sábado, 1 de outubro de 2016

O Terror Vermelho

Escrito por Nicolas Werth






«[...] Enquanto se não reunirem e reeditarem os "dispersos" de Leonardo Coimbra, apenas dispomos de três textos em que ele se ocupa directamente da política. São eles: A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, O Problema da Educação Nacional e A Questão Universitária. O primeiro é o desenvolvimento de uma conferência que, em 1934, dois anos antes da sua morte, veio fazer a Lisboa, no Teatro de São Carlos, por convite de um organismo cultural salazarista. O segundo é a "comunicação" apresentada no congresso de um Partido Político a que pertencia. O terceiro é um discurso parlamentar em defesa das suas realizações como Ministro da Instrução Pública: transferência, de Coimbra para o Porto, da Faculdade de Letras e criação das escolas primárias superiores. É difícil dizer qual dos textos seja o mais significativo, mas é fácil entender que todos eles se completam num sistema que Leonardo não chegou ou não se interessou em expor articuladamente, talvez por entender que a "política não é mais do que uma técnica das relações sociais".

[...] Além dos textos, há as posições políticas assumidas por Leonardo. Começou por ser, na juventude, anarquista e acabou por ser visto, nas vésperas de morrer, a aproximar-se do salazarismo. Entre os dois extremos, foi filiado de um Partido Político, foi Ministro da Instrução Pública, pertenceu, com o "nome" de "Kant", a uma loja maçónica e converteu-se ao Catolicismo no fim de uma vida em que, continuamente, se afirmou como o mais profundo e original pensador cristão da nossa história da filosofia. Com estes dados, muitos concluíram e o acusaram de ter feito uma acidentada carreira através de variadas posições políticas. Certo é, porém, que sempre manteve, inabalável e inalterável, aquela "nobre virtude que ilumina a fisionomia espiritual do povo português", a lealdade a um pensamento no qual a liberdade constitui o valor supremo e até o princípio de toda a política. Com efeito: o anarquismo foi, durante um século e ainda hoje é para alguns, a expressão das imaturas exigências de liberdade características da juventude; a passagem de Leonardo pelo Governo assinalou-se por uma actividade destinada a extinguir a universidade pombalina e a institucionalizar o ensino da filosofia como "orgão da liberdade"; a aceitação do convite salazarista, donde resultou A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, correspondeu à imperiosa necessidade, naquele livro documentada, de defender a liberdade da ameaça mais temerosa que ela hoje defronta, o comunismo.

[...] Foi Leonardo Coimbra contemporâneo da instalação do comunismo na Rússia e sua ampliação a Partidos Políticos de todos os países. Ao contrário da maior parte dos intelectuais da sua e seguinte geração, imediatamente viu hoje a grande ameaça ou doença, mal ou erro do nosso tempo. Minucioso conhecedor dos filósofos clássicos, Leonardo sabia que o comunismo é a mais antiga e inalterada das doutrinas e não ignorava que Aristóteles dissera "despertar ele (ou a abolição da propriedade, o que é o mesmo) grande entusiasmo entre as camadas mais baixas da população". O comunismo encontrar, porém, uma versão "moderna", já não ficava limitado às "camadas mais baixas" e era, antes, um "fenómeno burguês" que acabava por deitar mão aos poderes de um Estado e, a partir daí, instalar-se, como Partido Político, nos regimes democráticos. Como foi possível? Leonardo procura, prioritariamente, compreender. Trata-se de um fenómeno - não social ou económico como em geral se julga - mas mental e filosófico. Consiste, primeiro, no empolamento do humanismo e, depois, na sua degradação, de humanismo idealista e cristão, a humanismo antropolátrico e, por fim, exaustivo. A descrição deste processo preenche toda a primeira parte do livro A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre que é, seguramente, a mais segura refutação do comunismo. Nada mais diremos aqui deste livro admirável a não ser recomendar a sua compreensão facilmente acessível a todos aqueles que não devam a sua formação intelectual à organização marxista que domina hoje o ensino em Portugal».

Orlando Vitorino («Leonardo e a política»).




«Lenine anuncia que os bolchevistas vão conquistar o poder e até que, uma vez conquistado, o hão-de conservar.

Contra a oposição de muitos, Lenine vence, ajudado por Estaline, Trotsky e Sverdlov, e quer que se dê o assalto antes do Congresso dos Sovietes, convocado para 25 de Outubro.

E Kerensky? Kerensky discursa, olhos no Ideal, num oblomovismo bem nacionalista.

Debaixo dos seus olhos, Trotsky arranjou no Soviete de Petrogrado a nomeação dum comité militar revolucionário, ao mesmo tempo que fez crer aos socialistas que o seu partido veria bem uma recomposição do governo.

No dia 25 de Outubro é assaltado o Palácio de Inverno, enquanto abre o segundo Congresso dos Sovietes dos deputados, operários e soldados da Rússia.

Nesse mesmo momento, os bolchevistas, que venciam no assalto armado, venciam também no escrutínio para a formação da mesa do Congresso.

Os últimos defensores do Palácio foram as mulheres dum regimento de Kerensky, que, é, natural, sofreram todas as violências da derrota.

Enquanto alguns ministros eram presos, Kerensky ia organizar a resistência.

Sabemos, por ele mesmo, como só uma fuga rápida e um pouco fantástica - de romance de folhetim - pôde conservar em vida esse homem, sobre cujos ombros o Destino colocou a sexta parte das terras planetárias.

E assim se fez a Rússia-Bolchévia.

O primeiro czar vermelho, Lenine, emprega no poder a mesma vontade fria, obstinada, insistente e aprumada ao Fim.

O Fim é o comunismo universal, mas agora o principal, o indispensável meio, é a existência da própria Rússia bolchevista.

Esta será comunista no destino, no fito teórico-dogmático, dum dogma da vontade-força, da vontade da classe-Messias.

E, para isso, será, de facto e a cada momento, o que preciso for para conservar no poder a Mão da classe, dirigindo.

Comunismo de Guerra com as necessárias condescendências para o camponês, política da NEP com fiscalização dos períodos vindos dos Kulaks, etc...


















Lenine morre - morre, embora nas escolas o catecismo bolchevista ensine que ele "vive no coração de cada um de nós" -, e pela estratégia sorna de Estaline, o segundo czar vermelho é este mesmo, o Estaline, antigo comandante de proveitosa expropriação a favor da caixa partidária.

Estaline segue a política leninista; a sua vitória sobre Trotstky é, embora contra a vontade testamentária de Lenine, a vitória do próprio leninismo contra as audácias do judeu concorrente, organizador do exército vermelho e comandante do massacre dos marujos de Cronstadt, filhos dilectos da Revolução.

Estaline é a prudência da serpente, preferível agora à audácia do búfalo ou ao ímpeto da águia.

Ele deixará viver o kulak enquanto indispensável, ele suprimirá o kulak, logo que possa respirar sem ele, para voltar a sofrê-lo se ele se tornar absolutamente insubstituível.

Ele virá, no entanto, procurando os substitutos, à medida que o poder se lhe torne sólido das mãos ambiciosas e rapaces.

As quintas do estado e os colectivos agrícolas (Sovkhoz e Kolkhoz) irão substituir a Nep, por insidiosa pressão ou cínica e imperiosa violência exercidas sobre o camponês.

Política de realidades, como costumam dizer todos os políticos - política de realidades, que eles cortaram no possível humano, segundo os seus fanatismos ou ambiciosos caprichos.

Nos políticos burgueses, no entanto, ela é, mesmo nos maus, porque os há devotados e sinceros, sempre frenada, disciplinada por imposições de deveres morais humanos.

No bolchevique - política das realidades comunistas, ou, antes, das realidades itinerantes do caminho do Céu comunista.

Mobilização militarista dos trabalhadores, brigadas de choque, cartas de trabalho, diferenciação económica dos trabalhadores, prémios e castigos, subclasses (!) da Classe-Messias, pulverização pluralista do Monismo, do Panteísmo: tudo em serviço da causa, como meio para o Fim, meio sempre bom se fixa o Fim sob o olhar da consciência-vontade-força bolchevique.

Quando o sr Herriot nos conta, com gáudio, que Estaline aceita como boas as diferenciações segundo o valor de trabalho de cada um, engana-se redondamente.

Estaline não pode aceitar isso bem - a não ser do ponto de vista autista da consolidação do seu poder pessoal.

E, se se limitasse a este ponto de vista, Estaline seria um simples monstro, que não é.












Para colectivizar as terras - o «grande assalto contra o campesinato» -, Estaline utiliza a «a arma da fome», em particular contra os Ucranianos. Em Kharkov, em 1933, a morte quotidiana deixa indiferente quem passa. Os casos de canibalismo são tão frequentes que o governo manda imprimir um cartaz que proclama: «Comer o próprio filho é um acto bárbaro!».






Holodomor Monument









Ele aceita, antes, sofre, suporta como bom tudo o que seja caminho, porque o Fim é outro - a cada um segundo as suas necessidades e de cada um segundo as suas capacidades.

O Fim é a Perfeição em que igualdade e desigualdade se sumam na beatitude dum querer plenamente satisfeito.

É uma tradução de beatitude e glória em conforto e prazer: a vontade e a inteligência preenchendo-se no Infinito, traduzidas por uma vontade saltando de coisa em coisa, sem nunca lhe faltar apoio para o novo salto e por uma inteligência desdobrando o Ser em teoremas da ciência universal.

Ora o Caminho do Céu é, cada passo, em cada encruzilhada, um caminho que pode perder-se.

São necessários os marcos indicadores, e, mais ainda, o tapamento dos outros caminhos possíveis.

O direito e a educação serão os marcos; mas a inteligência transproletária, a pura e simples inteligência e coração de homem?

Encerra-se, extingue-se, mata-se, se se teimar em não morrer: eis o combate à metafísica, a todo o idealismo, e, essencialmente, o combate a Deus».

