«(...)
no que diz respeito ao ritmo e à taxa de participação na construção de uma
ordem mundial racional que podemos esperar de qualquer país ou grupo de países,
somos deixados num campo onde pouco mais há para nos basearmos do que
generalizações conjecturais e dispersas acerca do “carácter nacional”. Estamos
a lidar com massas que podem ser influenciadas enormemente por um jornal
brilhante ou uma figura extraordinariamente persuasiva e cativante ou por
alterações quase acidentais no rumo dos acontecimentos. Por exemplo, eu não
consigo dizer até que ponto a generalidade das pessoas instruídas e capazes do
Império Britânico podem agora abraçar a nossa ideia de aceitar e servir um
colectivismo, nem quão forte será a sua resistência conservadora. É o meu
próprio país e eu deveria conhecê-lo melhor, mas não o conheço com o
distanciamento ou profundidade suficientes para decidir acerca disso. Não estou
a ver como pode alguém prever estas flutuações e reviravoltas nas reacções.
(...) Este vosso escritor acalenta a
ideia de que a compreensão de um propósito comum e uma herança cultural comum
poderá espalhar-se por todas as comunidades anglófonas e não poderá haver mal
nos esforços feitos para lhe dar expressão concreta. Acredita que a dissociação
do Império Britânico pode inaugurar esta grande síntese. Ao mesmo tempo, há
factores a favorecer uma associação mais próxima dos Estados Unidos da América
com as chamadas potências de Oslo. Não há razão para uma destas associações
impedir a outra. Alguns países, como o Canadá, abrigam-se já sob o que é
praticamente uma dupla garantia: este tem a segurança da Doutrina de Monroe e a
protecção da frota britânica.
Uma Alemanha de oitenta milhões de
habitantes que foi levada a aceitar a Declaração dos Direitos do Homem e que
está já altamente colectivizada pode chegar muito mais cedo a um regime
socialista completamente liberal do que a Grã-Bretanha ou França. Se participar
num consórcio para o desenvolvimento das chamadas regiões do mundo
politicamente atrasadas, poderá deixar de estar disposta a novas aventuras
militares e novas tensões e desgraças. Poderá entrar numa fase de recuperação
social e económica tão depressa que estimulará e suscitará a reacção de todos
os outros países do mundo. Não cabe aos outros países ditar a sua política
interna, e se o povo alemão quiser permanecer unido enquanto um só povo, em
estados federados ou num único estado centralizado, impedi-lo de o fazer não é
recto nem avisado.
Os Alemães, à semelhança do resto do
mundo, têm de prosseguir a colectivização, têm de traçar o seu padrão, e não
podem entregar-se a isso se estiverem divididos artificialmente e
desorganizados por um qualquer sistema antiquado do Quai d’Orsay. Têm de fazer
a coisa certa à maneira deles.
As potências atlânticas têm de correr o
risco de a tradição beligerante poder perdurar na Alemanha durante cerca de
mais uma geração. O mundo tem o direito de insistir em que não seja apenas um
governo alemão qualquer, mas as pessoas em geral a reconhecerem, inequívoca e
reiteradamente, os direitos do homem inscritos na Declaração e a exigir que
seja desarmada e que qualquer fábrica de agressão, avião de guerra, navio de
guerra, arma ou arsenal que sejam descobertos no país sejam destruídos de
imediato, brutal e completamente. Mas isso é algo que não se restringirá à
Alemanha. A Alemanha não deverá ser distinguida quanto a isso. O armamento
deverá ser ilegal em todo o lado e uma qualquer espécie de força internacional
deverá patrulhar o mundo à luz do tratado acordado. O armamento parcial é uma
dessas absurdidades caras aos homens “razoáveis” moderados. O próprio armamento
é já uma guerra. Fabricar uma arma, apontar uma arma e disparar são tudo actos
da mesma ordem. Devia ser ilegal fabricar em qualquer lugar da Terra mecanismos
cujo intuito específico é matar homens. Quando se vê uma arma, é razoável
perguntar: “Quem pretende [com] isto matar?!”
