As situações de decadência diagnosticadas pelo predomínio da cultura são cíclicas. De tais situações, a mais prolongada e a mais brilhante, foi a do império bizantino que constituiu, ao longo de alguns séculos, o longo amortecer da antiguidade. Atingindo expressões de grande requinte, fez de tudo o que fora grande na antiguidade objectos de cultura e deixou como seu maior monumento as compilações do direito romano quando o direito romano estava cada vez mais remoto e morto. Pormenor curioso: foi também essa uma época de socialismo que os socialistas contemporâneos procuram ignorar (ou ignoram mesmo).
Nas situações que não são de decadência, do que se trata é de filosofia, de religião, de ciência ou de arte, não de cultura. Trata-se de filosofia ou de filosofar, não de cultura da filosofia. Trata-se de fazer o que a arte faz, não de defender as obras de arte ou levar a todos os valores que, precisamente, não são susceptíveis de ser levados a todos. Trata-se de entender imediatamente um teatro original que um tal Gil Vicente ou um tal Shakespeare nos ofereceram há quatro séculos: trata-se de teatro, não de cultura teatral.
Quando, nas situações de decadência, a cultura da filosofia substitui a filosofia ou a cultura do teatro substitui o teatro, é porque a filosofia e o teatro se evanescem e perderam. Faz-se tudo para fazer entender Shakespeare e Gil Vicente, mas se um novo Shakespeare ou um novo Gil Vicente de súbito aparecessem, ninguém daria por eles. Tal como na famosa lenda do inquisidor-mor, os mesmos que vigiam pela cristianização da humanidade ou pela cultura do cristianismo não reconhecem o Cristo que de súbito surge entre eles; tal como aqui entre nós, ninguém reconhece um filósofo por excelência como é Leonardo Coimbra (in Escola Formal, n.º 1, Jun. 1977, p. 24).
Leonardo Coimbra |
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