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«[...] one barrier to mature understanding of recent history is the notion that all capitalists are the bitter and unswerving enemies of all Marxists and Socialists. This erroneous idea originated with Karl Marx and was undoubtedly useful to his purposes. In fact, the idea is nonsense. There has been a continuing, albeit concealed, alliance between international political capitalists and international revolutionary socialists - to their mutual benefit. This alliance has gone unobserved largely because historians - with a few notable exceptions - have an unconscious Marxian bias and are thus locked into the impossibility of any such alliance existing. The open-minded reader should bear two clues in mind: monopoly capitalists are the bitter enemies of laissez-faire entrepreneurs; and, given the weaknesses of socialist central planning, the totalitarian socialist state is a perfect captive market for monopoly capitalists, if an alliance can be made with the socialist power brokers. Suppose - and it is only hypothesis at this point - that American monopoly capitalists were able to reduce a planned socialist Russia to the status of a captive technical colony? Would not be the logical twentieth century internationalist extension of the Morgan railroad monopolies and the Rockefeller petroleum trust of the late nineteenth century?

[...] The Bolshevization of Wall Street was known among well informed circles as early as 1919. The financial journalist Barron recorded a conversation with oil magnate E. H. Doheny in 1919 and specifically named three prominent financiers, William Boyce Thompson, Thomas Lamont and Charles R. Crane:

"Abord S. S. Aquitania, Friday Evening, February 1, 1919.

Spent the evening with the Dohenys in their suite. Mr. Doheny said: if you believe in democracy you cannot believe in Socialism. Socialism is the poison that destroys democracy. Democracy means opportunity for all. Socialism holds out the hope that a man can quit work and be better off. Bolshevism is the true fruit of Socialism and if you will read the interesting testimony before the Senate Commitee about the middle of January that showed up all these pacifists and peace-makers as German sympathizers, Socialists, and Bolsheviks, you will see that a majority of the college professors in the United States are teaching socialism and Bolshevism and that fifty-two professors were on so-called peace committees in 1914. President Eliot of Harvard is teaching Bolshevism. The worst Bolsheviks in the United States are not only college professors, of whom President Wilson is one, but capitalists and the wives of capitalists and neither seem to know what they are talking about. William Boyce Thompson is teaching Bolshevism and he may yet convert Lamont of J. P. Morgan & Company. Vanderlip is a Bolshevist, so is Charles R. Crane. Many women are joining the movement and neither they, not their husbands, know what it is, or what it leads to. Henry Ford is another and so are most of one hundred historians Wilson took abroad with him in the foolish idea that history can teatch youth proper demarcations of races, peoples, and nations geographically".












In brief, this is a story of the Bolshevik Revolution and its aftermath, but a story that departs from the usual conceptual straitjacket approach of Capitalists versus Communists. Our story postulates a partnership between international monopoly capitalism and international revolutionary socialism for their mutual benefit. The final human cost of this alliance has fallen upon the shoulders of the individual Russian and the individual American. Entrepreneurship has been brought into disrepute and the world has been propelled toward inefficient socialist planning as a result of these monopoly maneuverings in the world of politics and revolution.

This is also a story reflecting the betrayal of the Russian Revolution. The tsars and their corrupt political system were ejected only to be replaced by the new powerbrokers of another corrupt political system. Where the United States could have exerted its dominant influence to bring about a free Russia it truckled to the ambitious of a few Wall Street finaciers who, for their own purposes, could accept a centralized tsarist Russia or a centralized Marxist Russia but not a decentralized free Russia».

Antony C. Sutton («Wall Street and the Bolshevik Revolution»).


«[...] Todos sabemos com seguro saber que o conhecimento não tem poder para criar novos valores éticos, que nenhuma aprendizagem levará as pessoas a perfilharem as mesmas opiniões sobre os problemas morais suscitados por uma ordem deliberadamente imposta a todas as relações sociais. Para justificar um determinado projecto, o que é necessário não é uma convicção racional mas sim a aceitação de um credo. E na realidade, em toda a parte foram os socialistas os primeiros a reconhecer que a tarefa em que estavam comprometidos requeria a aceitação geral de uma welthanschaung, de um bem determinado sistema de valores. Na sua tentativa para desencadear um movimento de massas, os socialistas apoiaram-se numa visão do mundo tão integralmente uniforme que foram eles que forjaram a maior parte dos instrumentos de doutrinação que os nazis e os fascistas vieram a utilizar com tanta eficácia.

Na Alemanha e na Itália, os nazis e os fascistas já não tinham efectivamente muito que inventar. A invasão de todos os aspectos da vida pelos movimentos políticos tinha já sido lançada, em ambos os países, pelos socialistas. Foram os socialistas que pela primeira vez puseram em prática a concepção de um partido que abrangesse todas as actividades de um indivíduo desde o berço até ao túmulo, um partido que se propusesse orientar as opiniões de todos sobre todas as coisas, que traduzisse todos os problemas em termos de uma welthanschaung partidária. Um escritor socialista austríaco [G. Weiser], referindo-se ao movimento socialista no seu país, dizia com orgulho que era "sua característica ter criado organizações especiais para todos os sectores da actividade dos operários e assalariados". E embora os socialistas austríacos tenham ido mais longe neste sentido, a situação não era muito diferente nos outros países. Não foram os fascistas, mas os socialistas, quem começou a levar as crianças de tenra idade para as organizações políticas a fim de estarem seguros de que elas se formariam como "bons proletários". Não foram os fascistas, mas os socialistas, quem primeiro tentou a organização de jogos e desportos, de futebol e exercícios pedestres em clubes partidários onde os seus membros estariam ao abrigo do contágio de ideias diferentes. Foram também os socialistas quem primeiro estabeleceu maneiras de cumprimentar e formas de saudação com as quais os membros dos seus partidos se distinguiriam dos outros. Foram ainda os socialistas quem, através da sua organização em "células" e dos seus planos de supervisão permanente da vida privada, criaram o protótipo do partido totalitário. Balilla e Hitlerjugend, Dopolavoro e Kraft durch Freude, uniformes políticos e formações partidárias militares fascistas e nazis, pouco mais são do que imitações de instituições anteriores».

Frederico Hayek («O Caminho para a Servidão»).





«Ora, dos anos vinte aos anos cinquenta, os comunistas do mundo inteiro e muitas outras pessoas aplaudiram entusiasticamente a política de Lenine e depois a de Estaline. Centenas de milhares de pessoas filiaram-se na Internacional Comunista e nas secções locais do "partido mundial da revolução". Nos anos cinquenta-setenta, outras centenas de milhares de pessoas incensaram o "Grande Timoneiro" da revolução chinesa e cantaram os méritos do Grande Salto em Frente da Revolução Cultural. Ainda mais perto de nós, muitos foram os que se felicitaram quando Pol Pot tomou o poder. Muitos responderão que "não sabiam". É verdade que nem sempre é fácil saber, considerando que os regimes comunistas fizeram do segredo um dos modos de defesa privilegiados. Mas, muitas vezes, esta ignorância mais não era do que o resultado de uma cegueira devida à crença militante. E nos anos quarenta e cinquenta, muitos factos eram conhecidos e incontestáveis. Ora, se muitos desses turiferários abandonaram hoje os seus ídolos de ontem, foi no silêncio e na discrição que o fizeram. Mas que pensar do amoralismo essencial que há em renegar no segredo do seu foro íntimo um compromisso político sem dele tirar a incontornável lição?

Um dos pioneiros do estudo do terror comunista, Robert Conquest, escrevia em 1969: "O facto de um tão grande número de pessoas ter efectivamente 'engolido' [a Grande Depuração] foi sem dúvida um dos factores que tornaram possível toda a Depuração propriamente dita. Os processos, nomeadamente, não teriam tido mais do que um interesse reduzido se não tivessem sido validados por certos comentadores estrangeiros - e logo 'independentes'. Estes últimos devem, pelo menos numa pequena parte, arcar com a responsabilidade de uma cumplicidade nesses assassínios políticos, ou, em todo o caso, no facto de eles se terem repetido depois de a primeira operação, o processo Zinoviev [em 1936], ter beneficiado de uma credibilidade injustificada". Se julgarmos por esta bitola a cumplicidade moral e intelectual de um certo número de não-comunistas, que dizer da cumplicidade dos comunistas? E não há memória de que Louis Aragon se tenha alguma vez arrependido publicamente de ter apelado, num poema de 1931, à criação de uma política comunista em França, apesar de durante algum tempo ter parecido criticar o período estalinista.

Joseph Berger, antigo quadro do Komintern que foi "depurado" e conheceu os campos, cita a carta que recebeu de uma ex-deportada do Gulag que continuou a ser membro do Partido Comunista depois de libertada: "Os comunistas na minha geração aceitaram a autoridade de Estaline. Aprovaram os seus crimes. Isto é verdade não só para os comunistas soviéticos mas também para os de todo o mundo, e esta mácula marca-nos individual e colectivamente. Só poderemos apagá-la fazendo de modo que nunca mais uma coisa assim volte a acontecer. Que se passou? Tínhamos perdido o senso ou somos agora traidores ao comunismo? A verdade é que nós, incluindo os que estavam mais perto de Estaline, fizemos dos crimes o contrário do que eles eram. Tomámo-los por importantes contribuições para a vitória do socialismo. Acreditámos que tudo o que reforçasse o poder do Partido Comunista na União Soviética e no mundo era uma vitória do socialismo. Nunca imaginámos que pudesse haver no seio do comunismo um conflito entre a política e a ética".

[...] Nos anos vinte-quarenta, o comunismo estigmatizou violentamente o terror praticado pelos regimes fascistas. Um rápido exame dos números mostra, uma vez mais, que as coisas não são assim tão simples. O fascismo italiano, o primeiro a entrar em acção e que se reivindicou abertamente como "totalitário", encarcerou, sem dúvida, e muitas vezes maltratou, os seus adversários políticos. No entanto, raramente foi até ao assassínio e, em meados dos anos trinta, havia em Itália algumas centenas de presos políticos e várias centenas de confinati - colocados sob residência vigiada nas ilhas -, porém, é verdade, dezenas de milhares de exilados políticos.

Até à guerra, o terror nazi visou alguns grupos; os opositores ao regime - principalmente comunistas, socialistas, anarquistas, certos sindicalistas - foram abertamente reprimidos, encarcerados em prisões e sobretudo internados em campos de concentração, submetidos a um regime severo. No total, de 1933 a 1939, cerca de 20 000 militantes de esquerda foram assassinados após julgamento ou sem julgamento nos campos e prisões; sem falar dos ajustes de contas internos do nazismo, como a Noite dos Facas Longas, em Junho de 1934. Outra categoria de vítimas votada à morte foram os alemães que não correspondiam aos critérios raciais do "ariano alto e louro" - doentes mentais, deficientes físicos, velhos. Hitler decidiu-se a passar das palavras aos actos por ocasião da guerra: 70 000 Alemães foram vítimas de um programa de eutanásia por gaseamento entre o fim de 1939 e o início de 1941, até que as Igrejas protestaram e o programa foi suspenso. Foram os métodos de gaseamento então desenvolvidos que mais tarde viriam a ser aplicados ao terceiro grupo de vítimas, os Judeus.




