quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Vestígios da Passagem dos Portugueses no Japão (i)

Escrito por Wenceslau de Moraes





Símbolo da família de Ieyasu Tokugawa



«Ieyasu acreditava evidentemente que a estabilidade e a ortodoxia impostas eram importantes para o controlo permanente. As mudanças eram indesejáveis, porque eram difíceis de prever. A mobilidade era uma ameaça. Quanto mais as pessoas agissem de modos determinados e prescritos menos constituiriam uma ameaça. Não agir como era desejado era até punível com a morte. Diz-se que Ieyasu definiu o "comportamento mal-educado" - pelo qual um samurai poderia cortar a cabeça ao herege - como "agir de uma maneira diferente-do-que-era-esperado".

Ieyasu morreu de doença no ano seguinte, 1616, e foi deificado como a manifestação do Buda da Cura. Em que medida teria curado a nação era matéria algo controversa, mas terá ajudado, certamente, a mantê-la única.

A sua política de ortodoxia e estabilidade foi prosseguida pelo seu filho Hidetaka e pela maioria dos seus sucessores, que eram todos da linhagem Tokugawa. Em muitos casos, era possível desenvolver apenas as políticas já postas em execução por Hideyoshi.

Os regulamentos das famílias militares foram em breve seguidos por regulamentos para outras classes. Estes prescreviam não apenas matérias como o tipo e o local de trabalho e residência e o tipo de vestuário, mas pormenores, como o género de presentes que uma pessoa pertencente a uma determinada classe poderia dar aos seus filhos, segundo o sexo e a idade, que tipo de alimentos poderia comer e mesmo onde poderia construir os seus lavabos.

O congelamento das classes sociais por parte de Hideyoshi foi um meio importante para impor a ortodoxia e a estabilidade. Tal congelamento era agora alargado a um sistema hierárquico formal, inspirado na China, conhecido como shi-no-ko-sho, ou seja, "guerreiro-camponês-artesão-mercador", por ordem decrescente de estatuto. Os camponeses estavam num nível superior aos dos artesãos e ao dos mercadores, porque, em termos confucianos, eram considerados produtores essenciais. Em cada classe, em particular na dos samurais, havia muitos subníveis.


Confúcio (551-479 a. C.).


Nobres da corte, sacerdotes e monjas não estavam inseridos em nenhuma das classes, enquanto abaixo destas havia duas subclasses "párias", a eta ("grande porcaria", actualmente burakumin ou "pessoas dos lugarejos") e a hinin ("não pessoas"). Dedicavam-se quer a actividades "impuras" desprezadas, como o abate de animais, trabalhos em cabedal e enterros, quer a actividades "suspeitas" como a venda ambulante ou o teatro. As burakumin continuam até hoje a ser segregadas em relação à sociedade dominante.

Em teoria a classe era determinada pelo nascimento e a mudança de classe era difícil, embora, na prática, não fosse impossível, ao contrário do que em geral se crê. Umas das separações mais importantes era a que existia entre os samurais e os não-samurais. Os samurais representavam apenas cerca de 6% da população e incluíam sobretudo burocratas, porque, de facto, foi nisso que se tornaram. Os não-samurais estavam basicamente divididos entre os que viviam no campo e os que viviam nas cidades.

Os Tokugawa também apreciavam a politica de redistribuição de domínios (han) posta em prática por Hideyoshi. O próprio xógum possuía cerca de um quarto da terra cultivada, bem como cidades importantes, portos e minas. A terra restante estava estrategicamente dividida entre cerca de 275 dáimios, dependendo de serem shinpan (familiares), fudai (servidores tradicionais) ou tozama ("dáimios exteriores", de lealdade duvidosa). Embora os números oscilassem, havia, em geral, 25 shinpan, 150 fudai e 100 tozama.

