Estátua equestre de Genghis Khan, situada a 50 km de Ulaan Baatar, a capital da Mongólia. |
Monumento a Genghis Khan em Hohhot (Mongólia). |
O primeiro ataque deu-se em Novembro de 1274. Como se esperava, deu-se no Noroeste de Kyushu. Nesta ocasião, Kublai Khan enviou cerca de 900 navios, a partir da Coreia, com uns 40 000 homens. Desembarcaram em Hakata e os invasores obrigaram imediatamente os defensores Japoneses a recuar. No entanto, em vez de continuarem a pressionar, as forças mongóis retiraram nessa noite para os seus navios. Pouco depois, estes foram bastante danificados e perderam-se bastantes vidas humanas entre os que estavam a bordo quando rebentou um violenta tempestade. Os invasores, reduzidos a dois terços, retiraram para a Coreia.
Os Japoneses ficaram alarmados com a sua própria inferioridade em termos de armas e de tácticas de cavalaria, pelo que reforçaram a sua preparação na expectativa de um segundo ataque.
A força invasora mongol de Junho de 1281, que desembarcou, uma vez mais, em Hakata, era muito maior. Compreendia nada menos do que 4400 navios de guerra e 140 000 homens. Kublai Khan já tinha assegurado a sua vitória sobre os Sung, em 1279, tornando-se o fundador de uma nova dinastia de governantes na China. Tinha também sofrido o ultraje da decapitação dos seus enviados ao Japão, em 1275 e, de novo, em 1279. Desta vez, estava determinado.
Contudo, por importantes que fossem as forças mongóis, defrontaram uma firme resistência e foram incapazes de assegurar uma base de penetração eficaz. Chegaram reforços do Sul da China, algumas semanas mais tarde, mas quando os invasores estavam a planear um ataque combinado de envergadura, ocorreu outra tempestade, um tufão, e destruiu a maior parte da sua frota. Uma vez mais, foram forçados a recuar, tendo perdido desta vez mais de metade dos seus homens.
As duas derrotas mongóis ficaram a dever-se, em parte, à enérgica resistência dos Japoneses e, em parte também, por terem recorrido a tropas chinesas e coreanas, recentemente subjugadas, que eram pouco dedicadas à causa mongol. Porém, as duas tempestades também tiveram uma influência inegável e importante para o resultado da luta. O ventos das tempestade ficaram conhecidos como shimpu ou kamikaze, literalmente, "ventos divinos", reflectindo a crença japonesa de que o Japão era a terra dos Deuses e que tinha sido protegido por eles. A mesma palavra seria usada mais tarde, durante a II Guerra Mundial, para designar os pilotos suicidas que davam a sua vida pela mesma causa: proteger o país.
Kublai Khan não desistiu de invadir o Japão e planeou um certo número de ataques posteriores. Em todas as ocasiões, foi disso desviado pela instabilidade nalguma parte do seu império. Os Japoneses sabiam do seu propósito e mantiveram o alerta pelo menos até à sua morte, em 1294, depois da qual o interesse mongol pelo Japão parece ter-se desvanecido.
Quer as vitórias, quer a sobrevivência do Japão resultaram de uma combinação de espírito de luta, do seu lado, com má organização e baixo moral, da parte do inimigo, e mera boa sorte, Não há dúvida de que o mesmo se pode dizer da maioria das vitórias militares de todas as épocas e lugares, mas, no caso japonês, beneficiaram particularmente da sorte e das circunstâncias.
(...) Em termos de táctica de cavalaria, os Japoneses tinham pouca ou nenhuma experiência, porque os seus cavaleiros combatiam isoladamente, não em grupos. O tema das armas levanta uma das questões mais intrigantes, mas também mais ignoradas da história japonesa. Pinturas em rolos desta época [séc. XIII] mostram, sem sombra de dúvida, que os Mongóis possuíam canhões, embora primitivos. Todavia, não consegui encontrar nenhuma explicação para o facto de os Japoneses não tentarem construir as suas próprias versões. A maioria das histórias apenas afirma que as primeiras armas de fogo foram introduzidas no Japão pelos Portugueses, em meados do século XVI. Como os Japoneses dessa época posterior desenvolveram imediatamente as suas próprias armas de fogo, numa clara demonstração das qualidades de adaptação que lhes são amplamente reconhecidas, e dada a importância de se prepararem melhor para o segundo ataque mongol, é misterioso que, aparentemente, nenhuma tentativa tenha sido feita para adaptar ou, simplesmente, para imitar as armas mongóis.