O rearmamento alemão pós-1918 foi
tolerado sobretudo por que virava a russofobia britânica contra o medo russo de
um ataque “capitalista”, mas esse pretexto já não pode servir a quaisquer
defensores da guerra entre o seu povo depois do pacto que assinou com Moscovo.
Aliviada dos fardos e das restrições
económicas que dificultaram a sua recuperação após 1918, a Alemanha pode
encontrar um escape satisfatório para a energia dos seus jovens na
colectivização sistemática, elevando o nível da sua vida comum deliberada e
sustentadamente, enviando à Rússia um sinal da sua ineficiência e obrigando a
“política” errática e a inatenção discursiva do mundo atlântico a permanecer
concentrado nas realidades da vida. A ideia de dividir outra vez a Alemanha em fragmentos discordantes de modo a protelar indefinidamente a sua recuperação
final é o sonho de um mandrião pseudodemocrático. Opõe-se diametralmente à
reconstrução mundial. Temos necessidade das qualidades particulares do seu
povo, e quanto mais depressa a Alemanha recuperar, melhor para todo o mundo. É
ridículo retomar a política de atrasar a Alemanha simplesmente para que a velha
ordem possa gozar de mais uns anos de autoindulgência em Inglaterra, em França
e na América.
Um certo receio de agressão militar alemã
pode não ser mau de todo para os Estados menores do sudeste da Europa e da Ásia
Menor, moderando o seu nacionalismo exacerbado e levando-os a trabalhar em
conjunto. A política do homem lúcido devia ser acolher todas as experiências
possíveis de entendimentos internacionais que se duplicassem e sobrepusessem,
quanto mais melhor. Ele tem de vigiar as actividades do seu próprio Ministério
dos Negócios Estrangeiros com um zelo incessante, em busca de sinais daquele
espírito maquiavélico que fomenta a divisão entre governos e povos estrangeiros
e conspira em permanência para frustrar o ímpeto das questões humanas,
convertendo-o num equilíbrio de poder indeciso e vacilante.
Este livro é uma discussão dos
princípios orientadores e não dos infindos problemas específicos de ajustamento
que se erguem no caminho rumo a uma concretização mundial da unidade colectiva.
Lançará uma mera olhadela à velha ideia de Napoleão III, a União Latina, e à
possibilidade de uma situação na América do Sul hispânica e portuguesa semelhante àquela sobreposição da Doutrina Monroe com as metrópoles europeias
que já existe na prática no caso do Canadá; aplicação genuína da Declaração dos
Direitos do Homem na Índia e em África – e em especial naquelas partes do mundo
em que povos mais ou menos negros estão a despertar para as realidades da
discriminação racial e da opressão.
Emitirei de passagem uma advertência
quanto a qualquer tratamento maquiavélico do problema da Ásia Oriental e do
Norte, a que os Britânicos poderão ser levados pela sua russofobia
constitucional. O colectivismo soviético, em especial se se tornar agora mais
liberalizado e mais eficiente graças a uma recuperação da sua obsessão actual
por parte de Estaline, pode espalhar-se muito eficazmente pela Ásia Central e
pela China. Para alguém alimentado mentalmente com as ideias de uma competição
indefinida entre as Potências pela primazia, uma aliança com o Japão, um Japão
tão truculento e militarizado quanto possível, parecerá a resposta mais natural
do mundo. Mas para alguém que compreendeu a realidade da actual situação da
humanidade e a desejabilidade urgente da colectivização mundial, esta
unificação imensa será algo a acolher, criticar e auxiliar.
O antigo papão dos “desígnios russos
para a Índia” pode também, para muitas pessoas, ter um papel na distorção da
situação asiática. Contudo, cem anos de um misto de negligência, exploração e
surtos ocasionais de solicitude genuína deviam ter ensinado aos britânicos que
o destino derradeiro das centenas de milhões de indianos não assenta agora num
governante conquistador, mas completa e unicamente na capacidade de os povos
indianos cooperarem na colectivização mundial. Eles podem entender isso através
do ensinamento e do exemplo da Rússia e do mundo anglófono, mas os dias de mera
revolta ou alívio graças a uma mudança de senhores já findaram. A Índia tem de
descobrir por si própria a sua forma específica de participação na luta por
uma ordem mundial, tendo o raj britânico como linha de referência. Nenhuma potência
externa pode descobrir isso pelos povos indianos, nem forçá-los a fazê-lo, caso
não tenham vontade para tal.