O dáimio também não podia sossegar depois de lhe ser atribuído um domínio. Embora lhe fosse concedida, em teoria, uma considerável autonomia em matérias como direitos fiscais e administração interna, incluindo o poder de fazer cumprir a lei, na prática devia seguir os exemplos e as linhas traçadas pelo xogunato. Este fiscalizava constantemente o seu comportamento. Ao menor sinal de insubordinação, era castigado. Nos primeiros 50 anos de governo Tokugawa, nada menos de 213 dáimios, ou seja, a maioria, perderam parte ou a totalidade dos seus domínios por delitos reais ou supostos. No mesmo período de tempo, foram atribuídos domínios a 172 novos dáimios em recompensa por serviços leais, 206 domínios foram aumentados por recompensa semelhante e 281 dáimios foram transferidos de lugar.

A prática de Hideyoshi de conservar como reféns as famílias de dáimios potencialmente causadores de problemas foi transformada num sistema conhecido como sankin kotai (presença alternada). Com apenas algumas excepções, este sistema obrigava cada dáimio a passar, alternadamente, um ano em Edo e um ano no seu domínio, enquanto a sua família residia permanentemente em Edo. A grande despesa envolvida na manutenção de uma residência em Edo e outra no seu domínio e em deslocações regulares de e para Edo com o exigido número de servidores também contribuía para evitar que os dáimios acumulassem demasiado poder financeiro. De facto, consumiam nisso metade ou mais do seu rendimento. Eram também obrigados a viajar não só em datas específicas, mas segundo itinerários igualmente específicos, que estavam sempre guardados por tropas do xogunato.



Tokugawa Iemitsu (1604-1651).



As medidas tomadas pelos Tokugawa para restringir a mobilidade e limitar a possível instabilidade entre a população em geral incluíam:

- fiscalização das viagens por terra, devendo ser obtidos documentos de viagem oficialmente aprovados e mostrados nas barreiras entre os domínios;


- sistema de recolher obrigatório, que evitava que as pessoas se deslocassem de noite sem uma autoridade adequada, especialmente fora das suas próprias praças-forte citadinas;


- destruição da maioria das pontes, dirigindo assim os fluxos e tornando-os mais controláveis;


- proibição do transporte em veículos com rodas;

- uso de polícia secreta para informar sobre quaisquer movimentos ou acontecimentos suspeitos.

O castigo dos transgressores era geralmente severo, em especial dos que residiam nas cidades mais importantes do território controlado directamente pelos Tokugawa. Eram frequentes as execuções por roubos insignificantes ou até por negligência quando deixavam que a casa se incendiasse, dado que os fogos eram particularmente perigosos em comunidades constituídas sobretudo por casas de madeira. Famílias inteiras, e até vizinhos, eram por vezes executadas a par do prevaricador, porque o princípio de Hideyoshi da responsabilidade colectiva era rigorosamente aplicado. Em particular, os chefes de família e as associações de vizinhos eram considerados responsáveis pelos maus actos dos seus membros.

Os castigos na Europa desse tempo eram também severos pelos padrões actuais, mas a severidade dos do Japão era suficientemente grande para chocar muitos europeus que então o visitavam. O francês François Caron, que permaneceu muitos anos no Japão, na primeira metade do século XVII, escreveu que "os seus castigos são assar, queimar, crucificar das duas maneiras, esquartejar com quatro bois e ferver em óleo e água". Um visitante italiano, Francesco Carletti, relatou o seguinte:

"[...] muitos sofriam crucifiçação ao menor pretexto, como o roubo de um rabanete [...] Por vezes crucificavam as mulheres com crianças ao peito, deixando-os morrer agonizando juntos. Os seus castigos são, de facto, extremamente cruéis, bárbaros e desumanos [...]".