Chegada dos Portugueses ao Japão (Biombo de Namban). |
Portugueses no País do Sol Nascente |
Téppô |
Kagemusha de Akira Kurosawa |
(...) Em 1549, apenas seis anos depois da introdução [das armas de fogo] pelos Portugueses, Nobunaga tinha comprado 500 espingardas de mecha para as suas tropas quando era ainda um comandante adolescente. No entanto, apesar de alguns melhoramentos por parte dos artesãos japoneses, o seu uso efectivo nas batalhas foi retardado durante alguns anos devido a problemas como a demora em carregá-las e dispará-las. Outros dáimios, como Tanegashima Tokitaka (1528-1579) e Takeda Shingen (1521-1573), pai de Katsuyori, tinham uma paixão semelhante pelas armas de fogo, mas parece que Nobunaga foi quem mais as usou. A batalha é representada, embora com alguma liberdade poética, no famoso filme Kagemusha [1980] de Akira Kurosawa. (...) Permanece ainda o enigma de saber por que razão os Japoneses não tentaram produzir armas de fogo três séculos antes, quando viram versões primitivas a ser usadas pelos Mongóis.
(...) Foi na particularmente agitada Época dos Sengoku que os ocidentais apareceram pela primeira vez no Japão. Em Setembro de 1543, um junco chinês, desviado da sua rota para Ningpo (Ningbo), na China, acostou à ilha de Tanegashima, a sul de Kyushu. A bordo seguia a tripulação chinesa e três mercadores portugueses. Traziam consigo armas de fogo mais sofisticadas do que as dos Mongóis alguns séculos antes e em breve seriam adoptadas e fabricadas por alguns senhores da guerra japoneses. Trouxeram também as primeiras doutrinas do cristianismo, o qual seria mais sistematicamente introduzido em 1549 pelo jesuíta Francisco Xavier (1506-1552, mais tarde declarado santo).
Estes primeiros europeus encontraram uma terra dilacerada pela guerra civil, uma terra de senhores da guerra que não reconheciam nenhum governo central e que simplesmente açambarcavam tantos feudos vizinhos quantos podiam, pela força das armas ou à traição. Era uma terra que necessitava desesperadamente de ser reunificada.
(...) Aliás, em breve o país seria reunificado. Esta reunificação ficou a dever-se, em grande medida, aos feitos acumulados de três chefes militares sucessivos, Oda Nobunaga (1534-1582), Toyotomi Hideyoshi (1536-1598) e Tokugawa Ieyasu (1542-1616). Cada um tinha o seu próprio método, que reflectia a sua própria personalidade. Há um velho ditado no Japão que diz que, se uma ave canora não cantasse, Nobunaga matá-la-ia, Hideyoshi persuadi-la-ia a cantar e Ieyasu simplesmente esperaria que cantasse.
Oda Nobunaga (1534-1582). |
Símbolo da família de Oda Nobunaga |
Toyotomi Hideyoshi (1536-1598). |
Tokugawa Ieyasu (1542-1616). |
(...) Nobunaga era um homem extraordinário. Era o último senhor da guerra, sem rival no que tocava à brutalidade e interesses próprios. Matou elementos da sua própria família (como o seu irmão mais novo, Nobuyuki, em 1557), mas isso não era nada de especial. O que era especial era o seu hábito de queimar vivos os inimigos vencidos, que chegaram a totalizar cerca de 20 000, incluindo os civis que fossem apanhados durante o massacre. Tinha uma inclinação especial para massacrar sacerdotes budistas, porque os considerava incómodos e ameaças potenciais, por ter havido revoltas populares de inspiração budista nos cem anos anteriores, aproximadamente. Se, por um lado, os budistas representavam uma ameaça potencial, por outro, não tinham poder suficiente para merecerem qualquer tentativa de reconciliação da sua parte. Preferia tentar destruí-los.
Os visitantes estrangeiros da altura ficaram surpreendidos não apenas com a crueldade e a natureza implacável de Nobunaga, mas com o seu ego impressionante. Chegou a erigir um templo onde se lhe podia prestar culto e fez do dia do seu aniversário feriado nacional. Pode ter sido por acreditar na sua superioridade absoluta que não procurou legitimar-se com o título de xogum ou outro semelhante, porque o teria colocado num posição teoricamente inferior a quem lho conferisse. Na realidade, o seu desprezo pela legitimidade era algo invulgar na história japonesa.