Juramento ao Führer








 



























Até à guerra, as medidas de exclusão contra eles eram generalizadas, mas a perseguição teve o seu auge na Noite de Cristal - várias centenas de mortos e 35 000 internamentos em campos de concentração. É com a guerra, e sobretudo com o ataque contra a URSS, que se desencadeia o terror nazi, cujo balanço sumário é o seguinte: 15 milhões de civis mortos nos países ocupados, 5,1 milhões de judeus, 3,3 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, 1,1 milhões de deportados mortos nos campos, várias centenas de milhares de ciganos. A estas vítimas somaram-se 8 milhões de pessoas obrigadas a trabalhos forçados e 1,6 milhões de detidos concentracionários que sobreviveram.

O terror nazi impressionou as imaginações por três razões. Em primeiro lugar porque afectou directamente os Europeus. Por outro lado, tendo os nazis sido derrotados e os seus principais dirigentes julgados em Nuremberga, os crimes que cometeram foram oficialmente designados e estigmatizados como tais. Finalmente, a revelação do genocídio dos Judeus foi um choque para as consciências pelo seu carácter aparentemente irracional, pela sua dimensão racista, pela radicalidade do crime.

O nosso propósito não é fazer aqui uma qualquer espécie de macabra aritmética comparativa, nem uma contabilidade em partidas dobradas do horror, ou uma hierarquia da crueldade. Os factos são teimosos, no entanto, e mostram que os regimes comunistas cometeram crimes que afectaram cerca de cem milhões de pessoas, contra os cerca de 25 milhões de pessoas do nazismo. Esta simples verificação deve pelo menos incitar-nos a uma reflexão comparativa sobre a similitude entre o regime que foi considerado a partir de 1945 como o mais criminoso do século e um sistema comunista que conservou, até 1991, toda a sua legitimidade internacional, que ainda hoje está no poder em vários países comunistas e que continua a ter adeptos em todo o mundo. E mesmo se muitos partidos comunistas reconheceram tardiamente os crimes do estalinismo, não abandonaram, na sua maioria, os princípios de Lenine e não se interrogam sobre a sua própria implicação no fenómeno terrorista.

Os métodos postos em acção por Lenine e sistematizados por Estaline e pelos seus émulos não só recordam os métodos nazis, como muitas vezes os antecederam. Rudolf Hoess, encarregado de criar o campo de Auschwitz, e seu futuro comandante, fez a este propósito uma conclusão reveladora: "A Direcção da Segurança tinha feito chegar aos comandantes dos campos uma documentação pormenorizada sobre os campos de concentração russos. Com base no testemunho de alguns evadidos, as condições que neles reinavam eram expostas em todo o pormenor. Sublinhava-se particularmente que os Russos aniquilavam populações inteiras obrigando-as ao trabalho forçado". No entanto, o facto de o grau e as técnicas da violência de massa terem sido inaugurados pelos comunistas e de os nazis terem podido inspirar-se neles não implica, a nossos olhos, que se possa estabelecer uma relação directa de causa e efeito entre a tomada do poder pelos bolcheviques e a emergência do nazismo.

Em finais dos anos vinte, a GPU (nova designação da TchEKA) inaugurou o método das quotas: cada região, cada distrito, tinha a obrigação de prender, deportar ou fuzilar uma certa percentagem de pessoas pertencentes aos estratos sociais "inimigos". Estas percentagens eram centralmente definidas pela direcção do Parido. A loucura planificadora e a mania estatística não atingiram apenas a economia, apoderaram-se também do domínio do terror. Em 1920, depois da vitória do Exército Vermelho sobre o Exército Branco, na Crimeia, apareceram métodos estatísticos, senão mesmo sociológicos: as vítimas são seleccionadas segundo critérios precisos, estabelecidos com base em questionários aos quais ninguém pode furtar-se. Os mesmos métodos "sociológicos" serão postos em prática pelos soviéticos para organizar deportações e liquidações maciças nos Estados bálticos e na Polónia ocupada em 1939-1941. O transporte dos deportados em vagões de gado deu origem às mesmas "aberrações" que no caso nazi: em 1943-1944, em plena batalha, Estaline mandou desviar da frente milhares de vagões e centenas de milhares de homens das tropas especiais do NKVD para assegurar no breve prazo de alguns dias a deportação dos povos do Cáucaso. Esta lógica genocidária - que consiste, para referir o Código Penal francês, na "destruição total ou parcial de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, ou de um grupo determinado a partir de qualquer outro critério arbitrário" - aplicada pelo poder comunista a grupos designados como inimigos, a fracções da sua própria sociedade, foi levada ao paroxismo por Pol Pot e pelos seus khmers vermelhos.








Membros do prezidium da Vcheka. Da esq. para a dir.: Yakov Peters, Jósef Unszlicht, A. Ya Belenky (de pé), Felix Dzerzhinsky, Vyacheslav Menzhinsky.  


[...] Que se sabia sobre os crimes do comunismo? Que se queria saber? Por que razão foi preciso esperar pelo fim do século para que este tema acedesse ao estatuto de objecto de ciência? Porque é evidente que a análise do terror estalinista e comunista em geral, comparada com a análise dos crimes nazis, tem um enorme atraso a recuperar, apesar de no Leste se assistir a uma multiplicação destes estudos.

Neste ponto, não podemos deixar de ficar impressionados por um forte contraste. Os vencedores de 1945 colocaram legitimamente o crime - e em particular o genocídio dos Judeus - no centro da sua condenação do nazismo. Numerosos investigadores no mundo inteiro trabalham há décadas nesta questão. Foram-lhe consagrados milhares de livros, dezenas de filmes, alguns dos quais muito célebres - em registos muito diferentes, Noite e Nevoeiro, ou Shoah, A Escolha de Sofia ou a Lista de Schindler. Raul Hilberg, para referi-lo apenas a ele, centrou a sua obra maior na descrição pormenorizada das modalidades de assassínio de judeus no III Reich.

Ora, a questão dos crimes comunistas não suscitou quaisquer iniciativas deste género. Enquanto os nomes de Himmler ou de Eichman são conhecidos no mundo inteiro como símbolos da barbárie contemporânea, os de Dzerjinski, de Iagoda ou de Iejov continuam ignorados pela maior parte das pessoas. Quanto a Lenine, Mao, Ho Chi Mihn e até Estaline, sempre tiveram direito a uma surpreendente reverência. Um organismo de Estado francês, o Loto, teve inclusivamente a inconsciência de associar Estaline e Mao a uma das suas campanhas publicitárias! Quem se lembraria de utilizar Hitler ou Goebbels numa tal operação?

A atenção excepcional concedida aos crimes hitlerianos é perfeitamente justificada. Responde à vontade dos sobreviventes de testemunhar, dos investigadores de compreender e das autoridades morais e políticas de afirmar os valores democráticos. Mas porquê este débil eco, na opinião pública, dos testemunhos sobre os crimes comunistas? Porquê este silêncio embaraçado dos políticos? E, sobretudo, porquê este silêncio "académico" sobre a catástrofe comunista que afecta, há oitenta anos, cerca de um terço do género humano e quatro continentes? Porquê esta incapacidade de colocar no centro da análise do comunismo um factor tão essencial como o crime, o crime maciço, o crime sistemático, o crime contra a humanidade? Estaremos face a uma impossibilidade de compreender? Não se tratará antes de uma recusa deliberada de saber, de um medo de entender?

As razões desta ocultação são múltiplas e complexas. Funcionou, antes de mais nada, a vontade clássica e constante dos carrascos de apagar os vestígios dos seus crimes e de justificar o que não podiam esconder. O "relatório secreto" de Krushchov de 1956, que constituiu o primeiro reconhecimento dos crimes comunistas pelos próprios dirigentes comunistas, é também o de um carrasco que tenta simultaneamente mascarar e cobrir os seus próprios crimes - como patrão do Partido Comunista ucraniano no auge do terror - atribuindo-os exclusivamente a Estaline e alegando a obediência a ordens, ocultar a maior parte do crime - só fala de vítimas comunistas, muito menos numerosas do que as outras -, eufemizar esses crimes - qualifica-os de "abusos cometidos no tempo de Estaline" -, e finalmente justificar a continuidade do sistema com os mesmos princípios, as mesmas estruturas e os mesmos homens.

Nikita Krushchov e Joseph Estaline (1936).  



Sobre o revisionismo pró-comunista de Grover Furr, ver aqui


























































[...] Confrontado com a propaganda comunista, o Ocidente deu durante muito tempo provas de uma cegueira excepcional, mantida simultaneamente pela ingenuidade face a um sistema particularmente retorcido, pelo receio do poder soviético e pelo cinismo dos políticos e dos grandes "homens de negócios". A cegueira esteve presente no encontro de Ialta, quando Roosevelt entregou a Europa Oriental a Estaline contra a promessa, redigida em boa e devida forma, de que este organizaria o mais rapidamente possível eleições livres. O realismo e a resignação estavam presentes no encontro de Moscovo, quando, em Dezembro de 1944, o general de Gaulle trocou o abandono da infeliz Polónia a Moloch pela garantia de paz social e política, dada por um Maurice Thorez de regresso a Paris.

Esta cegueira foi reforçada, quase legitimada, pela crença, entre os comunistas ocidentais e muitos homens de esquerda, de que esses países estavam em vias de "construir o socialismo", de que essa utopia que, nas democracias, alimentava os conflitos sociais e políticos se transformava, "lá", numa realidade cujo prestígio Simone Weil sublinhou: "Os trabalhadores revolucionários têm a felicidade de ter por detrás deles um Estado - um Estado que dá à sua acção esse carácter oficial, essa legitimidade, essa realidade que só o Estado confere, e que ao mesmo tempo se situa demasiado longe deles, geograficamente, para poder desgostá-los". O comunismo apresentava então a sua face mais clara: reclamava-se do Iluminismo, de uma tradição de emancipação social e humana, do sonho da "igualdade real" e da "felicidade para todos" inaugurada por Gracchus Babeuf. E era esta face luminosa que ocultava quase completamente a face das trevas».

