terça-feira, 30 de abril de 2019

Da bicorporeidade e da transfiguração

Escrito por Allan Kardec




«Aristóteles diz que Pitágoras foi chamado de Apolo Hiperbóreo pelo povo de Crotona. O filho de Nicómaco acrescenta que Pitágoras foi visto certa vez por muita gente, no mesmo dia e à mesma hora, tanto no Metaponto como em Crotona; e que em Olímpia, durante os jogos, ele se pôs de pé em pleno teatro e mostrou que uma das suas coxas era de ouro. O mesmo escritor diz que Pitágoras, ao atravessar o rio Cosas, foi saudado por este, e que muita gente ouviu essa saudação.»

Eliano


«A percepção das origens depende da inteira capacidade de nos transportarmos ao ponto pretendido. Até no caso paradigmático das matemáticas, a concepção clássica fora, sem dúvida, mais profunda do que a preconizada pela ciência moderna, a ponto de Oswald Spengler ter considerado, em A Decadência do Ocidente, a geometria euclidiana como uma forma estática de matemática em analogia com as coisas que permanecem fora do tempo, como que num eterno presente. A essa forma sucederia uma outra baseada na geometria analítica e no cálculo diferencial, designadamente uma matemática dinâmica secundada no tempo contado e medido em fracções mínimas de segundo.

Para Oswald Spengler, a cultura europeia ocidental seria apenas um fenómeno transitório plasmado numa certa imagem do mundo e da humanidade. Uma imagem, portanto, que se não coadunava com a mitogenia do homem antigo ou até mesmo com a consciência intensificada do índio para quem o mundo era propriamente a-histórico. A melhor prova disso pode, aliás, ser encontrada em don Juan Matus, um velho índio nagual que, entre 1960 e 1973, iniciara nos mistérios da percepção um jovem antropólogo da Universidade da Califórnia.

Esse jovem chamava-se Carlos Castaneda, cujos livros relatam o ensino ministrado por don Juan a fim de o iniciar no caminho do guerreiro, isto é, o caminho do conhecimento silencioso inerente ao mundo oculto e vulgarmente imperceptível do Espírito. O relato das experiências de Castaneda começaram por ser dadas a público em 1968, nomeadamente com o lançamento da sua dissertação de mestrado, intitulada A Erva do Diabo. De resto, 1968 fora o ano do movimento hippie e da contracultura, fermentos da New Age em cujo contexto os livros de Castaneda produziriam interesse acrescido, quanto mais não fosse em virtude das ervas medicinais utilizadas pelos índios nos rituais religiosos da América Central.

Contudo, as experiências perceptivas de Carlos Castaneda já de si superam larga e profundamente o movimento da New Age, a "cultura underground" ou o movimento estudantil em aparente ruptura ideológica com o establishment. Entretanto, António Telmo, outrossim inspirado na experiência da percepção dupla já compaginada em Carlos Castaneda, tão logo se dispusera a realizar experiências próprias particularmente relatadas nos seus livros, mormente em Filosofia e Kabbalah. Ora, as experiências perceptivas de António Telmo foram sobretudo traduzidas nos termos do esoterismo persa e da tradição sófica hebraica, isto é, da Kabbalah.

Posto isto, diremos que, em Carlos Castaneda, toda a percepção dupla não tem a mesma "clareza" da percepção normal, na medida em que esta pressupõe um eixo cujos extremos estão espacialmente polarizados. Por outras palavras, a percepção do homem vulgar limita-se ao "aqui" percebido de uma forma directa e instântanea, ao passo que toda e qualquer referência ao "ali" – assumido e deduzido como tal –, não é imediata e directamente apreendida pelos sentidos. Em suma, "aqui" e "ali" são apenas dois pontos de referência perceptiva, bidimensionais, portanto.









Mas há um terceiro ponto de referência que é somente perceptível "em dois lugares ao mesmo tempo", e mediante o qual se origina a percepção imediata do que, em condições normais e rotineiras, não seria de todo compossível porque, no limiar, há sempre um "ali" à espreita. Deste modo, sabemos que a percepção dupla não é da ordem do concebível e do racional, o que já de si implica que também nela não pode coexistir uma clareza linear e referencial circunscrita ao "aqui" da percepção normal. Por conseguinte, só na percepção duplicada por virtude individual, é que o lugar do conhecimento silencioso pode ser alcançado na esfera imponderável do miraculoso e do inconcebível.