Todavia, no meio da destruição algo ia sendo construído. Deu terras capturadas aos seus vassalos e iniciou uma política de redistribuição territorial que seria desenvolvida pelos seus sucessores. Em Junho de 1575, reuniu 20 000 mosqueteiros para ajudar a derrotar Takeda Katsuyori (1546-1582) na batalha de Nagashimo. Este foi o primeiro uso significativo de armas de fogo em guerras japonesas e revela a argúcia de Nobunaga, ao compreender qual o potencial desta arma que os europeus tinham trazido consigo. Inauguraria uma forma de combater. Já em 1571, de um modo que faz recordar as Reformas Taika de há mil anos, também começou a fiscalizar as terras agrícolas que estavam sob o seu controlo. Em 1576, também à semelhança das Reformas Taika, começou a confiscar as armas detidas pelos camponeses e nesse mesmo ano padronizou os pesos e medidas. Também em 1576, começou a construção de um grande castelo em Azuchi, na margem do Lago Biwa, a leste de Quioto, para servir de quartel-general.
Castelo de Azuchi (construído entre 1576 e 1579 e incendiado em 1582). |
Reconstituição da torre principal do Azuchi-jō no Museu Nobunaga no Yakata. |
O seu objectivo último estava inscrito no seu selo: Tenka Fubu, ou seja, "Um domínio unificado sob o poder militar". Estava a meio da sua realização quando a sua vida foi interrompida de modo coerentemente violento, em 1582, numa campanha contra a família Mori, no Oeste do Japão. Ironicamente, para um homem que incendiou templos, ficou preso num templo em chamas, o Honnoji, por um dos seus oficiais, Akechi Mitsuhide (1526-1582), que se virara contra ele. É possível que tenha morrido queimado, mas o mais provável é que tenha preferido suicidar-se».
Kenneth Henshall («História do Japão»).
«No século XVI, a introdução de armas de fogo alterou completamente a técnica dos combates: os arcabuzeiros, dispostos em linha ou em profundidade em três filas e abrigados atrás de obstáculos (muros, colinas, paliçadas, etc.), eram capazes de romper, com salvas maciças, as cargas de cavalaria e infantaria. Citemos o exemplo dos 3.000 arcabuzeiros de Nobunaga, que, na batalha de Nagashiro, aniquilaram a carga dos cavaleiros de Takeda. Utilizados em massa compacta, os arcabuzeiros faziam um fogo maciço, compensando assim a falta de precisão das primeiras armas de fogo. Uma outra táctica era frequentemente utilizada: a surpresa e a emboscada. A guerrilha adaptava-se de resto particularmente bem à configuração geográfica do Japão, país muito montanhoso e arborizado e, por isso, impróprio para o desdobramento de grandes unidades. Nesse contexto, o guerreiro a pé demonstrava a sua eficácia. O corpo a corpo era então a regra.
Se os exércitos eram lentos a deslocar-se e a reagrupar-se, em contrapartida o seu choque, era rápido e implacável, e só os mais resistentes sobreviviam.
Isso vem essencialmente da natureza do espírito nipónico que privilegia o ataque, não a defesa. Esta especificidade é evidente no samurai. Tudo nele era concebido para a ofensiva: a flexibilidade e articulação integrais da armadura, leveza no sabre e ausência de escudo individual. O samurai atacava bruscamente para tentar uma decisão o mais rápida possível. Estas particularidades (espírito ofensivo, ligeireza e rapidez) reencontrar-se-ão na figura do soldado japonês da Segunda Guerra Mundial».
Bernard Marillier («Samurai»).
Tsuba (guarda de sabre). |
«Em 1542 (a data é um tanto discutida), os portugueses descobrem o Japão ao mundo do Ocidente.
(...) Note-se, como circunstância interessante, que o nome de Mendes Pinto não figura nas velhas crónicas nipónicas. Num livro da época de Keicho (1596-1615), citado como a melhor autoridade japonesa no assunto, menciona-se que no 25.º dia da 8.ª lua do ano 12.º de Tembum (23 de Setembro de 1543), chegou ao porto de Tanegashima (perto de Kagoshima) um grande navio tripulado por estranha gente de equipagem, sendo dois dos seus chefes Francisco e Kirishita (Cristóvão?) da Mota. Descreve-se em seguida, com minuciosa ingenuidade, as espingardas que os estrangeiros possuíam, a que chamavam téppô (talvez por onomatopeia), de entre as quais os habitantes do lugar compraram duas, aprendendo a usar delas e depois a fabricá-las. O nome de tanegashima, em memória do local, ainda hoje é empregado para indicar as antigas espingardas japonesas - agora artigos de museu -, iguais às nossas escopetas; e téppô é termo corriqueiro de qualquer arma de fogo. Assim, na língua, ficou o documento persistente do grande acontecimento que os portugueses trouxeram ao Japão: a introdução das armas de fogo, as quais impuseram desde logo importantíssimas modificações na táctica de guerra e na construção dos shiró, os castelos, alguns dos quais ainda hoje de pé».