Stéphane Courtois («Os crimes do comunismo», in «O Livro Negro do Comunismo»).


«A guerra de 1914-1918 foi conduzida com êxito para assegurar ao comunismo uma posição geográfica importante na Rússia. A guerra de 1939-1945 foi suscitada para estender o totalitarismo vermelho à Europa Central e ao continente chinês.

A guerra europeia estava efectivamente terminada em 1944, um ano antes de ter acabado oficialmente. O Alto-Comando alemão solicitou com insistência a paz desde 1944, por intermédio do seu embaixador na Turquia, ajuntando que se procurava neutralizar Hitler. O Alto-Comando alemão era perfeitamente capaz de o fazer. Evidentemente, estas negociações deviam ser conduzidas no maior segredo e a mensagem não foi enviada senão a Roosevelt. O presidente americano nunca abriu a boca sobre este assunto e não o participou senão aos seus mais íntimos colaboradores, que eram todos "Iniciados". Isto é contado por um americano muito patriota, Curtis Dale, que se descobriu ser o único genro de Roosevelt, num livro "FDR: My Exploited Father-in-Law". Os generais americanos que comandavam as forças europeias, em 1944, queriam alcançar a Checoslováquia e daí subir até Berlim - tê-lo-iam feito facilmente. Mas foram impedidos por Eisenhower, um dos "Iniciados" do mais alto grau ou, talvez, como Roosevelt, um agente bem colocado dos mundialistas. Naturalmente, os generais alemães nunca foram postos ao corrente a respeito desta oferta de paz solicitada pelo Alto-Comando alemão.

Já que mencionamos o general Eisenhower, será bom acrescentar que ele foi pessoalmente responsável por um crime que deverá encher de vergonha os ocidentais. Refiro-me ao envio para os braços de Estaline de milhões de refugiados, uma parte dos quais fugira da Rússia no princípio da Revolução de Outubro e vivia na Alemanha. A questão do seu destino, debatida em Potsdam e Ialta, merecera o explícito acordo de Estaline, Roosevelt e Churchill de que não haveria repatriamento forçado. Apesar disso, e sob as ordens de Eisenhower, não menos de dois milhões deles foram encaixotados pela força das baionetas nos vagões de gado, ou noutros transportes rudimentares, e expedidos para a URSS. Muitos lançaram-se ao mar e suicidaram-se de todas as maneiras, antes de se encontrarem no arquipélago de Goulag, que seria, eles sabiam-no, o seu último destino (Este episódio vergonhoso é presentemente conhecido, perfeitamente, graças a vários livros tais como o de Lord Bethell ("Le Dernier Secret"), ed. Le Seuil 1975, que a imprensa comprometida, como é hábito, desconheceu).



Hitler saúda membros da Juventude Hitleriana, antes de dar entrada no Bunker, onde se suicidaria.




Soldados do Exército Vermelho erguem a bandeira soviética no topo do Reichstag (Berlim, 1945).




A Chancelaria do Reich em destroços (Berlim, 1945).




Rendição das Forças Alemãs aos Aliados








Dwight Eisenhower e Georgy Zhukov (5 de Junho de 1945).










D. Eisenhower recebe Nikita Krushchov na sua quinta em Gettysburg, Pennsylvania (26 de Setembro de 1959).








Se era fácil ao Exército americano subir até Berlim e entrar na Europa, fácil teria sido também movimentar-se para a Polónia, Pomerânia e Prússia Oriental. Entretanto, se a guerra se desencadeara para impor o comunismo em todos estes países, os exércitos americanos deviam estar imobilizados. Arthur Bliss Lane era o embaixador dos Estados Unidos na Polónia em 1945. Estava por conseguinte no galarim para observar todas as intrigas que se travavam para se estabelecer na Polónia um governo comunista. (Recordemos que a guerra foi declarada pela Inglaterra sob o pretexto de garantir a liberdade da Polónia). O embaixador Bliss Lane enviou comunicado sobre comunicado para Washington, descrevendo a situação dramática da Polónia e pedindo insistentemente aos aliados - os Estados Unidos, o Reino Unido e a França - para intervir para salvar o país. Quando se apercebeu que os seus despachos eram completamente ignorados demitiu-se do seu posto, regressou aos Estados Unidos e escreveu um livro "I Saw Poland Betrayed" ("Vi a Polónia Traída"). Como todas as outras obras excelentes, escritas por homens corajosos, versando nesta época, tentando esclarecer e acautelar os contemporâneos, esta foi também rodeada do mais completo silêncio; um silêncio de morte. Apenas pessoas influentes e capazes de remediar a situação tomaram conhecimento da horrível verdade. Deste modo a liberdade dos polacos, no termo de uma guerra inexpiável, foi abandonada aos ternos cuidados de Estaline. Como tem sido dito para o pseudo-tratado de paz que resultou no fim da guerra de 1914-1918, este não foi um tratado de paz mas uma pausa entre as hostilidades».

Deirdre Manifold («Fátima e a Grande Conspiração»).


«A ocultação da dimensão criminal do comunismo releva, no entanto, de três razões mais específicas. A primeira relaciona-se com o apego à própria ideia de revolução. Ainda hoje, o período de luto da ideia de revolução, tal como foi encarada nos séculos XIX e XX, está longe de ter terminado. Os seus símbolos - bandeira vermelha, Internacional, punho erguido - ressurgem com cada movimento social de envergadura. Che Guevara volta a estar na moda. Grupos abertamente revolucionários estão activos e exprimem-se com toda a legalidade, respondendo com o desprezo à mais pequena reflexão crítica sobre os crimes dos seus predecessores e não hesitando em reiterar os velhos discursos justificadores de Lenine, de Trotski ou de Mao. Esta paixão revolucionária não é um exclusivo dos outros. Vários autores deste livro acreditaram, a dada altura, na propaganda comunista.

A segunda razão tem a ver com a participação dos Soviéticos na vitória sobre o nazismo, que permitiu aos comunistas mascararem sob um patriotismo ardente os seus verdadeiros objectivos, que visavam a tomada do poder. A partir de Junho de 1941, os comunistas do conjunto dos países ocupados entraram numa resistência activa - e frequentemente armada - contra o ocupante nazi ou italiano. Como os resistentes de outras obediências, pagaram o preço da repressão, tiveram milhares de fuzilados, de deportados. E jogaram com estes mártires para sacralizarem a causa comunista e proibirem toda e qualquer crítica a seu respeito. Além disso, no decurso da luta da Resistência, muitos não-comunistas criaram laços de solidariedade, de combate, de sangue, com comunistas, o que impede muitos olhos de abrirem-se; em França, a atitude dos gaulistas foi frequentemente regida por esta memória comum, encorajada pela política do general de Gaulle, que utilizava o contrapeso soviético para fazer face aos Americanos.

Esta participação dos comunistas na guerra e na vitória sobre o nazismo fez definitivamente triunfar a noção de antifascismo como critério da verdade à esquerda e, bem entendido, os comunistas apresentaram-se como os melhores representantes e os melhores defensores deste antifascismo. O antifascismo tornou-se para o comunismo um rótulo definitivo e foi-lhe fácil, em nome do antifascismo, calar os recalcitrantes. François Furet escreveu sobre este ponto crucial páginas luminosas. Depois de os Aliados terem designado o nazismo derrotado como o "Mal absoluto", o comunismo caiu quase que automaticamente no campo do Bem. Isto foi evidente durante o processo de Nuremberga, em que os Soviéticos figuraram nas fileiras dos acusadores. Assim foram prestamente escamoteados os episódios embaraçosos face aos valores democráticos, como os pactos germano-soviéticos de 1939 ou a matança de Katyn. Era suposto que a vitória sobre o nazismo fornecesse a prova da superioridade do sistema comunista. Teve sobretudo como efeito, na Europa libertada pelos Anglo-Americanos, de suscitar um duplo sentimento de gratidão relativamente ao Exército Vermelho (cuja ocupação não se era forçado a sofrer) e de culpabilidade relativamente aos sacrifícios suportados pelos povos da URSS, sentimentos que a propaganda comunista não deixou de aproveitar ao máximo.






Memorando de Lavrentiy Beria a Joseph Stalin, propondo a execução dos oficiais polacos.







Katyn (Rússia), Abril de 1943. Os Alemães descobrem em valas os cadáveres de 4 500 oficiais polacos. Uma comissão da Cruz Vermelha concluiu que tinham sido executados pelos Soviéticos, na Primavera de 1940 (ao todo, houve 25 000 desaparecidos). Símbolo do homicídio em massa, Katyn é igualmente símbolo da mentira: até 1989, o governo comunista da Polónia e os comunistas do mundo inteiro atribuíram o crime aos Alemães.






Katyn Memorial Statue, Jersey City


Paralelamente, as modalidades da "libertação" da Europa de Leste pelo Exército Vermelho permaneceram largamente ignoradas no Ocidente, onde os historiadores assimilaram dois tipos de "libertação" muito diferentes: um conduzia à restauração de democracias, o outro abria caminho à instauração de ditaduras. Na Europa Central e Oriental, o sistema soviético postulava a sucessão do Reich de mil anos, e Witold Gombrowicz exprimiu em poucas palavras o drama desses povos: "O fim da guerra não trouxe a libertação para os Polacos. Nesta triste Europa Central, significou apenas a substituição de uma noite por outra, dos carrascos de Hitler pelos de Estaline. No preciso instante em que, nos cafés parisienses, as boas almas saudavam com cantos radiosos a "emancipação do povo polaco do jugo feudal", na Polónia o mesmo cigarro aceso mudava simplesmente de mão e continuava a queimar a pele humana". Reside aqui a falha entre duas memórias europeias. No entanto, muitas obras levantaram muito rapidamente o véu sobre a maneira como a URSS libertou do nazismo Polacos, Alemães, Checos e Eslovacos.

