José Marinho, sentado à direita do novel filósofo João Seabra Botelho. |
E não é então seu ver conhecimento, pois este supõe diferença entre ser e verdade, ou, como incompleta e imperfeitamente se diz, entre ser e saber: conhecimento implica e significa distância e incoincidência real ou sempre virtual. O que vê o ser como o que o é, o a quem foi dado ver sem distância, o que sabe do mais puro saber, vê e sabe a verdade toda na verdade: nem há, para ele, distância alguma de algum ser para ser, de alguma verdade para a verdade e saber a verdade, nem tal tem nele e para ele sentido algum.
O conhecimento surge então como milenário e vão propósito frustrado ou adiado dos filósofos imprudentes em sua mesma prudência, irmão de todo o vão amar, de todo o precário crer e agir, filhos comuns do homem e da ilusão do homem, da vida e da ilusão da vida, o conhecimento surge então, ao que vê e sabe, tão vão como o imenso fluir do tempo, o qual todo, no instante, sem chegar nunca a ser quedasse anulado: anulado tal e tanto como no infindo e insubsistente decorrer que se semelha infinito.
Agora, enquanto vive a vida finita e mortal, enquanto humanamente ama, enquanto crê e age, percebe e concebe no seio do tempo e por entre as formas da finita vida, recluído na consciência do existir finito, ele tudo isso aceita só como o que o nega, como ao que é já para ele o mesmo que afirmar: o único ser na verdade, a única verdade no ser.
Negando e recusando tudo quanto é para os olhos e para a consciência finita, tudo quanto mente errada e vãs palavras dizem dizer, tudo quanto a razão distingue e separa, ou une ainda como o separado, ele pode dizer sim ou não, pois é o mesmo. Então ele vê que a razão, como todo o discurso, apenas é, logo se aduna, logo se anula, como o que reflui ou se ultrapassa sem propriamente ser, e o mesmo sabe de instantâneo saber em todo o discurso da vida que ilusoriamente apreendemos e representamos no tempo e no espaço, na distância e sucessão irremediáveis, ou como exterior ou íntimo a nós. E numa intuição a verdade se dá e consiste, mas como intuição pura para a qual e na qual todo ser, sentir e pensar fossem. E a razão é então como o que se negasse em seu processo e só na ponta extrema consistisse. E no ser uno da verdade intuição e razão se anulam, ou logo, ou depois do vão caminho: como o que, mais sábio que o ser vão e insciente, soube ser para não ser.
De uma vez por todas: aquele que viu e sabe no ser da visão unívoca ao unívoco saber, nega o não-ser como não ser; e a razão existe nele como o dado para negar o não-ser, e para a si mesma negar, como ao que discorre e tem mudança, princípio, meio e fim. E essa negação vai ao mais fundo do fundo do que o homem crê, ama, gera e concebe como ser, mas não é. E tal negação o mesmo é que afirmar, e afirmar-se no não-ser do homem, o único, o que em mais moderna palavra se diz absoluto. Este é, porém, o absoluto em que toda a relação se anula, todo o diverso e todo o múltiplo, toda a forma e toda a matéria, todo o próximo e todo o remoto, todo o ter sido, estar sendo e poder ser. Então, porém, o que é, o que referimos como ser da verdade, não tem propriamente intérprete: ele a si mesmo diz como o que não cria, nem é criado, nem de criar carece, nem amor é, nem de amor algum depende ou interdepende, nem de fé.
Aqui, porém, importa muito, importa tudo, notar que não é essa visão auroral, mas como que intérmina visão meridiana. Pois não há então sentido para aurora, nem para infância, para nenhuma origem, para nenhum princípio. A noite não foi, nenhum sol teve ocaso, nada se deu na diversidade da luz, do que traz a luz ou a oculta, nada nasceu, não há morte.
E os homens, por um lado atraídos, por outro renitentes, se acaso a visão se lhes comunica, crêem passada a visão, e como pretérito ao saber da visão asseveram ou denunciam. E situam-na neste ou naquele pensador, na época tal ou tal. Todo o seu despeitado e vão esforço consiste para tornar alheio e distante o único que pode dizer-se presente. E chamam místico extraviado ao que como filósofo se apresenta (in Teoria do Ser e da Verdade, Guimarães Editores, 1961, pp.19-22).
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