Wenceslau de Moraes («O Culto do Chá»).
«[Quando Portugal perdera] a sua independência, naqueles sessenta anos em que alguns viam uma tentativa para a criação de um grande espaço geográfico, como hoje se diria, e outros lamentavam, pura e simplesmente, a subjugação a senhores estranhos, houve dois documentos escritos que contribuíram poderosamente para não perderem os Portugueses o orgulho da Raça e a memória dos feitos que a haviam ilustrado.
O primeiro foi um poema tão belo e tão completo que ainda hoje, quatro séculos volvidos, mantém toda a actualidade dos seus conceitos. E é praticamente impossível o estudo do período dos Descobrimentos sem o seu estudo. Publicou-o Luís de Camões em vida de um rei que iria perder-se na batalha de Alcácer Quibir e quebrar, com o seu desaparecimento, a linha directa da descendência, que em Portugal até então se fizera, em duas dinastias, de pai a filho. Ainda em vida do idoso Cardeal-Rei se travaram as primeiras escaramuças para a sucessão. E os Filipes viriam a ganhar a luta e a instalar-se no trono português, primeiro com toda a soma de atenções para os novos domínios, depois, passados os anos, tratando os assuntos portugueses como os de qualquer outra parcela de um Reino hostilizado por quase todo o mundo. Apesar de todos os condicionalismos da época, em que a noção de nacionalidade estava longe do conceito hoje adoptado, não poderia o poema de Camões deixar de influenciar o povo. A sua leitura muitas vezes servia para atenuar os rancores da submissão, as dores das perdas sucessivas, a mágoa dos tempos tão diferentes. Era um lembrar de virtudes de gente que se fora, um recordar de gestos, de palavras, de feitos com que se dourava a saudade, com que se dava figura às recordações que andavam na boca do povo.
Torre de Belém |
A esse livro viria a suceder, uns decénios volvidos, um grito de presença, de capacidade, de ousadia. Não eram já feitos de gente ida há séculos ou há lustres: era a alucinante aventura de um homem ainda vivo, que na margem sul do Tejo curtia as lembranças da juventude e escrevera o relato do que fizera e vira fazer, dos sítios por onde andara, ao falar das terras estranhas e dos homens que conhecera, das maravilhas que presenciara, do muito que penara e superara na sua vida errante pelo mundo que ia saindo da bruma.
Já não se falava apenas do que acontecera em tempos. Estava vivo quem contava, estavam presentes muitos dos que nomeava, havia centenas de homens que encontravam naquela narração, afinal, a sua própria história e em muitos dos povos e das terras descritas a gente e os sítios em que haviam praticado com naturalidade perfeitas façanhas de estarrecer. Iam mal as coisas em muitos pontos, os homens apoucavam-se e os sentimentos perdiam beleza e virilidade; mas quem havia obrado prodígios ainda vivia e entendia-se claramente que tudo poderia voltar ao esplendor de há pouco. Já não se tratava de saudade, mas de esperança.
Num período de dominação estrangeira, o livro tinha duplo efeito; alentava os que não aceitavam a presença de um rei estranho, feria os que a esse rei se haviam dedicado. Se os primeiros o liam com veneração e entusiasmo, aos segundos sobrava razões para procurar denegri-lo. Espalhar a dúvida, semear a desconfiança, acusar directamente de mentiroso o autor foram cuidados a que não se pouparam. Durante séculos iria manter-se a campanha contra Fernão Mendes Pinto e contra a sua «Peregrinação».
Nada resta, hoje, da teia de dúvidas, de acusações, de insultos lançados contra a sua Obra. Ficou, apenas, uma série de enigmas em relação ao Autor. Mas já está assente que certas disparidades de datas, algumas incorrecções da descrição, uns enganos quanto a nomes não passaram, na verdade, de naturais incorrecções de quem escreveu, de cor e anos passados, o relato de uma série de apaixonantes aventuras, não apenas as suas, mas por igual as daqueles que conhecera no seu peregrinar. E o que chega a causar estranheza não é a existência desses lapsos de memória, mas antes a enorme capacidade de evocação e a minuciosidade na descrição dos factos e dos cenários.
