segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Ah! A Cultura!

Escrito por Orlando Vitorino





A cultura é sempre cultura de alguma coisa que deixa de ser precisamente porque se faz dela objecto de cultura. E acabando por ver o que há de vão na sua tarefa, a cultura acaba por se fazer ela mesma um valor a cultivar e, então, os valores culturais põe-se a substituir os valores (filosóficos, religiosos e artísticos) que a cultura se destinava a cultivar. A cultura passa, então, a ser cultura da cultura, depois, cultura da cultura da cultura, depois cultura da... e assim sucessivamente.

As situações de decadência diagnosticadas pelo predomínio da cultura são cíclicas. De tais situações, a mais prolongada e a mais brilhante, foi a do império bizantino que constituiu, ao longo de alguns séculos, o longo amortecer da antiguidade. Atingindo expressões de grande requinte, fez de tudo o que fora grande na antiguidade objectos de cultura e deixou como seu maior monumento as compilações do direito romano quando o direito romano estava cada vez mais remoto e morto. Pormenor curioso: foi também essa uma época de socialismo que os socialistas contemporâneos procuram ignorar (ou ignoram mesmo).

Nas situações que não são de decadência, do que se trata é de filosofia, de religião, de ciência ou de arte, não de cultura. Trata-se de filosofia ou de filosofar, não de cultura da filosofia. Trata-se de fazer o que a arte faz, não de defender as obras de arte ou levar a todos os valores que, precisamente, não são susceptíveis de ser levados a todos. Trata-se de entender imediatamente um teatro original que um tal Gil Vicente ou um tal Shakespeare nos ofereceram há quatro séculos: trata-se de teatro, não de cultura teatral.

Quando, nas situações de decadência, a cultura da filosofia substitui a filosofia ou a cultura do teatro substitui o teatro, é porque a filosofia e o teatro se evanescem e perderam. Faz-se tudo para fazer entender Shakespeare e Gil Vicente, mas se um novo Shakespeare ou um novo Gil Vicente de súbito aparecessem, ninguém daria por eles. Tal como na famosa lenda do inquisidor-mor, os mesmos que vigiam pela cristianização da humanidade ou pela cultura do cristianismo não reconhecem o Cristo que de súbito surge entre eles; tal como aqui entre nós, ninguém reconhece um filósofo por excelência como é Leonardo Coimbra (in Escola Formal, n.º 1, Jun. 1977, p. 24).



Leonardo Coimbra



Nenhum comentário:

Postar um comentário