Nenhum dos dois fala da decapitação, que não era invulgar, mas esta não era a utilização última da espada nos plebeus executados. Numa prática conhecida como tameshigiri ("corte experimental"), os samurais verificavam a eficácia das suas espadas nos cadáveres dos criminosos que eram executados, pois, como diz Carletti, o "infeliz corpo é cortado às fatias, sendo ali deixado para pasto dos cães e das aves". Uma boa lâmina podia cortar ao meio três cadáveres com um só golpe, sendo de sete o recorde - e o teste não se limitava aos cadáveres.









Toshishiro Obata (ver aqui).



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Ver 1 e 2






Shihan Fumio Demura




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Ver 1 e 2







Os samurais e os nobres condenados sofriam, por vezes, o mesmo destino, mas, em muitos casos, era-lhes concedido o "privilégio" de se suicidarem, numa estripação ritual conhecida como seppuku ou haraquiri ("corte do estômago"). Esta prática iniciou-se no Período de Heian e visava mostrar a pureza da alma da vítima, que se supunha residir no estômago [três dedos abaixo do umbigo]. Nesta época, era muitas vezes ritualizada, ou mesmo simulada, com a cabeça da vítima a ser cortada por um amigo respeitado, imediatamente a seguir à incisão.

A severidade dos castigos estabelece um contraste interessante com a relativa brandura do sistema ritsuryo, quase mil anos antes, e aponta para a diferença existente entre o poder da corte e o poder marcial. Por outro lado, contudo, o castigo continuava a basear-se na desobediência e no carácter de ruptura, e não só no juízo moral.

O princípio do castigo colectivo tornava as pessoas muito cautelosas relativamente à admissão de estranhos no seu seio. Em todo o caso, numa época de deslocações controladas os estranhos já eram suficientemente suspeitos, mas quando uma comunidade podia ser punida ou até serem executados todos os seus elementos pelos maus actos de um estranho, tinha todo o sentido não os aceitar de modo nenhum. Este facto teve uma considerável influência na relutância generalizada que os Japoneses sempre manifestaram em se envolverem com estrangeiros.

Os castigos colectivos e severos eram também aplicados, em teoria e, por vezes, na prática, nos campos dos domínios dos dáimios, mas aqui a vida era frequentemente mais fácil. Era-o porque muitos dáimios davam-se por satisfeitos por não interferirem nos assuntos das aldeias dos seus domínios, desde que os seus impostos colectivos fossem pagos e não houvesse incumprimentos ou desafios evidentes à lei. A disciplina nas aldeias era geralmente deixada ao seu chefe ou ao seu conselho, excepto em casos graves, e os castigos tomavam geralmente a forma de uma multa ou da imposição de um dever, sendo o ostracismo um dos piores.











Por isso, os aldeãos procuravam assegurar-se de que apresentavam uma aparência tranquilizadoramente pacífica e inofensiva aos funcionários do dáimio, independentemente do estado de turbulência real em que a sua aldeia pudesse estar. Esta ideia de "expressão aparente" de deferência seria outro legado importante para o Japão contemporâneo. Constitui outro elemento da relação entre autoridade formal e verdadeiro poder e também da distinção que os Japoneses sempre fizeram, e frequentemente observada, entre aparência exterior (omote ou tatemae) e realidade interior (ura ou honne). Quem aparentasse "comportar-se na linha" e respeitar a autoridade e não causasse, de facto, nenhuma desordem seria provavelmente deixado em paz e talvez lhe fosse mesmo permitida alguma "liberdade dentro de certos limites". O mesmo podemos dizer do Japão actual».

Kenneth Henshall («História do Japão»).