Uma das placas da Rua de Fernão Mendes Pinto, na cidade de Macau. |
A. Pedro Gil (in prefácio a Fernão Mendes Pinto, «Peregrinação», Edição Amigos do Livro, Vol. I).
Fernão Mendes Pinto no Japão
(...) trazido aos baldões do acaso, chega Mendes Pinto, pela primeira vez, à terra japonesa; e quer ele terem sido ele próprio e os seus dois companheiros os primeiros europeus que vieram ao Japão, descobrindo-o assim às gentes da Europa. É defronte da ilha de Tanuximá que o seu barco larga ferro. Mendes Pinto escreve erradamente esta denominação, como muitas outras; emende-se para Tanegashima (o sufixo shima implica já a ideia de ilha). Tanegashima é uma ilha comprida e plana, de campos muitos cultivados, situada um pouco ao sul das províncias de Satsuma e de Osumi, na grande ilha de Kiûshû.
A formosa e impressiva paisagem japonesa, que tanto cativa hoje forasteiros, não logra despertar interesse ao nosso aventureiro; pelo menos, não fala nela. Não admira, levando em conta duas coisas - a época em que escreve e, principalmente, a sua profissão de mercador, de traficante. Ainda hoje, em pleno século XX, com tantos refinamentos de culto estético, os mercadores, os traficantes europeus e americanos, que vêm estabelecer residência em Nagasaki, em Kobe, em Yokohama, não se sensibilizam muito, em regra, com os aspectos sorridentes do Nippon.
Mendes Pinto é também mudo perante um outro enlevo do Japão, o enlevo feminino - a japonesa. Coitado do pobre Mendes Pinto!... Dir-se-ia que os múltiplos trambolhões da sorte, as privações, as misérias, os açoites, as cicatrizes e a ânsia insaciada do dinheiro houvessem mirrado, extinguido, naquela alma atribulada, a flor de simpatia, o amor, tão espontâneo, na alma portuguesa!...
Mendes Pinto descreve, com notável agudeza, o bom acolhimento que ele e os seus companheiros receberam do «Nautaquim» da ilha, isto é, do governador, que era então, como é sabido, Tanegashima Tokitaka. Tem uma observação feliz, falando deste funcionário, que diz ser homem curioso, inclinado a coisas novas; semelhante qualidade que é peculiar aos japoneses, ainda hoje impressiona viajantes, como impressionou o aventureiro. E agora encrespam-se-me os lábios num sorriso, ao ler as respostas que ele deu a certas perguntas que o governador lhe dirigira, quando, por exemplo, afirmou que Portugal era muito maior, em extensão e riquezas, do que era toda a China, ou que o seu rei havia conquistado a maior parte do mundo: e, quanto às casas cheias até aos telhados de oiro e prata, que o rei de Portugal possuía e que a Tokitaka os chineses haviam dito passarem de duas mil, Mendes Pinto deu em troco que não se poderia precisar o número delas, por ser tamanho o reino e tantos os tesouros!...
Ocorre agora o episódio, merecedor de menção especial, em que Diogo Zeymoto tem o papel predominante. Este companheiro de Mendes Pinto era grande caçador e possuía uma espingarda com a qual, na ociosidade em que então ia vivendo, costumava divertir-se, andando à caça. Esta arma de fogo, a primeira que os japoneses observaram, maravilhou profundamente o governador; Zeymoto, para lhe ser agradável, ofereceu-lha e ensinou-lhe a fazer pólvora, recebendo em troca presentes e honrarias. A propósito, conta Mendes Pinto que, imitando aquele único modelo, os japoneses começaram logo a fabricar grande número de espingardas; e observa judiciosamente: «E por aqui se saberá que gente esta he, & quão inclinada por natureza ao exercício militar, no qual se deleyta mais que todas as outras nações que até agora se sabem», comentário digno de um observador do nosso século XX.
O episódio da espingarda de Zeymoto impõe-me, pela sua alta importância incontestável, mais algumas referências, embora de fugida. Em primeiro lugar, convém saber que as espingardas, construídas segundo o modelo da espingarda Zeymoto, ficaram sendo conhecidas pela denominação de Tanegashima, em honra da terra; ainda hoje o termo é empregado para designar as espingardas de mecha e pederneira, dos velhos tempos, arrecadadas nos museus.