A última razão da ocultação é mais subtil, e também mais delicada de exprimir. Depois de 1945, o genocídio dos Judeus apareceu como o paradigma da barbárie moderna, ao ponto de ocupar todo o espaço reservado à percepção do terror de massa no século XX. Depois de terem, numa primeira fase, negado a especificidade da perseguição dos Judeus pelos nazis, os comunistas compreenderam toda a vantagem que podiam tirar de um tal reconhecimento para reactivarem regularmente o antifascismo. O espectro da "besta imunda cujo ventre continua fecundo" - segundo a famosa fórmula de Bertolt Brecht - foi continuamente agitado, a propósito de tudo e de nada. Mais recentemente, o acento tónico na "singularidade" do genocídio dos Judeus, focando as atenções numa atrocidade excepcional, impediu a percepção de outras realidades da mesma ordem no mundo comunista. E depois, quem imaginaria que aqueles que tinham contribuído, com a sua vitória, para destruir um sistema genocidário pudessem praticar eles próprios os mesmos métodos? O reflexo mais comum foi não encarar semelhante paradoxo.

A primeira grande viragem no reconhecimento oficial dos crimes comunistas situa-se a 24 de Fevereiro de 1956. Nessa tarde, Nikita Krushchov, primeiro-secretário, sobe à tribuna do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o PCUS. A sessão decorre à porta fechada; só estão presentes os delegados ao congresso. Num silêncio absoluto, aterrados, ouvem o primeiro-secretário do Partido destruir sistematicamente a imagem do "paizinho dos povos", do "genial Estaline" que foi, durante trinta anos, o herói do comunismo mundial. Este relatório, conhecido desde então como o "relatório secreto", constitui uma das inflexões fundamentais do comunismo contemporâneo. Pela primeira vez, um dirigente comunista ao mais alto nível reconheceu oficialmente, ainda que para informação exclusiva dos comunistas, que o regime que se apodera do poder em 1917 conhecera uma "deriva" criminosa.

Eram múltiplas as razões que levaram o "Senhor K" a quebrar um dos maiores tabus do regime soviético. O seu objectivo principal era imputar os crimes do comunismo exclusivamente a Estaline, e assim circunscrever o mal e excisá-lo a fim de salvar o regime. Entrou igualmente na sua decisão a vontade de desferir um ataque contra o clã dos estalinistas que se opunha ao seu poder em nome dos métodos do antigo chefe, e de resto, no Verão de 1957, estes homens foram demitidos de todas as suas funções. No entanto, pela primeira vez desde 1934, a sua "liquidação política" não foi seguida de uma liquidação real, e vê-se, por este simples "pormenor", que as motivações de Krushchov eram mais profundas. Ele, que tinha sido durante anos o grande patrão da Ucrânia e que, a esse título, ordenara e encobrira matanças gigantescas, parecia cansado de todo aquele sangue. Nas memórias que escreveu, e nas quais atribuiu a si mesmo um belo papel, Krushchov recorda os seus estados de alma: "O Congresso vai terminar; serão adoptadas resoluções, todas por uma questão de forma. Mas quê? Os que foram fuzilados às centenas de milhares continuarão a pesar nas nossas consciências".



Uma das numerosas ordens de execução assinadas por Estaline. Na época do Grande Terror, essas ordens eram diárias: esta refere-se a 6600 pessoas. Mais do que todos os opositores políticos enforcados sob o regime czarista durante o século que antecedeu o golpe de Estado bolchevique de 1917.



Vinnitsa (Ucrânia), Junho de 1943. São abertas valas de 1937-1939, contendo centenas de cadáveres. Por cima, as autoridades tinham instalado um parque de cultura e lazer... Em Jitomir, Kamenets-Podolskii, etc., foram descobertas valas semelhantes. Ainda hoje estas descobertas são correntes: no Verão de 1997, foram exumados 11 000 cadáveres perto de S. Petersburgo, e 9 000 outros numa vala na floresta de Carélia.



Ao mesmo tempo, apostrofa duramente os seus camaradas:

"Que vamos fazer dos que eram presos, liquidados? [...] Sabemos agora que as vítimas das repressões estavam inocentes. Temos a prova irrefutável de que, longe de serem inimigos do povo, eram homens e mulheres honestos, dedicados ao partido, à Revolução, à causa leninista da edificação do socialismo e do comunismo. [...] É impossível encobrir tudo. Mais cedo ou mais tarde, os que estão nas prisões, nos campos, hão-de sair e regressar a suas casas. Contarão então aos parentes, aos amigos, aos camaradas, o que se passou. [...] Por isso somos forçados a confessar tudo aos delegados sobre a maneira como o Partido Comunista foi dirigido naqueles anos. [...] Como fingir não saber o que se passou? [...] Sabemos que era o reinado da repressão e da arbitrariedade dentro do Partido e devemos dizer ao Congresso o que sabemos. (...) Na vida de quem quer que tenha cometido um crime, chega sempre o momento em que a confissão lhe assegura a indulgência, senão a absolvição".

Em alguns destes homens que tinham participado directamente nos crimes sob o consulado de Estaline que, na sua maior parte, deviam as promoções ao extermínio dos seus predecessores nas funções, nascia uma certa forma de remorso; um remorso forçado, é certo, um remorso interessado, um remorso político, mas mesmo assim um remorso. Era preciso que alguém pusesse fim à matança; Krushchov teve essa coragem, ainda que, em 1956, não tenha hesitado em enviar os tanques soviéticos contra Budapeste.

Em 1961, quando do XXII Congresso do PCUS, Krushchov evocou não só as vítimas comunistas, mas o conjunto das vítimas de Estaline, e propôs inclusivamente que fosse erguido um monumento à sua memória. Ao fazê-lo, ultrapassou certamente o limite invisível a partir do qual era posto em causa o próprio princípio do regime: o monopólio absoluto do poder reservado ao Partido Comunista. O monumento nunca viu a luz do dia. Em 1962, o primeiro-secretário autorizou a publicação de Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch, de Alexandre Soljenitsyne. A 24 de Outubro, Krushchov foi brutalmente demitido de todas as suas funções, mas também ele não foi fisicamente eliminado e acabou por morrer no anonimato, em 1971.

Todos os analistas reconhecem a importância decisiva do "relatório secreto" que provocou uma ruptura fundamental na trajectória do comunismo no século XX. François Furet, que acabava justamente de abandonar o Partido Comunista Francês em 1954, escreveu a este propósito: "Ora eis que o 'relatório secreto' de Fevereiro de 1956 abala, mal é conhecido, o estatuto da ideia comunista no universo. A voz que denuncia os crimes de Estaline já não vem do Ocidente, mas de Moscovo, e do santo dos santos em Moscovo, o Kremlin. Não é já a de um comunista desiludido, mas do primeiro dos comunistas do mundo inteiro, o líder do Partido da União Soviética. Em vez, portanto, de ser atingida pela suspeita que pesa sobre o discurso de todos os ex-comunistas, ela reveste a autoridade suprema com que o sistema investiu o seu chefe. [...] O extraordinário poder do "relatório secreto" sobre os espíritos vem do facto de não ter contraditores".

O acontecimento foi tão mais paradoxal quanto, logo desde o início, muitos contemporâneos tinham prevenido os bolcheviques contra os perigos do seu comportamento. Em 1917-1918 tinham-se confrontado no próprio seio do movimento socialista os crentes da "grande luz a oriente" e aqueles que criticavam sem remissão os bolcheviques. A disputa incidia essencialmente sobre o método de Lenine: violência, crimes, terror. Apesar de, ter sido denunciado por numerosas testemunhas, vítimas ou observadores qualificados, e em inúmeros artigos e obras, foi necessário esperar que os comunistas no poder reconhecessem eles próprios - e mesmo assim de uma maneira limitada - esta realidade para que uma fracção cada vez mais vasta da opinião pública começasse a tomar consciência do drama. Reconhecimento enviesado, uma vez que o "relatório secreto" abordava exclusivamente a questão das vítimas comunistas; reconhecimento apesar de tudo, que trazia uma primeira confirmação dos testemunhos e estudos anteriores e corroborava o que havia muito todos suspeitavam: o comunismo tinha provocado na Rússia uma imensa tragédia».

Stéphane Courtois («Os crimes do comunismo», in «O Livro Negro do Comunismo»).







«[...] A existência do PC é [...] uma ameaça à liberdade dos Portugueses. E a sua ilegalização será uma medida que os governantes têm de considerar necessária – pois reconhecem e declaram que tal Partido é um obstáculo ao bom governo do nosso povo –, mas nenhum deles se atreve a propô-la por algum inconfessável motivo: velhas ligações, velhos compromissos, velhos temores e medos. Aliás, a "esmagadora" (como dizem os políticos esmagadores) maioria dos Portugueses, tendo conhecido e sofrido o erro e o mal do PC, deseja a sua abolição, e só o não manifesta expressamente porque os políticos não lhe dão oportunidade de o fazer e antes lhe transmitem as inibições que a eles os prendem».

Orlando Vitorino («A existência do PCP é uma ameaça à liberdade dos Portugueses»).





O TERROR VERMELHO


«Os bolcheviques dizem abertamente que os seus dias estão contados», contava Karl Hefferich, embaixador alemão em Moscovo, numa comunicação ao seu governo, a 3 de Agosto de 1918. «Um autêntico pânico invadiu Moscovo... Correm os rumores mais loucos a respeito dos "traidores" que se teriam introduzido na cidade».

Nunca os bolcheviques tinham visto o seu poder tão ameaçado como no decurso do Verão de 1918. Com efeito, já só controlavam um território reduzido à Moscóvia histórica, face a três frentes antibolcheviques agora solidamente estabelecidas: uma na região do Don, ocupada pelas tropas cossacas do atamã Krasnov e pelo Exército Branco do general Denikine; a segunda na Ucrânia; a terceira ao longo do Transsiberiano, onde a maior parte das cidades tinha caído sob o controlo da Legião Checa, cuja ofensiva era apoiada pelo governo socialista-revolucionário de Samara.

Nas regiões mais ou menos controladas pelos bolcheviques, rebentaram durante o Verão de 1918 quase cento e quarenta revoltas e insurreições de grande amplitude; as mais frequentes eram obra de comunidades camponesas que se recusavam a satisfazer as requisições brutalmente apresentadas pelos destacamentos de abastecimento, de obedecer às limitações impostas ao comércio privado e a acatar as novas mobilizações de recrutas para o Exército Vermelho (1). Os camponeses enfurecidos dirigiam-se em massa à cidade mais próxima e cercavam o soviete; a tropa, as milícias encarregadas de manter a ordem e, cada vez mais frequentemente, destacamentos da TchEKA não hesitavam em abrir fogo contra os manifestantes.

Os dirigentes bolcheviques viam nestas confrontações, cada vez mais numerosas com o passar do tempo, uma vasta conspiração contra-revolucionária, dirigida contra eles por «kulaks disfarçados de Guardas Vermelhos».