Ora, se em Carlos Castaneda o indíviduo pode, como tal, criar uma imagem dupla de si mesmo, por que razão não haveríamos de ver no nome de Tomé Natanael, o misterioso antiquário de Estremoz, mais do que um simples anagrama do nome de António Telmo? Curiosamente, nos seus Contos Secretos, confessa António Telmo que teria criado a personagem de Tomé Natanael para compor o conto intitulado "No Hades", inserto em Filosofia e Kabbalah. Porém, é assaz provável que para além dessa criação do foro imaginativo houvesse algo mais, pois tudo indica que o Espírito, com suas artimanhas, lhe tenha pregado uma boa partida a avaliar pelo que relatara em "A Minha História", inserta em Contos Secretos:

"(...) o segundo acontecimento é ainda mais estranho e tem testemunhas. O António Cândido Franco, o glorioso autor de Memórias de Inês de Castro, quando leu O Antiquário de Estremoz, escreveu-me a dizer que gostava que eu lhe apresentasse Tomé Natanael, esse mestre ideal de Cabala que saíra, julgava eu, inteiramente da minha imaginação, como Athena do cérebro de Júpiter. Não era a primeira vez que me era formulado o mesmo pedido. Na minha penúria de alma, ficava todo contente e vaidoso por ter criado uma personagem com tal verdade que os leitores a julgavam um ser real e existente, não em qualquer mundo, mas neste que pisamos e onde vivemos.

Um dia, meses mais tarde, o António Cândido, que eu não via desde que recebera a sua carta, apresentou-me um pintor, o Délio Vargas, que, com grande espanto meu e alguma desconfiança, me disse que conhecera há alguns anos, Tomé Natanael, o misterioso antiquário do meu conto.

- Como assim? – exclamei. Tomé Natanael é uma invenção minha.

- Não é. – retorquiu ele. Não esteja a querer escondê-lo de nós. Eu conheci-o e troquei com ele correspondência durante algum tempo. Escrevia-me cartas que chegavam a ter oitenta páginas e sobre assuntos de Cabala.

Não desarmei.

- Deve estar a pensar noutra pessoa. A minha foi inventada, a partir, veja lá, do meu nome, trocando-lhe as letras. Como se chamava o homem?

- Rafael.

- Concedi que era, de facto, interessante, com a sua ponta de enigmático, que tivesse o nome do pintor italiano, autor do fresco que deu origem ao conto.

- Não é só isso. – replicou. Este Rafael vivia na Glória, uma aldeia a dois passos dos Arcos, onde o põe, no seu conto, a viver.






Tanta coincidência não era para teimar mais. Vimos depois juntos que, nos dias em que eu estava escrevendo em Estremoz a história do antiquário, uma criatura, em tudo semelhante, vivia ali, mesmo perto, numa aldeia, onde eu mais ou menos o imaginava. Pedi-lhe referências concretas. Só soube dizer-me que era casado com uma professora chamada Antónia. A minha mulher também se chama Antónia e também é professora.

Na minha escola, encontrei, numa turma que leccionava, uma rapariga da Glória que tinha sido aluna, na instrução primária, da mulher do cabalista. Perguntei-lhe pelo marido.

- Oh senhor professor, de dia nunca o víamos. Passava todo o dia fechado em casa, julgo eu. Só saía de noite e andava pelos campos. Fazia medo.

Este episódio deu-me que pensar. Fui levado primeiro a admitir, depois a acreditar que Tomé Natanael, que eu julgava ter inventado, existia realmente numa forma subtil que foi a que se imprimiu na minha imaginação e teria um duplo, esse de carne e osso, vivendo na Terra com uma professora de instrução primária. Mas eu dava-o no conto como o meu gémeo pela relação anagramática dos nomes. Será possível, interrogava-me eu, que haja dois mundos geminados, onde existimos simultaneamente em duas presenças separadas?"