A Tanegashima marca o início, nas artes de guerra do Japão, de uma época nova. Constitui uma verdadeira revolução nos processos de ataque e de defesa. Multiplicando-se prodigiosamente, ia dar, de começo e de surpresa, uma importância enorme aos recursos militares dos senhores feudais do sul do império. Em breve, ia vulgarizar-se por toda a parte, impondo no país inteiro modificações imediatas na construção das fortalezas, na estratégia da guerra, etc. O Japão, possuidor do segredo de fabricar uma espingarda, ia prosseguir no estudo, revelando aptidões incomparáveis neste género de energias; menos de quatro séculos lhe bastam para ser considerado e temido, como uma das cinco maiores potências militares do mundo inteiro.
Por último, perdoe-se-me aqui uma referência pessoal, a propósito da Tanegashima. O autor destas linhas, tendo vindo ao Japão em 1893, comissionado pelo governo de Macau, para comprar, num dos arsenais do império, algumas peças de artilharia de montanha para aquela colónia portuguesa, não pode reter neste momento um sorriso, considerada a circunstância de ter vindo ele pedir armas de fogo aos japoneses, quando foi Diogo Zeymoto quem ofereceu aos japoneses a primeira arma de fogo que eles viram!... Os tempos mudam: e, no teatro mundial, os países invertem-se, por vezes...
Mendes Pinto é enviado ao «Reyno do Bungo», a fim de distrair o «Rey», que se achava melancólico e doente. Mendes Pinto chama «Reyno do Bungo» à província de Bungo e «Rey do Bungo» ao dáimio, senhor feudal, de tal província. Ao nosso aventureiro e a muitos outros que de perto lhe seguiram, escapou naturalmente o complicado maquinismo político e administrativo do império. O Japão nunca esteve dividido em reinos, mas sim, desde muito antes da chegada de Mendes Pinto, em províncias feudais, tendo um dáimio à sua frente, sujeito ao xógum, generalíssimo do império, altíssimo funcionário, que dava ordens em nome do soberano. As coisas mais se complicavam então pela desordem, pela anarquia geral, que grassavam no país, sendo mesmo possível que alguns dáimios se aprazessem naquele tempo, em aparentar uma quase real independência, de que, de facto, não gozavam.
Foi o caso que o dáimio do Bungo, que era, então, Otomo Yoshinori (Mendes Pinto chama-lhe Oregendó), tio e sogro do governador de Tanegashima, pediu em carta que lhe mandasse um dos três estrangeiros, que constava estarem na ilha, a fim de que o estrangeiro o distraísse dos incómodos e má disposição de espírito em que estava, havia muito tempo; carta curiosa, na qual, segundo a tradução que apresenta Mendes Pinto, Otomo confere-se a si próprio vários títulos, como «Rey» de Fakata (Hakata), cabeça suprema dos «Reys» de Goto e Xamanaxeque (Shimonoseki), quando então os seus domínios não iam mais além da província do Bungo.
Grupo de ashigaru armados de arcabuzes e toucados com jingasa. Pintura de Ichiyusai Kuniyoshi. |
O governador de Tanegashima,não querendo privar-se da companhia de Zeymoto, que lhe ensinara o segredo das armas de fogo e a quem muito queria, convidou Mendes Pinto, por ser mais alegre do que Borralho, a desempenhar-se da missão, a que o aventureiro de muito bom grado se prestou.
Mendes Pinto parte com Fingeandono para o Bungo. Nas páginas da Peregrinação, encontram-se muitos nomes de indivíduos japoneses com a terminação em dono; dono, ou tono, é um simples termo honorífico, como, para nós, sua excelência; neste caso particular, admitindo como correcta a ortografia do autor (que não é, pois a sílaba Fin é desconhecida no Japão), o nome seria simplesmente Fingean. Mas não nos prendam tão pequenas ninharias. Os dois fazem a viagem numa embarcação de remos, largando de Tanegashima e dirigindo-se para a terra fronteira, alcançando o pequeno porto de Hiamangó (emende-se para Yamagawa); dali vão a Quanguixuma (emende-se para Kagoshima, já então e ainda hoje uma importante cidade, actualmente capital do distrito de Kagoshima); seguem depois para Tanora (Tano-ura); após para Minato (porto, isto é, o porto de Otomari); dali para Fiunga (Hyûga); navegando perto da costa, ao longo das províncias de Osumi e Hyûga, e entrando diariamente nalgum porto, onde se proviam de refrescos. Finalmente chegam a Osqui (Usuki), deixando o barco e seguindo por terra até Funai (hoje Oita, capital do distrito do mesmo nome), a que Mendes Pinto chama Fucheo. Convém notar que Tano-ura e o porto de Otomari não figuram no mapa incluso neste meu ligeiro estudo, por não se encontrarem nas cartas japonesas, antigas e modernas, que consultei.