Vestígios da Passagem dos Portugueses no Japão


A colónia portuguesa, estabelecida no Japão, reduz-se hoje (1) a dois funcionários (se tanto) - um ministro e um cônsul -, algumas dezenas de macaenses e descendentes de macaenses, ocupando geralmente modestas situações nas firmas estrangeiras. Mercê do seu exotismo gracioso e das encantadoras aparências da paisagem, o Japão é um país largamente frequentado por estranhos, por touristes; pois os touristes portugueses resumem-se anualmente a uma meia dúzia de indivíduos, vindos da China em curta visita de passeio, ou, como funcionários, transitando entre Macau e a metrópole, via América. Quanto a relações mercantis entre Portugal e o Japão, não passam elas ainda de meras tentativas, indolentemente mantidas e de êxito duvidoso. Quando a gente se ponha a pensar em tudo isto, parece quase inverosímil - mas está a História a afirmá-lo - que houvéssemos sido nós, portugueses, que descobrimos, por meados do século XVI, o Nippon ao mundo ocidental, encetando imediatamente íntimas relações com os nipónicos, reservando-nos o exclusivo tráfego europeu com o império e sendo mensageiros de um novo credo, a religião cristã, que implantámos, exercendo em curtos anos uma brilhantíssima catequese.

Chegada dos Portugueses ao Japão ('Arte Namban').























Bem curtos anos foram, com efeito - cerca de oitenta. Passámos, para rapidamente desaparecermos. Fomos um meteoro social. No entretanto, esta passagem deveria ter deixado aqui, na exótica civilização que de surpresa devassávamos, vestígios inequívocos da sua acção prestigiosa. E deixou-os. O que acontece é que, desinteressados do Japão, como de todo o Oriente, e acalmada a febre aventureira que nos criou lugar proeminente na vida mundial, pouco ou nada nos importa agora o estudo crítico do rasto dos nossos próprios feitos, embora o assunto se mostre cativante; abandonando a tarefa a outros, a estranhos, cujas apreciações pecam por vezes por falta do critério e pouca lealdade.

As linhas que vão seguir-se referem-se aos vestígios que apontei. Não têm porém a pretensão, nem por sombras, a um estudo sério do assunto; são simples notas avulsas, reunidas ao acaso, com o único intuito de irem despertar algum interesse, sem demasiado enfado - por serem breves -, a leitores da minha terra.

Em 1542 (a data é um tanto discutida), os portugueses descobrem o Japão ao mundo do Ocidente. Em 1549, o missionário jesuíta Francisco Xavier, espanhol de origem, mas servindo os portugueses, desembarca no Japão, em Kagoshima, e enceta a sua propaganda religiosa, seguido de perto por outros nossos missionários e por numerosos mercadores. Em 1587, dá-se a primeira perseguição contra os cristãos. Em 1597, em Nagasaki, vinte e seis cristãos perecem em martírio. Em 1624, após lutas cruentas, tragédias e massacres, o Japão fecha à cristandade as suas portas, com excepção dos holandeses, que aceitam, a troco de proventos mercantis, uma humilíssima condição de quase cativeiro, encerrados na ilhota de Deshima, no porto de Nagasaki. Durante 229 anos, o império mantém-se, pode dizer-se, incomunicável. Em 1853, um comodoro americano, Perry, fundia a sua esquadra cerca das águas de Yokohama; é o primeiro passo para um reatar de relações, que marcam a extraordinária evolução efectuada no país durante os últimos cinquenta anos, bem conhecida de nós todos.







Comodoro Perry



Começando pela data do nosso advento ao solo japonês, é curioso observar que não restam de facto informações precisas. Não admira, todavia. Não podemos comparar este advento a uma verdadeira descoberta, como a da América, por exemplo. Desde os primeiros anos do século XVI, eram-nos familiares os mares do Extremo Oriente; conhecíamos a Formosa, o arquipélago do Luchú (Ryûkyû em japonês), as costas da Coreia; portugueses e japoneses deviam encontrar-se amiudamente no mar e em terras asiáticas, sem disto fazerem grande caso; e a uma ou outra das inúmeras ilhas do Japão, corridos com o mau tempo, alguns dos nossos teriam abordado por ventura, precedendo Mendes Pinto, que por seu turno a elas abordou, trazido por uma tempestade.