Mas quem sabe, no entretanto, se António Telmo não se teria parcialmente inspirado nas experiências de consciência intensificada de Carlos Castaneda para narrar o seu conto, até porque parece ter porventura chegado ao conhecimento dos respectivos livros por sugestão intermédia de João Seabra Botelho. De mais a mais, tudo isso se reflecte primorosamente no modo como, "No Hades", procede ao deslocamento do seu foco de percepção mediante a formação de uma imagem dupla ou dobrada perante o célebre fresco de Rafael: A Escola de Atenas. E também já pode, eventualmente, constituir um ponto de admirável referência para o dom da ubiquidade de Pitágoras já descrito por Eliano, ou até para relembrar, nos precisos termos de Leonardo Coimbra, os fenómenos de bilocação protagonizados por Santo António de Lisboa e S. Francisco Xavier, a saber:

"Todos conhecem a lenda da aparição de Santo António de Lisboa para salvar a família injustamente acusada dum crime, tendo-se, ao mesmo tempo, conservado em Pádua, onde então habitava.

Este caso, embora mais dramático, é menos seguro, no entanto, que o caso do aparecimento no convento à mesma hora que se encontrava no púlpito da Catedral de Montpellier.

O Santo ia para pregar, quando se lembrou que devia estar no convento à mesma hora: cala-se, demora o tempo suficiente para os seus trabalhos do convento, onde é visto, e depois, como acordando, retoma o sermão na Catedral.

S. Francisco Xavier vem do Oriente num navio português. Uma tempestade separa uma chalupa com portugueses e dois maometanos do navio em que ia o Santo...

Este implora num recolhimento, e assegura ao comandante que antes de três dias, a chalupa viria ter com o navio.

A marinhagem espera, depois inquieta-se e insiste para partir, o Santo suplica-lhe que esperem mais um pouco e opõe-se à largada bradando pelo socorro divino.

Nisto uma criança grita que a chalupa se aproxima e assim acontece, até que os homens entram para o navio declarando que não tinham tido receio, porque ao leme os acompanhara S. Francisco Xavier.



Retrato japonês do período Nanban





Tal afirmação produz o maior assombro nos tripulantes do navio, pois sabiam que ele não tinha saído do navio, onde com eles sempre estivera." (in Dispersos, III).

Segundo os ensinamentos de don Juan, uma época houve em que a humanidade estivera centrada no lugar do conhecimento silencioso, transitando posteriormente para o lugar da razão. Tais lugares não se excluem, alternam-se e, ocasionalmente, coincidem uma vez realizada a devida ponte. De resto, o mundo da razão de modelo académico e científico é apenas uma pobre e triste ilusão num mar infinito de ilhas e continentes por descobrir.»

Miguel Bruno Duarte




DA BICORPOREIDADE E DA TRANSFIGURAÇÃO


Isolado do corpo, o Espírito de um vivo pode, como o de um morto, mostrar-se com todas as aparências da realidade. Além disso, pelas mesmas causas que temos exposto, pode adquirir uma momentânea tangibilidade. Este fenómeno, conhecido pelo nome bicorporeidade, foi o que deu azo às histórias de homens duplos, isto é, de indivíduos cuja presença simultânea em dois lugares diferentes chegou a comprovar-se. Aqui ficam dois exemplos, tirados, não das lendas populares, mas da história eclesiástica.

Santo Afonso de Liguori foi canonizado antes do tempo prescrito, por se ter mostrado simultaneamente em dois sítios diversos, o que passou por milagre.

Santo António de Pádua estava a pregar em Itália (1) quando o seu pai, em Lisboa, ia ser supliciado, sob a acusação de ter cometido um assassínio. No momento da execução, Santo António aparece e demonstra a inocência do acusado. Comprovou-se que, naquele instante, Santo António pregava em Itália, na cidade de Pádua.

(…) Tácito refere um facto análogo:

Durante os meses que Vespasiano passou em Alexandria, aguardando a volta dos ventos estivais e da estação em que o mar oferece segurança, muitos prodígios ocorreram, pelos quais se manifestaram a protecção do céu e o interesse que os deuses votavam àquele príncipe…

Estes prodígios redobraram o desejo, que Vespasiano alimentava, de visitar a sagrada morada do deus, para consultá-lo sobre as coisas do império. Ordenou que o templo se conservasse fechado para quem quer que fosse e, tendo nele entrado, estava concentrado no que ia dizer o oráculo quando percebeu, por detrás de si, um dos mais eminentes egípcios, chamado Basílide, que ele sabia estar doente, num lugar muitos dias distante de Alexandria. Perguntou aos sacerdotes se Basílide fora naquele dia ao templo; perguntou aos transeuntes se o tinham visto na cidade; por fim, despachou alguns homens a cavalo, para saberem de Basílide e veio a certificar-se de que, no momento em que este lhe aparecera, estava a 80 milhas de distância. Desde então, não voltou a duvidar de que tivesse sido sobrenatural a visão e o nome de Basílide passou a ter para ele um valor idêntico ao de um oráculo. (Tácito: Histórias, livro IV, capítulos LXXXI e LXXXII. Tradução de Burnouf.)