«É evidente que está em preparação, em Nijni-Novgorod, um levantamento dos Guardas Brancos», telegrafava Lenine, a 9 de Agosto de 1918, ao presidente do comité executivo do soviete dessa cidade, que acabava de dar-lhe conta de incidentes envolvendo camponeses que protestavam contra as requisições. «Há que formar imediatamente uma "troika" ditatorial (você, Markine e um outro), introduzir sem mais demora o terror de massas, fuzilar ou deportar as centenas de prostitutas que incitam os soldados a beber, todos os ex-oficiais, etc. Não há um minuto a perder... É preciso agir resolutamente: buscas maciças. Execução por porte de arma. Deportação maciça dos mencheviques e de outros elementos suspeitos» (2). No dia seguinte, 10 de Agosto, Lenine enviou outro telegrama de idêntico teor ao Comité Executivo do Soviete de Penza:

«Camaradas! A sublevação kulak nos vossos cinco distritos deve ser esmagada sem piedade. Exigem-no os interesses da revolução inteira, pois a partir deste momento começou em todo o lado a "luta final" contra os kulaks. É preciso dar um exemplo. 1) Enforcar (e digo enforcar de maneira que as pessoas vejam) pelo menos 100 kulaks, ricaços, sanguessugas conhecidos. 2) Publicar os respectivos nomes. 3) Confiscar-lhes a colheita. 4) Identificar os reféns como indicámos no nosso telegrama de ontem. Façam isto de maneira que em centenas de léguas em redor as pessoas vejam, tremam, saibam e digam a si mesmas: eles matam e continuarão a matar os kulaks sedentos de sangue. Telegrafe a confirmar que recebeu estas instruções. Seu, Lenine.

P.S. Arranje as pessoas mais duras» (3).


«A Rússia inocente contorcia-se de dor/Sob as botas ensanguentadas/"Sob os pneus negros dos furgões celulares», escreve na época a poetisa Anna Akhmatova, cujo filho estava preso (Requiem). Estes «corvos negros», como eram designados pelos Moscovitas, transportavam prisioneiros da Lubianka para as prisões de Lefortovo ou de Butyrka, por vezes disfarçados de viaturas de padeiro.


De facto, como testemunha uma leitura atenta dos relatórios da TchEKA sobre as revoltas do Verão de 1918, só os levantamentos de Iaroslavl, Rybinsk e Murom, organizados pela União de Defesa da Pátria do dirigente socialista-revolucionário Boris Savinkov, e o dos operários das fábricas de armamento de Ijevsk, inspirado pelos mencheviques e pelos socialistas-revolucionários locais, foram, ao que parece, previamente preparados. Todas as outras insurreições se desenvolveram espontânea e pontualmente a partir de incidentes em que estiveram envolvidas comunidades camponesas que recusavam as requisições ou a mobilização. Foram reprimidas em poucos dias por destacamentos seguros do Exército Vermelho da TchEKA. Só a cidade de Iaroslavl, onde os destacamentos de Savinkov tinham derrubado o poder bolchevique local, resistiu uma quinzena de dias. Após a queda da cidade, Dzerjinski enviou para Iaroslavl uma «comissão especial de inquérito» que, em cinco dias, de 24 a 28 de Julho de 1918, mandou executar quatrocentas e oitenta e oito pessoas (4).

Durante todo o mês de Agosto de 1918, isto é, antes do desencadeamento «oficial» do Terror Vermelho a 3 de Setembro, os dirigentes bolcheviques com Lenine e Dzerjinski à cabeça, enviaram um grande número de telegramas aos responsáveis locais da TchEKA ou do Partido, pedindo-lhes que tomassem medidas profilácticas» para prevenir qualquer tentativa de insurreição. Entre estas medidas, explicava Dzerjinski, «as mais eficazes são o sequestro de reféns entre a burguesia, a partir das listas que estabeleceram para as contribuições excepcionais impostas aos burgueses, [...] a prisão e o encarceramento de todos os reféns e suspeitos em campos de concentração» (5). A 8 de Agosto, Lenine pediu a Tsuriupa, comissário do povo para o Abastecimento, que redigisse um decreto nos termos do qual «em cada distrito produtor de cereais, vinte e cinco reféns escolhidos entre os habitantes mais abastados responderão com as suas vidas pela não-realização do plano de requisição». Uma vez que Tsuriupa fazia orelhas moucas, alegando a dificuldade de organizar um tal sequestro de reféns, Lenine enviou-lhe uma segunda nota ainda mais explícita: «Não sugiro que os reféns sejam efectivamente sequestrados, mas que sejam designados pelo nome em cada distrito. O objectivo desta designação é que os ricos, tal como são responsáveis pelas suas contribuições, sejam responsáveis, sob pena de morte, pela realização imediata do plano de requisição nos respectivos distritos» (6).

Além do sistema de reféns, os dirigentes bolcheviques experimentaram, em Agosto de 1918, um outro instrumento de repressão aparecido na Rússia durante os anos de guerra: o campo de concentração. A 9 de Agosto, Lenine telegrafou ao Comité Executivo da província de Penza, mandando meter «os kulaks, os padres, os Guardas Brancos e outros elementos duvidosos num campo de concentração» (7).

Alguns dias antes, Dzerjinski e Trotski tinham igualmente prescrito o encarceramento de reféns em «campos de concentração». Tratava-se de campos de internamento onde deviam ser conservados, como simples medida administrativa e sem qualquer espécie de julgamento, os «elementos duvidosos». Existiam na Rússia, como noutros países beligerantes, numerosos campos, onde tinham sido internados prisioneiros de guerra.

Entre os«elementos duvidosos» a deter preventivamente figuravam, à cabeça, os responsáveis políticos pelos partidos da oposição ainda em liberdade. A 15 de Agosto de 1918, Lenine e Dzerjinski assinaram a ordem de prisão dos principais dirigentes do Partido Menchevique - Martov, Dan, Potressov, Goldman -, cuja imprensa fora já reduzida ao silêncio e cujos representantes tinham sido expulsos dos sovietes (8).

Para os dirigentes bolcheviques, tinham-se diluído as fronteiras entre as diferentes categorias de opositores, numa guerra civil que, explicavam eles, tinha as suas próprias leis.



Ao desencadear a guerra civil, os bolcheviques abrem caminho a uma violência inaudita. Em Orcha, em 1918, um oficial polaco dependurado e empalado por soldados do Exército Vermelho.



«A guerra civil não conhece leis escritas», escrevia Latsis, um dos principais colaboradores de Dzerjinski, no Izvestia de 23 de Agosto de 1918. «A guerra capitalista tem as suas leis escritas [...] mas a guerra civil tem as suas próprias leis [...] É preciso não só destruir as forças activas do inimigo, mas mostrar que quem erguer a espada contra a ordem de classe existente morrerá pelas espada. Tais são as regras que a burguesia sempre observou nas guerras civis que conduziu contra o proletariado. [...] Ainda não assimilámos suficientemente essas regras. Matam os nossos às centenas e aos milhares. Nós executamos os deles um a um, após longas deliberações diante de comissões e de tribunais. Na guerra civil, não há tribunais para o inimigo. É uma luta de morte. Se não matas, serás morto. Então mata, se não queres morrer! (9).

A 30 de Agosto de 1918, dois atentados, um contra M. S. Uritski, chefe da TchEKA de Petrogrado, o outro contra Lenine, reafirmaram os dirigentes bolcheviques na ideia de que uma verdadeira conspiração ameaçava as suas vidas. Na realidade, estes dois atentados não tiveram qualquer relação entre si. O primeiro foi cometido, na mais pura tradição do terrorismo revolucionário populista, por um jovem estudante que queria vingar um amigo oficial executado alguns dias antes pela TchEKA de Petrogrado. Quanto ao segundo, dirigido contra Lenine, durante muito tempo atribuído a Fanny Kaplan, uma militante próxima dos meios anarquistas e socialistas-revolucionários, imediatamente presa e executada sem julgamento três dias mais tarde, parece hoje ter sido o resultado de uma provocação organizada pela TchEKA e que escapou ao controlo dos seus instigadores (10). O governo bolchevique não perdeu tempo a atribuir estes atentados aos «socialistas-revolucionários de direita, lacaios do imperialismo francês e inglês». No dia seguinte, artigos de imprensa e declarações oficiais apelavam ao desenvolvimento do terror:

«Trabalhadores», escrevia o Pravda de 31 de Agosto de 1918, «chegou a hora de aniquilar a burguesia, senão sereis aniquilados por ela. As cidades devem ser implacavelmente limpas de toda a putrefacção burguesa. Todos esses senhores serão fichados e aqueles que representam um perigo para a causa revolucionária serão exterminados. [...] O hino da classe operária será um cântico de ódio e de vingança!» (11).

No mesmo dia, Dzerjinski e o seu adjunto Peters redigiram um «Apelo à Classe Operária» no mesmo tom: «Que a classe operária esmague, por um terror maciço, a hidra da contra-revolução! Que os inimigos da classe operária saibam que todo o indivíduo apanhado na posse ilícita de uma arma será imediatamente executado, que todo o indivíduo que ouse fazer a mais pequena propaganda contra o regime soviético será imediatamente preso e encarcerado num campo de concentração!». Publicado no Izvestia de 3 de Setembro, este apelo foi seguido, no dia seguinte, pela divulgação de uma instrução enviada por N. Petrovski, comissário do povo para o Interior, a todos os sovietes. Petrovski queixava-se de que, a despeito da «repressão maciça» exercida pelos inimigos do regime contra as «massas laboriosas», o Terror Vermelho tardava a fazer-se sentir:

«É mais que tempo de pôr fim a esta tibieza e a este sentimentalismo. Todos os socialistas-revolucionários de direita devem ser imediatamente detidos. Deve ser feito um grande número de reféns entre a burguesia e os oficiais. À mínima resistência, há que recorrer a execuções em massa. Os comités executivos provinciais devem dar provas de iniciativa neste domínio. As tchekas e outras milícias devem detectar e prender todos os suspeitos e executar imediatamente todos os que estejam envolvidos em actividades contra-revolucionárias. [...] Os responsáveis dos comités executivos devem informar imediatamente o comissariado do povo para o Interior de toda a tibieza ou indecisão por parte dos sovietes locais. [...] Nenhuma fraqueza, nenhuma hesitação será tolerada na instauração do terror de massas» (12).