Mas não me alongarei mais nestes problemas e possibilidades em constante mudança. Estes são, por assim dizer, eventualidades e oportunidades à margem do caminho. Por imensos que alguns deles sejam, não deixam de ser secundários. A cada ano, sensivelmente, os canais políticos em constante mudança têm de ser cartografados de novo. As actividades e as respostas do homem lúcido de um país específico e num momento específico serão sempre determinadas pela concepção soberana de um movimento secular rumo a uma única ordem mundial. Esse será o objectivo subjacente e constante de toda a sua vida política.»
H. G.
Wells («A Nova Ordem Mundial»).
O novo mapa do mundo
Este livro trata da
Declaração dos Direitos, que é a resposta adequada e necessária das civilizações
atlânticas à necessidade cada vez mais urgente de uma colectivização social e
económica. É nisto que o livro se concentra.
Não vou aqui discutir se esta Declaração incorpora o espírito do cristianismo ou se deve alguma coisa ao cristianismo, nem debater qualquer questão deste género. Alguns correspondentes declaram que é simplesmente cristianismo. Muitos católicos apostólicos romanos atacam ferozmente as suas ideias fundamentais. Fico contente por descobrir que é cristianismo e, embora eu não professe essa religião, por trabalhar ao lado dos que o fazem. E se disserem que incorpora o espírito do islamismo, do judaísmo, do budismo, do bahaísmo ou de qualquer outro ismo, também não me importo. Qualquer pessoa que aceite a Declaração é minha aliada e concidadã. Não irei aqui discutir as crenças que passam este teste. Tão-pouco abordarei aqui o outro aspecto da nossa situação mundial e tentar demonstrar a necessidade imperiosa de uma colectivização dos assuntos humanos. Tratei disso, de forma tão resumida e fundamental quanto possível, em The Fate of Homo Sapiens e em The New World Order. Não posso resumir mais estes argumentos muito concentrados.
De forma simples, sou um revolucionário extremo. Embora a retórica e a emoção me desagradem bastante, a minha razão obriga-me a ser extremo. Não penso que seja possível continuar com o modo de vida que prevalece hoje em todo o mundo, com os governos soberanos que temos e com práticas económicas que prevalecem. Estes governos soberanos não nos deram mais do que guerras inconclusivas numa escala cada vez maior, e temos de nos livrar deles todos. De todos. Não é do actual governo alemão que tentamos livrar-nos; é de todos os governos deste tipo, incluindo, muito explicitamente, do nosso. Temos de nos livrar destes governos e substituí-los por um sistema mundial, e só isto é a revolução mundial. Além disso, temos de nos livrar dos métodos de exploração das vantagens naturais, do controlo das empresas e da finança, que, no meio de uma possível abundança, nos deixa, quase a todos pobres e necessitados, suados e aborrecidos. Isto também se aplica à má administração da Rússia e dos Estados totalitários, bem como à luta caótica pelo lucro dos chamados países capitalistas. Nas suas variadas maneiras, todos destroem e devastam a vida. O senso comum da humanidade revolta-se contra estas coisas e fica cada vez mais impaciente com elas.
À medida que os anos
passam, isto torna-se cada vez mais claro no nosso espírito. Cada vez mais
pessoas percebem que temos de reunir os nossos assuntos numa organização unificadora
nova e muito melhor se não quisermos enfrentar uma desintegração social total.
Sofremos numa revolução vagarosa e incompleta, porque é vagarosa, renitente e
incompleta. O facto de os movimentos revolucionários, até agora, terem
fracassado e terem sido frustrados não é um argumento contra a revolução. É um
argumento para uma revolução melhor e mais ousada.