Em Funai, o dáimio Otomo acolhe muito amavelmente o aventureiro português, que o cura de seus achaques. Mas dá-se então um incidente lamentável. Mendes Pinto levara consigo para o Bungo uma espingarda, a qual foi motivo de espanto para todos que a viram, como sucedera em Tanegashima com a espingarda de Zeymoto. Em certa ocasião, quando Mendes Pinto dormia, um segundo filho do dáimio quis fazer uso da arma, a qual, por excesso de carga, rebentou, ficando muito ferido o moço inexperiente. Isto ia quase custando a vida ao aventureiro, acusado logo de feiticeiro, assassino, por todos que apareceram, que reclamavam de Otomo castigo severo e imediato. Mas tudo se harmonizou em pouco tempo; Mendes Pinto cura o ferido, recebe muitas recompensas, ganha de novo a simpatia do dáimio.
Pouco após, Mendes Pinto era informado, por cartas dos seus dois companheiros que haviam ficado em Tanegashima, que o capitão do barco que os trouxera se preparava para voltar à China; e pediu e obteve licença de Otomo para regressar a Tanegashima, a fim de embarcarem os três naquele barco. Partiu pois. De Funai, Mendes Pinto fez a viagem de regresso até Tanegashima numa embarcação de remos provida de todo o necessário, que o dáimio pôs ao seu serviço. O aventureiro diz que largou de Funai num Sábado, chegando na tarde da próxima sexta-feira ao seu destino; e não dá mais detalhes da viagem. É provável que, como na viagem da ida, a embarcação aportasse a vários sítios, ao longo da costa, para descanso dos remadores e provimento de refrescos, evitando-se talvez, para mais ligeireza, o contornar a baía de Kagoshima; o caso é de somenos importância.
Estação Espacial de Tanegashima |
De Tanegashima, onde Mendes Pinto se demorou mais quinze dias, largou o barco, com os três portugueses, para Liampó, na costa da China, lugar onde a gente portuguesa se estabelecera em grande número, fazendo-se a viagem sem estorvo.
Narrada, assim, por alto, esta primeira viagem do autor da Peregrinação ao país do Sol Nascente, convém agora relembrar que ele se intitula um dos três portugueses que descobriram o Japão ao mundo ocidental, pois nenhum outro europeu aqui viera antes de o junco de Samipocheca ter fundeado em frente de Tanegashima.
Não restam sombras de dúvida de que foram os portugueses os primeiros homens da Europa que visitaram o Japão; cabe-lhes esta honra indiscutível, para juntar a tantas outras, que iam constituindo uma longa cadeia de descobrimentos, maravilhando toda a gente. Também não deve haver a menor dúvida de que Fernão Mendes Pinto esteve no Japão, por várias vezes. Quanto à circunstância particular, com a qual Mendes Pinto se distingue, da sua descoberta, em companhia de Diogo Zeymoto e Cristóvão Borralho, isto é que está muito longe de provado e nunca talvez se provará, em termos firmes. Mendes Pinto cita o facto, na sua Peregrinação. Alguns outros portugueses, seus contemporâneos, negam-lho. Os vários documentos japoneses, que se ocupam do assunto, mencionam diversos nomes de portugueses, mas não figura Mendes Pinto. Como desenredar esta meada?
Poderá Mendes Pinto ter razão; poderá não tê-la, mentindo, ou ignorando acontecimentos. Mentiroso, sabemos que ele o era, por sua própria confissão; sirvam de exemplo as respostas que ele dá ao governador de Tanegashima, a propósito da grandeza e das riquezas portuguesas. Acho curioso e estranho que ele não mencione a data da sua descoberta; pelo menos, não a encontro no volume da Peregrinação que tenho à vista.
Os documentos japoneses, de que venho de fazer leve menção, confundem-nos pela diversidade de datas apontadas; os anos de 1534, 1541, 1543, 1545, e mais talvez, são indicados. Parece que a data correcta da chegada dos primeiros portugueses ao Japão é a que aponta António Galvão e admitida pelos missionários, isto é, o ano de 1542.