Félix Dzerjinski



Este telegrama, sinal oficial do Terror Vermelho em grande escala, refuta a argumentação desenvolvida a posteriori por Dzerjinski e Peters, segundo a qual «o Terror Vermelho, expressão da indignação geral e espontânea das massas contra os atentados de 30 de Agosto de 1918, começou sem qualquer directiva do Centro». Na verdade, o Terror Vermelho era o exutório natural de um ódio quase abstracto que a maior parte dos dirigentes bolcheviques alimentava em relação aos «opressores» que estavam dispostos a liquidar, não individualmente, mas «enquanto classe». Nas suas memórias, o dirigente menchevique Rafael Abramovitch relata uma conversa muito reveladora que teve, em Agosto de 1917, com Félix Dzerjinski, o futuro chefe da TchEKA:

«- Abramovitch, lembras-te do discurso de Lassalle sobre a essência de uma Constituição?

- Claro.

- Dizia que toda a Constituição é determinada pela relação das forças sociais num país e num momento dados. Pergunto a mim mesmo como esta correlação entre o social e o político poderia mudar.

- Pois, por diversos processos de evolução económica e política, pela emergência de novas formas económicas, pela ascensão de certas classes sociais, etc., tudo coisas que tu conheces perfeitamente, Félix.

- Sim, mas não seria possível mudar radicalmente essa correlação? Por exemplo, pela subordinação ou extermínio de certas classes da sociedade?» (13)

Esta crueldade fria, calculada, fruto de uma lógica implacável de «guerra de classes» levada ao extremo, era partilhada por muitos bolcheviques, Grigori Zinoviev, declarou: «Para derrotar os nossos inimigos, devemos ter o nosso próprio terror socialista. Devemos ter do nosso lado digamos noventa dos cem milhões de habitantes da Rússia soviética. Quanto aos outros, não temos nada a dizer-lhes. Devem ser aniquilados» (14).

A 5 de Setembro, o governo soviético legalizou o terror através do famoso decreto «Sobre o Terror Vermelho»: «Na situação actual, é absolutamente vital reforçar a TchEKA [...], proteger a República soviética contra os seus inimigos de classe isolando estes em campos de concentração, fuzilar imediatamente qualquer indivíduo implicado nas organizações dos Guardas Brancos, em conjuras, em insurreições ou em motins, publicar os nomes dos indivíduos fuzilados, explicando as razões por que foram passados pelas armas» (15). Como Dzerjinski reconheceu posteriormente, «os textos de 3 e 5 de Setembro atribuíam-nos finalmente o direito legal de acabar sem mais delongas, sem ter de prestar contas a quem fosse, com a escumalha contra-revolucionária, algo que até então provocara protestos até por parte de alguns camaradas do Partido».

Numa circular interna datada de 17 de Setembro, Dzerjinski convidou todas as tchekas locais a «acelerar os processos e a encerrar, ou seja, a liquidar, os casos em suspenso» (16). As «liquidações» tinham, na realidade, começado a 31 de Agosto. A 3 de Setembro, o Izvestia relatava que mais de quinhentos reféns tinham sido executados em Petrogrado, no decorrer dos dias anteriores, pela tcheka local. Segundo uma fonte tchekista, oitocentas pessoas teriam sido executadas em Petrogrado durante o mês de Setembro de 1918. Este número está fortemente subestimado. Uma testemunha dos acontecimentos relatava os pormenores seguintes: «Para Petrogrado, um cálculo superficial dá 1300 execuções. [...] Os bolcheviques não incluem nas suas "estatísticas" as centenas de oficiais e de civis fuzilados em Kronstadt por ordem das autoridades locais. Só em Kronstadt, e numa só noite, foram fuziladas 400 pessoas. Depois de terem aberto na parada três grandes fossas, colocaram 400 pessoas diante delas e executaram-nas uma a uma» (17). Numa entrevista concedida, a 3 de Novembro de 1918, ao jornal Utro Moskvy, o braço direito de Dzerjinski, Peters, reconheceu que «em Petrogrado, os tchekistas piegas (sic) acabaram por perder a cabeça e pecaram por excesso de zelo. Antes do assassínio de Uritski, não tínhamos executado ninguém - e, acredite, apesar de tudo o que alguns afirmam, eu não sou tão sanguinário como se diz -, ao passo que depois houve um pouco de exagero nas execuções, muitas vezes sem discernimento. Mas Moscovo, pelo seu lado, limitou-se a responder ao atentado contra Lenine com a execução de alguns ministros do czar» (18). Ainda segundo o Izvestia, «apenas» vinte e nove reféns, pertencentes ao «campo da contra-revolução», foram passados pelas armas, em Moscovo, a 3 e 4 de Setembro. Entre eles figuravam dois ex-ministros de Nicolau II, N. Khvostov (Interior) e I. Chtcheglovitov (Justiça). No entanto, numerosos testemunhos concordantes referem centenas de execuções de reféns no decurso das «matanças de Setembro» nas prisões moscovitas.






Praça Lubyanka (Moscovo).


Nestes tempos de Terror Vermelho, Dzerjinski manda publicar um jornal, o Ejenedelnik VtchK (O Hebdomadário da TchEKA) abertamente encarregado de apregoar os méritos da polícia política e de encorajar «o justo desejo de vingança das massas». Durante seis semanas e até à sua supressão, por ordem do Comité Central, numa altura em que a TchEKA era contestada por um certo número de responsáveis bolcheviques, este hebdomadário relatou sem disfarces nem pudor os sequestros de reféns, os internamentos nos campos de concentração, as execuções, etc. Constitui uma fonte oficial e a mínima do Terror Vermelho para os meses de Setembro e Outubro de 1918. Nele se lê que a tcheka de Nijni-Novgorod, particularmente disposta a reagir às ordens de Nikolai Bulganine - futuro chefe de Estado soviético de 1954 a 1957 -, executou, em 31 de Agosto, 141 reféns; nesta cidade média da Rússia foram presas 700 pessoas em três dias. De Viatka, a tcheka regional dos Urales, evacuada de Ekaterinburgo, anunciava a execução de 23 «ex-polícias», 154 «contra-revolucionários», 8 «monárquicos», 28 «membros do Partido Constitucional-Democrata», 186 «oficiais», 10 «mencheviques e socialistas-revolucionários» e a criação de um «campo de concentração com 1000 lugares». A tcheka da pequena cidade de Sebejsk podia anunciar apenas «16 kulaks e um padre que tinha rezado uma missa para o tirano sanguinário Nicolau II»; a tcheka de Tver dava conta do sequestro de 130 reféns e 39 execuções. A tcheka de Pern, relatava 50 execuções. Poderíamos prolongar este catálogo macabro, tirado de alguns excertos dos seis números publicados do Hebdomadário da Tcheka (19).

Outros jornais provinciais deram igualmente conta, durante o Outono de 1918, de milhares de prisões e de execuções. Assim, para referir apenas dois exemplos: o único número publicado do Izvestia Tsaritsynskoi Gubtcheka (Notícias da TchEKA da Província de Tsaritsyne) dava nota da execução de 103 pessoas na semana de 3 a 10 de Setembro de 1918. De 1 a 8 de Novembro de 1918, 371 pessoas passaram pelo tribunal local da tcheka: 50 foram condenadas à morte, as outras «ao internamento num campo de concentração, como medida profiláctica, e na qualidade de reféns, até à liquidação completa de todas as insurreições contra-revolucionárias». O único número do Izvestia Pensenskoi Gubtcheka (Notícias da TchEKA da Província de Penza) relatava, sem mais comentários: «Pelo assassínio do camarada Egorov, operário de Petrogrado em missão num destacamento de requisição, 152 guardas brancos foram executados pela tcheka. Outras medidas ainda mais rigorosas (sic) serão tomadas de futuro contra os que erguerem a mão contra o braço armado do proletariado» (20).

Os relatórios confidenciais (svodki) das tchekas locais enviados para Moscovo, recentemente tornados públicos, confirmam, de resto, a brutalidade com que foram reprimidos, a partir do Verão de 1918, os mais pequenos incidentes entre as comunidades camponesas e as autoridades locais, incidentes que tinham as mais das vezes origem na recusa de acatar as requisições ou a mobilização e que foram sistematicamente catalogados como «motins kulaks contra-revolucionários» e reprimidos sem piedade.

Seria vão tentar calcular o número das vítimas desta primeira grande vaga de Terror Vermelho. Um dos principais dirigentes da TchEKA, Latsis, pretendia que no decurso do segundo semestre de 1918 a TchEKA tinha executado 4500 pessoas, acrescentando não sem cinismo: «Se é possível acusar a TchEKA de alguma coisa, não é de excesso de zelo nas execuções, mas de insuficiência na aplicação de medidas supremas de punição. Uma mão de ferro diminui sempre o número de vítimas» (21). No fim de Outubro de 1918, o dirigente menchevique Iuri Martov calculava o número de vítimas directas da TchEKA, desde o início de Setembro, em mais de 10 000» (22).

Seja qual for o número exacto das vítimas do Terror Vermelho do Outubro de 1918 - e só a soma das execuções relatadas na imprensa sugere que não pode ter sido inferior a 10 000-15 000 pessoas -, esse terror consagrava definitivamente a prática bolchevique de tratar toda a contestação real ou potencial no quadro de uma guerra civil sem quartel submetida, segundo a expressão de Latsis, «às suas próprias leis». Se os operários entram em greve, como foi, por exemplo, o caso da fábrica de armamento de Motovilikha, na província de Pern, no início de Novembro de 1918, para protestar contra o princípio bolchevique de racionamento «em função da origem social» e contra os abusos da tcheka local, é a fábrica inteira que as autoridades declaram imediatamente «em estado de insurreição. Não há qualquer negociação com os grevistas: lock-out e despedimento de todos os trabalhadores, dos «cabecilhas», procura dos «contra-revolucionários» mencheviques suspeitos de estarem na origem da greve (23). Estas práticas, tinham, é certo, sido moeda corrente no Verão de 1918. No Outono, porém, a tcheka local, agora bem organizada e «estimulada» pelos apelos ao assassínio vindos do Centro, foi mais longe na repressão: mandou executar mais de 100 grevistas sem qualquer espécie de processo.