Durante décadas, a
agitação política e revolucionária do mundo consumiu-se em fórmulas inseguras e
insuficientes, das quais a ideia da Sociedade das Nações e o marxismo
estalinista e leninista são exemplos típicos. Nenhum destes esquemas, originados
pelos conflitos de 1914-18, foi pensado de forma suficientemente sólida e ousada;
conduziram-nos a onde estamos agora; nada ganham em dignidade pelo facto de o
seu fracasso ter sido mundial, sangrento e dispendioso em tempo e felicidade
humana. A Sociedade das Nações está claramente a dar lugar, em muitas
esperanças e imaginações dos homens, àquilo que é agora um gesto ainda menos
substancial e pouco criativo, a ideia de Federação. Talvez venha a ser qualquer
coisa; mas, actualmente, não passa de uma aspiração piedosa. Em The New World Order, mostrei como isso
era provisório e insubstancial e que muito seria preciso acrescentar-lhe antes
de ser proposta às pessoas, mesmo como primeiro passo para a racionalização
mundial. No mesmo livro, também submeti o comunismo, visto como projecto de uma
nova ordem mundial, a uma afirmação destrutiva do óbvio. Estas duas coisas – a Sociedade
das Nações e o comunismo – perderam igualmente a coragem e fracassaram. Nunca
poderemos regressar a elas. Acabaram e
temos de seguir em frente.
No entanto, já não é
necessário pulverizar as pretensões do comunismo à liderança mundial. Foram
pulverizadas para sempre pelo Senhor Molotov, o ministro dos Negócios Estrangeiros
russo. Declarou que a URSS tinha a sua própria «ideologia» e que não iria interferir
nas «ideologias» dos outros Estados. Fecha-se assim a história revolucionária
do mundo. Os comunistas que trabalham para ela noutros países não passam agora
de agentes de propaganda de uma potência estrangeira.
Assim, as ideias da
reorganização mundial fundamental e da derradeira unidade mundial regressam,
para serem refrescadas e renovadas, às terras e aos povos nos quais nasceram
originalmente. Nós, do Mundo Ocidental, que pensamos e falamos livremente,
temos de recuperar a revolução mundial onde Estaline e Molotov a deixaram. Sem
palavras de ordem nem verborreias, temos de reunir as forças da reconstrução
humana. A batalha pela regeneração mundial entra numa nova fase. Estas
primeiras vagas de ataque já foram tão longe quanto podiam; esperam reforços e
uma nova formação.
A socialização é um
processo intrincado, multifacetado e variável. Em The New World Order, fiz o meu melhor para descrevê-la de um modo geral.
Mas esta Declaração dos Direitos é um implemento necessário para reunir e
controlar todas as operações de expropriações, reapropriação, etc., que são
essenciais para a grande mudança. É um implemento absolutamente necessário. E é
possível pô-la em movimento de imediato. Podemos largar este livro e começar.
Em toda a parte, grupos e indivíduos podem levá-la à atenção dos seus
candidatos e representantes parlamentares, das suas organizações sociais e
políticas, dos seus dirigentes públicos, das suas administrações e dos seus
governos. Podem insistir. Podem dizer: «É isto que defende e, em caso negativo,
porque não? Diga-nos explicitamente o que não quer apoiar. De outro modo, recusamos
acreditar em si. Denunciá-lo-emos. Desacreditaremos, denunciaremos e
derrotaremos tudo o que estiver a fazer.»
Muito em breve, esta proposta de declaração, que, embora radical, nada contém realmente de novo ou de surpreendente, que apenas reúne e incorpora numa declaração simples algumas ideias gerais praticamente funcionais e activas nas nossas comunidades democráticas, poderá vir a ser o critério explícito dos nossos objectivos de guerra e a ideia directriz de todos os nossos esforços. Pode recuperar-nos a todos. Uma vez realmente lançada, alastrará ao mundo. Insistirá em si mesma. Alastrará aos países neutrais e inimigos. Encontrará aliados aí e em toda a parte. Depois de ter começado a ser impressa, reimpressa e discutida, desafiará todas as censuras. Ninguém pode invocar um direito de autor restritivo numa declaração de importância pública fundamental, tão organizada e compacta. Será a espinha dorsal da nova revolução em toda a parte.
(In H. G. Wells, Os Direitos do Homem, E-Primatur, 1.ª edição, Março de 2020, pp. 121-127).
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