Note-se, como circunstância interessante, que o nome de Mendes Pinto não figura nas velhas crónicas nipónicas. Num livro da época de Keicho (1596-1615), citado como a melhor autoridade japonesa no assunto, menciona-se que no 25.º dia da 8.ª lua do ano 12.º de Tembum (23 de Setembro de 1543), chegou ao porto de Tanegashima (cerca de Kagoshima) um grande navio tripulado por estranha gente de equipagem, sendo dois dos seus chefes Francisco e Kirishita (Cristovão?) da Mota. Descreve-se em seguida com minuciosa ingenuidade, as espingardas que os estrangeiros possuíam, a que chamavam téppô (talvez por onomatopeia), de entre as quais os habitantes do lugar compraram duas, por alto preço, aprendendo a usar delas e depois a fabricá-las. O nome de tanegashima, em memória do local, ainda hoje é empregado para indicar as antigas espingardas japonesas - agora artigos de museu -, iguais às nossas escopetas; e téppô é o termo corriqueiro de qualquer arma de fogo. Assim, na língua, ficou o documento persistente do grande acontecimento que os portugueses trouxeram ao Japão: a introdução das armas de fogo, as quais impuseram desde logo importantíssimas modificações na táctica da guerra e na construção dos shiró, os castelos, alguns dos quais ainda hoje de pé.



















A nossa influência no Japão, limitada ao período de 1542-1624, foi essencialmente religiosa e mercantil. Considerando-a pelo lado religioso, começo por dizer que não ficaram dela monumentos, no sentido usual desta palavra. A madeira, que é aqui o material empregado na construção dos edifícios, a custo poderá resistir até aos nossos dias. Mas não foi a acção do tempo que derrubou os templos cristãos; foi a cólera dos Shoguns, dos generalíssimos, os quais, expulsando ou massacrando os missionários, os mercadores e os convertidos, ordenavam ao mesmo tempo a destruição de todos os vestígios que pudessem recordar a religião da cruz. O rigor da censura subiu a ponto tal, que nem foram permitidas, em livros, as mais ligeiras referências ao assunto; nem os termos que designavam os cristãos, os estrangeiros, podiam ser escritos; o que explica a escassez de documentos literários que o Japão oferece em tal matéria.

O fervoroso padre Francisco Xavier, desembarcado em Kagoshima, visitara seguidamente Hirado, Yamaguchi, Quioto (a capital); efectuando milagres numerosos, segundo rezam as crónicas, e convertendo nobres, e convertendo bonzos, e convertendo o povo. Outros jesuítas portugueses seguiram-lhe o exemplo, juntando-se-lhes após os frades espanhóis. Em 1582, a inteira ilha de Amakusa, grande parte das ilhas de Goto e dos daimyatos de Omura e de Yamaguchi são cristãos, contando-se umas seiscentas mil almas convertidas. Embaixadas japonesas vão a Roma, prestar obediência ao chefe supremo da Igreja, e passam por Lisboa. No começo do século XVII, cerca de um milhão de católicos, espalhados por todo o império, representam a cristandade japonesa. E é pouco após que, por ordem de Hideyoshi, de Iyeyasu e dos Shoguns que foram sucedendo na dinastia Tokugawa, as perseguições começam. Inauguram-se e prosseguem os massacres, os martírios, os terríveis decretos repressivos, é arrasada a obra inteira de missionários portugueses e a religião cristã julgada um crime, sendo expulsos ignominiosamente os estrangeiros. Foi então que muitos japoneses convertidos fugiram para Macau, onde deixaram traços - de raça, de costumes, de linguagem - reconhecíveis até hoje.