As simples ordens de grandeza - de 10 000 a 15 000 execuções sumárias em três meses - marcavam por si sós uma verdadeira mudança de escala relativamente ao período czarista. Basta recordar que, para o conjunto do período 1825-1917, o número de sentenças de morte pronunciadas pelos tribunais czaristas (incluindo os tribunais militares) em todos os processos julgados «em relação com a ordem pública» se elevou, em noventa e dois anos, a 6321, com um máximo de 1310 condenações capitais em 1906, ano de reacção contra os revolucionários de 1905. Em poucas semanas, só a TchEKA tinha executado duas a três vezes mais pessoas do que o império czarista condenara à morte em noventa e dois anos e que, sentenciadas na sequência de processos legais, não foram todas executadas, tendo uma boa parte das sentenças sido comutada em penas de trabalhos forçados (24).

Esta mudança de escala ia muito além dos simples números. A introdução de categorias novas como «suspeito», «inimigo do povo», «refém», «campo de concentração», «tribunal revolucionário», de práticas inéditas como o «internamento profiláctico» ou a execução sumária, sem julgamento, de centenas de milhares de pessoas presas por uma polícia política de um tipo novo, acima das leis, constituía na matéria uma autêntica revolução copérnica.

Uma revolução tal que certos dirigentes bolcheviques não estavam preparados para ela: atesta-o a polémica que se desenvolveu nos meios dirigentes bolcheviques, entre Outubro e Dezembro de 1918, à volta do papel da TchEKA. Na ausência de Dzerjinski - mandado por um mês, incognito, para a Suíça, a fim de recuperar a saúde mental e física -, o Comité Central do Partido Bolchevique discutiu, a 25 de Outubro de 1918, um novo estatuto para a TchEKA. Criticando «os plenos poderes atribuídos a uma organização que pretende agir acima dos sovietes e do próprio Partido», Bukharine, Olminski, um dos veteranos do Partido, e Petrovski, comissário do povo para o Interior, pediram que fossem tomadas medidas para limitar os «excessos de zelo de uma organização recheada de criminosos e de sádicos, de elementos degenerados do lumpen-proletariado». Foi criada uma comissão de controlo político. Kamenev, que fazia parte dela, foi inclusivamente ao ponto de propor a abolição pura e simples da TchEKA» (25).

Não tardou, porém, que os partidários incondicionais da organização conseguissem impor-se. Entre eles figuravam, além de Dzerjinski, sumidades do Partido como Sverdlov, Estaline, Trotski e, evidentemente, Lenine. Este último tomou resolutamente a defesa de uma instituição «injustamente atacada devido a alguns excessos por uma intelligentsia míope [...] incapaz de considerar o problema do terror numa perspectiva mais vasta» (26). A 19 de Dezembro de 1918, por proposta de Lenine, o Comité Central adoptou uma resolução proibindo a imprensa bolchevique de publicar «artigos caluniosos sobre as instituições, nomeadamente a TchEKA, que fazem o seu trabalho em condições particularmente difíceis». Assim se encerrou o debate. O «braço armado da ditadura do proletariado» recebeu o seu alvará de infalibilidade. Como diz Lenine, «um bom comunista é igualmente um bom tchekista».

No início de 1919, Dzerjinski obtém do Comité Central a criação de departamentos especiais da TchEKA, doravante responsáveis pela segurança militar. A 16 de Março de 1919, foi nomeado comissário do povo para o Interior e iniciou uma reorganização, sob a égide da TchEKA, do conjunto das milícias, tropas, destacamentos e unidades auxiliares até então ligadas a diversas administrações. Em Maio de 1919, todas estas unidades - milícias dos caminhos-de-ferro, destacamentos de abastecimento, guardas fronteiriços, batalhões da TchEKA - foram agrupadas num corpo especial, as «Tropas de Defesa Interna da República», que ia atingir duzentos mil homens em 1921. Estas tropas estavam encarregadas de assegurar a vigilância dos campos, das estações e de outros pontos estratégicos, de conduzir operações de requisição mas também, e sobretudo, de reprimir as revoltas camponesas, os levantamentos operários e os motins do Exército Vermelho. As unidades especiais da TchEKA e as Tropas de Defesa Interna da República - ou seja, perto de duzentos mil homens no total - representavam uma formidável força de controlo e de repressão, um verdadeiro exército no seio de um Exército Vermelho minado pelas deserções e que nunca conseguiu, a despeito de efectivos teoricamente muito altos, da ordem dos três a cinco milhões de homens, alinhar mais de quinhentos mil soldados equipados (27).











Um dos primeiros decretos do novo comissário do povo para o Interior incidiu sobre as modalidades de organização dos campos que existiam desde o Verão de 1918 sem a mínima base jurídica ou regulamentar. O decreto de 15 de Abril de 1919, distinguia dois tipos de campos: os «campos de trabalho coercivo» onde eram, em princípio, internados os que tinham sido condenados por um tribunal, e os «campos de concentração», para onde eram enviadas as pessoas encarceradas, as mais das vezes na qualidade de «reféns», em virtude de uma simples medida administrativa. Na realidade, as distinções entre os dois tipos de campos sempre foram largamente teóricas, como testemunha a instrução complementar de 17 de Maio de 1919, que, além da criação «de pelo menos um campo em cada província, com uma capacidade mínima de trezentos lugares», previa uma lista-tipo de dezasseis categorias de pessoas a internar. Entre elas figuravam contingentes tão diversos como «reféns oriundos da alta burguesia», «funcionários do Antigo Regime até à categoria de assessor de colégio, procurador, e seus adjuntos, presidentes de câmara e adjuntos de cidades com a categoria de sede de distrito», «pessoas condenadas, sob o regime soviético, a todas as penas por delitos de parasitismo, proxenetismo, prostituição», «desertores ordinários (ou reincidentes) e soldados prisioneiros da guerra civil», etc. (28).

O número de pessoas internadas nos campos de trabalho ou de concentração conheceu um aumento constante ao longo dos anos 1919-1921, passando de cerca de dezasseis mil em Maio de 1919 para mais de setenta mil em Setembro de 1921 (29). Estes valores não têm em conta um certo número de campos instalados em regiões insurgidas contra o poder soviético: assim, só na província de Tambov, contavam-se, no Verão de 1921, pelo menos cinquenta mil «bandidos» e «familiares de bandidos tomados como reféns nos sete campos de concentração abertos pelas autoridades encarregadas de reprimir a sublevação camponesa (30).

(in O Livro Negro do Comunismo, Quetzal Editores, 1999, pp. 90-100).


Notas:

(1) L. M. Spirin, Klassy i partii grazdanskoi voine v Rossii (Classes e Partidos na Guerra Civil Russa), Moscovo, 1968, p. 180 e seg.

(2) V. I. Lenine, Polnoie sobranie socinenii (Obras Completas), vol. L, p. 142.

(3) CRCEDHC, 2/1/6/898.

(4) GARF (Arquivos de Estado da Federação da Rússia), 130/2/98a/26-32.

(5) CRCEDHC, 76/3/22.

(6) Leninskii sbornik (Recolha de Textos de Lenine), vol. 18 (1931), pp. 145-146, citado in D. Volkogonov, Le Vrai Lénine, Paris, R. Laffont, 1995, p. 248.

(7) V. I. Lenine, Polnoie sobranie socinenii (Obras Completas), vol. L, p. 143.

(8) CRCEDHC, 76/3/22/3.

(9) Izvestia, 23 de Agosto de 1918; G. Leggett, op. cit., p. 104.

(10) S. Lyanders, «The 1918 Attempt on the Life of Lenin: a New Look at the Evidence», Slavic Review, 48, n.º 3 (1989), pp. 432-448.

(11) Pravda, 31 de Agosto de 1918.

(12) Izvestia, 4 de Setembro de 1918.

(13) R. Abramovitch, The Soviet Revolution, 1917-1939, Londres, p. 312.







Bolcheviques na luta pelo poder em 1917.



Vítimas do Terror Vermelho



(14) Severnaia Kommuna, n.º 109, 19 de Setembro de 1918, p. 2, citado in G. Leggett, op. cit., p. 114.

(15) Izvestia, 10 de Setembro de 1918.

(16) G. A. Belov, op. cit., pp. 197-198.

(17) G. Leggett, op. cit., p. 111.

(18) Utro Moskvy (A Manhã de Moscovo), n.º 21, 4 de Novembro de 1918.

(19) Ejenedelnik VtchK (O Hebdomadário da Tcheka), 6 números publicados de 22 de Setembro a 27 de Outubro de 1918.

(20) Izvestia Tsaritsynskoi Gubtcheka (Notícias da TchEKA da Província de Tsaritsyne), n.º 1, de 7 de Novembro de 1918, pp. 16-22, in Arquivos B. Nikolaevski, Hoover Institution, Stanford, 29 de Setembro de 1918, p. 2.

(21) M. I. Latsis, op. cit., p. 25.

(22) Carta de I. Martov a A. Stein, 25 de Outubro de 1918, citada in V. Brokvin, Behind the Front Lines of the Civil War, Princeton, 1994, p. 283.

(23) N. Bernstam, op. cit., p. 129.

(24) M. N. Gernet, Protiv smertnoi kazni (Contra a Pena de Morte), São Pertersburgo, 1907, pp. 385-423; N. S. Tagantsev, Smertnaia kazn (A Pena de Morte, São Petersburgo, 1913. Encontramos números semelhantes num relatório de K. Liebnecht (5 735 condenados à morte, dos quais 3741 executados entre 1906 e 1910; 525 condenados e 191 executados de 1825 a 1905), in M. Ferro, La Révolution de 1917, La chute du tsarisme et les origines d'Octobre, Paris, Aubier, 1967, p. 483.

(25) CRCEDHC, 5/1/2558.

(26) Lenin i VtchK. Sbornik dokumentov (1917-1922) (Lenine e a TchEKA. Recolha de documentos), Moscovo, 1975, p. 122.

(27) G. Leggett, op. cit., pp. 204-237.

(28) GARF, 393/89/10a.

(29) Vlast' Sovetov (O Poder dos Sovietes), 1922, n.º 1-2, p. 41; L. D. Gerson, The Secret Police in Lenin's Russia, Filadélfia, 1976, p. 149 e seg.; G. Leggett, op. cit., p. 178; GARF, 393/89/18; 393/89/296.

(30) Ibid., 393/89/182; 393/89/231; 393/89/295.



Álvaro Cunhal. Ver aqui



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