa e repousada.

Não nos agradaria, pois.

Deixemos os heróis frente à Morte, a Consciência frente à matéria, o ideal frente ao real afirmando ao menos o protesto da parte viva do Ser contra o imenso, o quase total corpo de matéria que o cadaveriza.

A alma foi crescendo pela meditação e agora, mais rica de consciência e vida, volta a olhar o Ser, cujo cadáver diminui de quanto esta se aumentou.

É o terceiro momento da Teosofia, a sua grande afirmação, o seu valor próprio, a sua luminosa palavra na Vida.

E a Teosofia diz que a percepção comum é limitada, encoberta de véus que é possível soerguer.


Saturno irradiando luz violeta

Assim como a ciência tem desvendado um pouco mais dos arcanos da Natureza que a simples percepção, um novo conhecimento afirma que mais e mais é ainda possível desvendar.

A ciência não aumentou as nossas percepções por ter criado novos órgãos percepcionais.

A ciência, muito pelo contrário, em vez de acelerar a evolução do ser humano em possíveis direcções de novidade superior, em vez de adaptar o homem a  possíveis realidades superiores, adaptou as realidades ao homem (e porventura limitando-o), explorando em todos os sentidos possíveis a tradução da realidade no restrito campo das actuais percepções humanas.

É assim que não criou no homem um órgão de visão ultravioleta, antes traduziu as realidades ultravioletas em reacções químicas, visíveis pelo homem dentro da visão normal.

Pode dizer-se dum certo modo que a ciência é exactamente o processo que o homem inventou para se furtar à evolução ou, pelo menos, demorar e limitar o ritmo do seu caminho evolutivo na Natureza. Os animais evoluem adaptando-se e se à sua adaptação interessa nadar hão-de criar os órgãos da natação; o homem inventa o barco e atravessa as águas.

Para o que, nestes, a evolução cria órgãos, o homem inventa instrumentos. E porquê?

Talvez seja porque o homem se tem de adaptar a um destino diferente, a uma natureza superior.

A vida no homem não procura as adaptações mesológicas como nos outros animais, adapta antes o meio ao homem para que, liberto dessa adaptação, ele faça a outra adaptação à supervida, que o interessa?

Se assim é, porque não apareceria a nova percepção adaptada à nova (1) realidade?

A nova percepção oferecia novos dados à teorização conceptual ou científica.

E assim teríamos um novo mundo da percepção em que mais ou menos concordariam os novos seres percipientes, e uma nova ciência em que as teorias seriam mais ou menos valiosas conforme melhor ou pior interpretavam esse mundo da nova percepção.

A nova percepção seria a dos videntes (2) iniciados e dos videntes espontâneos, a nova ciência e teorização daqueles que, entre os videntes, mais explicativas hipóteses soubessem construir.

A Teosofia seria a síntese filosófica que, resumindo o saber exotérico e esotérico, da percepção normal e da nova percepção, desse do Ser a mais compreensiva explicação.

O valor da Teosofia está, pois, na possibilidade ou impossibilidade das novas percepções.

Para disso julgar não temos nós, os não iniciados, categoria; como para julgar da nossa escala cromática não tem categoria um cego.

Eles, os iniciados, a afirmam; a nós somente resta o silêncio dos mudos ou o trabalho da experiência iniciática que nos apontam.

Mas, para sermos justos, devemos, no entanto, considerar que a vidência espontânea, a libertação mnésica e muitos dos fenómenos por Boirac chamados «espiritóides» indicam a presença duma realidade, que nos embebe e não percebemos, e que é bem parecida com a que os teósofos nos dizem aberta à percepção iniciática. De modo que o dever dum espírito verdadeiramente científico, isto é, dum espírito de universal curiosidade e não de idolatria por qualquer tipo de realidade já construída, é de atenta simpatia para a nova luz, que se vem anunciando e pode muito bem ser de melhoramento e alegria para as almas. (in Dispersos. III - FILOSOFIA E METAFÍSICA, Editorial Verbo, 1988, pp. 173-176).


Flama violeta na convergência de mundos paralelos.


Notas: 

(1) Este «nova» refere-se ao estádio actual, sem prejulgar dos antecedentes.

(2) No sentido amplo, sem referência a particulares sentidos e distinguindo percepção de alucinação.


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