Agora é tempo de aludir, de relance, ao vestígio mais comovente, mais enternecedor e mais inesperado, que ficou da nossa passagem no Japão. Após a vinda do comodoro americano, o Nippon ia reabrindo pouco a pouco as suas portas aos estranhos, não de bom grado, mas à força. Redigiram-se e ratificaram-se tratados. Uma missão católica, francesa, estabeleceu-se no império. Em 1862, uma igreja foi erigida em Yokohama. Em Janeiro de 1865, uma outra, a igreja dos Vinte e Seis Mártires, elevou-se em Nagasaki. Ora, no dia 17 de Março de tal ano, em Nagasaki, um grupo de doze ou quinze japoneses - homens, mulheres e rapazio - juntava-se à porta da igreja. Surpreso, o padre Petitjean abriu a porta, entrou com eles, ajoelhou junto do altar e pôs-se a orar. Então, três mulheres, já idosas, aproximaram-se do padre; e uma delas, com as mãos sobre o peito e falando muito de manso, como se receasse que as paredes tivessem ouvidos para escutá-la, disse-lhe que o coração dela e os corações de todos os presentes eram iguais ao seu, ao coração do padre... Petitjean, comovido, perguntou-lhe de onde vinham. Vinham de Urukami, aldeia próxima. E a velha acrescentou: «Santa Maria no go zô wa doko?» - (onde está a nobre imagem de Santa Maria?).


Desvendava-se um interessantíssimo mistério. Todas as perseguições, todos os martírios, todos os decretos repressivos, toda a espionagem exercida contra o cristianismo, durante dois séculos e meio, não haviam logrado extirpá-lo do Japão. Embora sem padres e sem templos, as crenças persistiam, em famílias contadas por milhares. Em Urukami, em Goto, em Nagasaki e noutros pontos os cristãos pululavam, praticando o culto como melhor podiam, a ocultas; de quando em quando, denunciados por espiões às autoridades do local, alguns pagavam com a vida a constância na fé dos seus avós. Gente simples e rude - pescadores, camponeses -, aqueles pobres crentes faziam recordar de certo modo os primeiros discípulos de Jesus, unidos como irmãos pelo prestígio de uma ideia, sofrendo pelo mártir de Golgotha. Em cada um dos grémios secretos dos cristãos, havia um indivíduo que exercia o cargo hereditário de baptizar as criancinhas, conhecendo, mais ou menos, as práticas latinas usadas em tais casos. Todos aqueles japoneses possuíam, além do seu nome nipónico, dado a registos oficiais e correntemente conhecido, um nome cristão, de baptismo, para uso íntimo, apenas balbuciado em confidência; um era Paoro (Paulo), outro Domingo (Domingos), outro Rorenzo (Lourenço), outro Mikeru (Miguel), uma mulher chamava-se Iwana (Joana), uma rapariga tinha o gracioso e ingénuo nome de Izaberina (Isabelinha). Sabiam de cor, em latim, o Padre-Nosso, a Ave-Maria, a Salve-Rainha; tinham livros de orações, rezavam juntos, comemoravam o Natal, a Páscoa, guardavam os domingos; benziam-se à portuguesa, o que a princípio deu muito que pensar ao padre Petitjean, que se benzia à sua moda. Os missionários franceses encontraram uma gentil pintura, representando a Virgem, uma bela cruz de cobre e outras relíquias; muitas famílias possuíam uma lembrança qualquer dos padres portugueses, legada de pais a filhos, e destes a netos e a bisnetos - às vezes uma simples conta, destacada de um rosário.

Em plenos meados do século XIX, ressurgiram, por algum tempo, as perseguições contra os cristãos; alguns deles, fracos de espírito ou postos a tortura, fizeram pública apostasia; outros - o grande número - distinguindo-se entre eles o septuagenário Domingos Zenyemon, mostraram nobre firmeza em suas crenças. Mas, mercê da intervenção dos diplomatas estrangeiros, e também do espírito da época, tudo cessou em breve; a liberdade dos cultos assentava arraiais no país do Sol Nascente (in «O Culto do Chá», Relógio D'Água Editores, 2008, pp. 63-69).


(1) Este texto foi escrito em 1925.



Cristãos japoneses ("kirishitan") em trajes portugueses.



Livro kirishitan em japonês do século XVI.


Continua


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