(…) Tem, pois, dois corpos o indivíduo que se mostra simultaneamente em dois lugares diferentes. Mas, desses dois corpos, apenas um é real, o outro é simples aparência. Pode-se dizer que o primeiro tem a vida orgânica e que o segundo tem a vida da alma. Ao despertar o indivíduo, os dois corpos reúnem-se e a vida da alma volta ao corpo material. Não parece possível - pelo menos não conhecemos disso exemplo algum e a razão, ao nosso ver, demonstra-o - que, no estado de separação, possam os dois corpos gozar, simultaneamente e no mesmo grau, da vida activa e inteligente. Além disso, no que acabamos de dizer ressalta que o corpo real não poderia morrer enquanto o corpo aparente se conservasse visível, visto que a aproximação da morte atrai sempre o Espírito para o corpo, ainda que apenas por um instante. Daí resulta igualmente que o corpo aparente não poderia ser morto porque não é orgânico, não é formado de carne e osso. Desapareceria no momento em que o quisessem matar.



Mosaico da Transfiguração do século VI (Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai).



Igreja da Transfiguração, no Monte Tabor (Israel).


(…) A transfiguração, em certos casos, pode originar-se a partir de uma simples contracção muscular, capaz de dar à fisionomia uma expressão muito diferente da habitual, ao ponto de tornar quase irreconhecível a pessoa. Temo-lo observado frequentemente com alguns sonâmbulos; mas, nesses casos, a transformação não é radical. Uma mulher poderá parecer jovem ou velha, bela ou feia, mas será sempre uma mulher e, sobretudo, o seu peso não aumentará nem diminuirá. No fenómeno com que nos ocupamos, há mais alguma teoria. A teoria do perispírito vai esclarecer-nos.

Está, em princípio, admitido que o Espírito pode dar ao seu perispírito todas as aparências; que, mediante uma modificação na disposição molecular, pode dar-lhe visibilidade, a tangibilidade e, consequentemente, a opacidade; que o perispírito de uma pessoa viva, isolado do corpo, é passível das mesmas transformações; que essa mudança de estado opera pela combinação dos fluidos. Imaginemos agora o perispírito de uma pessoa viva, não isolado, mas irradiando-se em volta do corpo, de maneira a envolvê-lo numa espécie de vapor. Nesse estado, torna-se passível das mesmas modificações de que seria se o corpo estivesse separado. Perdendo ele a sua transparência, o corpo pode desaparecer, tornar-se invisível, ficar velado, como se mergulhado numa bruma. Poderá então o perispírito mudar de aspecto, fazer-se brilhante, se essa for a vontade do Espírito e se este dispuser de poder para tanto. Outro Espírito, combinando os seus fluidos com os do primeiro, poderá, a essa combinação de fluidos, imprimir a aparência que lhe é própria, de tal sorte que o corpo real desapareça sob o envoltório fluídico exterior, cuja aparência pode variar à vontade do Espírito. Esta parece ser a verdadeira causa do estranho e, é preciso que se diga, raro fenómeno da transfiguração. (in O Livro dos Médiuns, Nascente, 2015, pp. 142-146).


(1) No original francês, este facto foi narrado por Kardec sob a seguinte versão: «Santo António de Pádua achava-se em Espanha e, no instante em que predicava, o seu pai, que estava em Pádua, era levado ao suplício sob a acusação de homicídio. Nesse momento, Santo António aparece, demonstra a inocência do seu pai e revela o verdadeiro criminoso, mais tarde punido. Comprovou-se que nesse momento Santo António não havia deixado Espanha.» Kardec justificou-se em compêndio de autor que evidentemente se equivocou, como aconteceu a outros escritores da época relativamente a este facto. [N. da E.]



Igreja de Santo António em Lisboa, erguida sobre a casa onde segundo a tradição nasceu o Santo português.




Local onde, segundo a tradição, nasceu Santo António, em Lisboa, situado na cripta da igreja a si dedicada.


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