O professor japonês Tsuboi, num artigo recente, informa que, entre os diversos livros japoneses que descrevem a primeira importação de armas de fogo, um, que é intitulado Nampo-Banshin, escrito no período de Keicho (1596-1615), dever ser tido como o mais digno de fé. Nele se diz que, no dia 23 de Setembro de 1543, um grande navio chegou a Tanegashima, com uma equipagem de cerca de cem homens, de estranha linguagem e de estranha aparência, com dois chefes, chamados Francisco e Kirishita da Motta.
Celebração da Missa no Japão |
O distintíssimo historiador moderno do Japão, Murdoch, dedica, na sua obra, um belo e extenso artigo referente à descoberta do Japão, artigo que se impõe ao estudo de todos os curiosos neste assunto. Murdoch admite a data indicada por Galvão, 1542, mas nega a Mendes Pinto a honra que se arroga, de ter sido ele um dos três portugueses que primeiro deram fé de terra japonesa. Para isto funda-se principalmente no que escreve o padre Cros, jesuíta, quando cita um dos autores de uma obra manuscrita, também de procedência jesuíta. Ali se alega que, no ano de 1542, António da Mota, Francisco Zeymoto e António Peixoto navegavam de Sião para a China, quando uma grande tempestade os levou até Tanegashima; que Fernão Mendes Pinto representa-se a si próprio como sendo um dos três, o que é falso, como são falsas muitas coisas no seu livro, que parece ter sido coordenado mais para divertir do que para expor verdades. Murdoch julga encontrar confirmação a estes dizeres na circunstância de que a Peregrinação, no que respeita o império japonês, se encontra cheia de erros, históricos e outros, o que leva ao convencimento de que quem o escreveu não viu as coisas. Menciona, por exemplo, aquela carta, que o dáimio do Bungo envia ao governador de Tanegashima, pedindo que lhe mande um dos três portugueses que hospeda em seus domínios; na qual carta, ele próprio se intitula senhor de certas regiões, que nunca estiveram incorporadas nos seus feudos.
Murdoch, a medo o digo, não empregou, nesta questão especial, os seus conhecidos processos de lúcida investigação e de análise filosófica, que tanto o nobilitam como historiador do nosso século XX. As razões que apresenta estão longe de poderem induzir a uma convicção absoluta. Quanto ao que diz o padre Cros, Jesuíta, citando um velho manuscrito de outros jesuítas convém saber que Mendes Pinto se havia filiado na Companhia de Jesus, conseguindo mais tarde ser aceite a renúncia dos seus votos e regressando a Portugal. Este simples facto leva a supor quantos ressentimentos se teriam levantado, por parte dos jesuítas, contra o aventureiro, e quantos meios possivelmente se empregaram para deslustramento de seus feitos. Mendes Pinto, ao terminar a Peregrinação, permite-se vários desabafos, a propósito de uma perseguição de que foi vítima, ou, pelo menos, de uma grande indiferença dos poderes públicos em face dos seus méritos; não quereria ele aludir a intrigas dos ex-confrades?...
Quanto aos erros cometidos por Mendes Pinto no seu livro... que os deuses perdoem a Murdoch o haver recorrido a um argumento tão pouco consistente!... Mendes Pinto escreveu muitos erros, escrevendo da China, escrevendo do Japão, escrevendo de todos os países exóticos, há perto de quatro séculos, e quem não os comete ainda hoje?... Mendes Pinto, falando da China, disse muitos disparates, incorreu em muitos erros históricos, sem dúvida; deve por isso concluir-se que ele nunca esteve na China?... Estou mesmo tentado a perguntar se se deve concluir ele ter escrito vários erros, falando do Japão... Erros!... O próprio Murdoch - para não falar de uma multidão de outros escritores contemporâneos - merece acaso aspérrimas censuras, por teimar em ir crismando o pobre Cristóvão Borralho, companheiro de Mendes Pinto, com o nome arrevesado do Christofero Borello?...
Para mim, o problema continua insolúvel; ou antes, Mendes Pinto continua sendo um dos três portugueses que descobriram o Japão. Não me mortifica a ideia de ter um dia de negar-lhe esta façanha e de acusá-lo autor de mais uma mentira; mas venham provas, outras provas; porque estas, que me apontam, não me convencem (in Wenceslau de Moraes, Fernão Mendes Pinto no Japão, Vega, 1993, pp. 39-53).
Padrão dos Descobrimentos, localizado na freguesia de Belém, Distrito de Lisboa. |
A contar de baixo: Fernão Mendes Pinto, D. Filipa de Lencastre e o Infante D. Pedro. |
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