sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Teoria do instante em José Marinho

Escrito por António Telmo







«Cristianismo é coisa dificílima e cristão homem raríssimo. As grandes obras do homem são, porém, paradoxais e tanto mais paradoxais quanto mais grandiosas. E é assim que aquele dificílimo se tornou facílimo e aquele raríssimo, vulgaríssimo. Ser cristão tornou-se geral. Cristo veio, entretanto, revelar-nos não o homem geral, mas o homem verdadeiro, o homem autêntico. De que cada um de nós é esboço. Cristo veio, não a revelar o homem vital, o homem social, o homem intelectual, o homem amante, mas o homem na sua plena realidade. Cristo veio revelar-nos aquele ser para que nós nascemos mas que nos é difícil ser e que atingimos parcialmente ou por imperfeita aproximação.

Mas tudo está corrupto no homem porque lembramos a Cristo e queremos ser cristãos. É muito difícil, senão impossível, que as coisas fossem de outra maneira. E entretanto ser cristão retira a tudo o sentido e leva-nos a conhecer o espírito pelas exterioridades e a repetir em vez de criar.

O segredo de Cristo é que foi ele, sem querer ser o análogo do antes fora».

José Marinho («Ensaios de Aprofundamento e outros textos»).


«Sampaio Bruno afirma "a eficácia da oração mental". Um exemplo extraordinário de oração mental, enquanto movimento de iniciação na "gnose" é o ensinado por Leonardo Coimbra em A Alegria, a Dor e a Graça:

"Na hora serena do espectáculo escolhei um lugar bem solitário para a vossa meditação.

Cessa o falar diurno, fundindo as suas vozes num grande mar de Silêncio.

Dentro de vós, viviam formas e vultos, as palavras nítidas, as intenções claras.

Ao grande Silêncio do mundo segue-se o imenso Silêncio da alma; como dois mares separados pelo beijo do Sol, um visível da sua luz moribunda, outro de amanhecente e invisível corpo.

Pondo o vosso silêncio de acordo com o grande Silêncio das coisas, ponde o coração de acordo com uma grande realidade cósmica, acompanhai, por exemplo, com uma forte tensão de vontade, o Sol no declinar da despedida.

Olhai bem o disco a afundar-se e imaginai que a vossa vontade o move. Em breve tomareis a sério a vossa ilusão e, a um profundo abalo de todo o ser, conheceis que sobre o Mistério se vos abriu um novo sentido.

É que o Universo é cheio de misteriosa vida oculta, que embebe todas as formas; à mínima inclinação no bom caminho responde o frémito de infinitos contactos do invisível, enchendo de ser e realidade a quotidiana insuficiência".






Vão-nos dizer que este texto de Leonardo Coimbra pouco tem de filosofia e muito de mística; aliás, quando o movimento lançado por Álvaro Ribeiro começou a ser sentido, logo se procurou sustê-lo e dissolvê-lo negando que fossem de filosofia livros em que a razão estaria subordinada à imaginação e à intuição. Não há nem haverá autêntica poesia como não há nem houve autêntica ciência sem a, remota ou próxima, experiência das origens a que, com intuitos de menorização, se dá o nome de "mística". Mas os puros místicos, aqueles que renunciam a pensar, orgulhosos de uma experiência inefável de união com o divino, são também hostis à filosofia, ao pensamento e à razão, mesmo quando esta, como repetia José Marinho, se interroga sobre si própria e procura garantir-se pela relação com o Espírito. Mística é uma nobre palavra, que exprime uma ideia clara e distinta. Pelo seu étimo grego equivale a "iniciática". O erro está, nesta obscura confusão provocada pelos inimigos da filosofia, em supor que a razão é um dado natural e não uma forma de pensamento próprio e só é possível naqueles que "conhecem que sobre o Mistério se lhes abriu um novo sentido". O pensamento próprio do corpo físico, que serve os seus interesses, não é nem será nunca razão: é um orgão formador de respostas automáticas aos estímulos. A razão somente é possível quando há já uma nova forma de sentir o mundo, quando a emergência de novos sentidos permite que se fale analogicamente de um corpo subtil; é, por assim dizer, o cérebro próprio desse corpo. Antes disso, sim, é que tudo quanto de diga é mero palavreado e fogo fátuo.

Compreende-se assim a necessidade da oração, tal como a entendeu Leonardo Coimbra. "O pensamento filosófico", escreveu, "é a única oração eficaz"».

António Telmo («Filosofia e Kabbalah»).





Teoria do instante em José Marinho 


José Marinho pertence ao número daqueles sete ou doze homens que viveram entre nós, nos últimos cinquenta anos, como uma excepção. A excepção, ao contrário do que se diz, nunca confirma a regra e é por isso que os filósofos verídicos ou os artistas inspirados têm dificuldade em viver entre aqueles que formam a regra do mundo humano e comum. Viver como uma excepção significa ter sido captado de fora ou, em termos afins à etimologia, ter sido tocado pelo noús - pelo intelecto -, que, no dizer misterioso de Aristóteles, vem de fora, exothén.

Hoje, é-nos dado ler os seus livros, onde expôs com astúcia, educação e generosidade um pensamento oposto ao mundo mental dos humanos, propondo-se dizer, sob uma aparente forma conciliatória, «o que é tal qual é e o que não é tal qual não é». Concebeu corajosamente a que, em termos quase religiosos, se poderá interpretar como uma filosofia de gnose cristã. Mais ou menos afastados, mais ou menos próximos do catolicismo, os espíritos excepcionais que se manifestaram no findar do terceiro ciclo da Pátria, quatrocentos anos passados sobre a demissão de D. Manuel I, tentaram restaurar a gnose então perdida, reencontrar a sua luz nas sombras da sua ocultação. O próprio Leonardo Coimbra, quando o «criacionismo» vier a ser estudado à luz da kabbalah sufi e sephardi, constituirá uma maravilhosa surpresa para os hermeneutas.

José Marinho foi, como se sabe, discípulo de Leonardo Coimbra e é necessário situar a orientação do seu pensamento entre a filosofia nocturna de Sampaio Bruno e a filosofia diurna do Mestre. O poeta com quem mais insistentemente dialogava era Teixeira de Pascoaes, em cujos versos se conjugam o sentido gnóstico da ausência e do exílio próprio de Sampaio Bruno e o sentido apolíneo e pagão das formas sensíveis, com maior ou menor erro tido por natureza - sentido esse que, em Leonardo Coimbra, é o próprio corpo da alegria cristã.




Leonardo Coimbra




Leitor, intérprete e hermeneuta de A Alegria, a Dor e a Graça, simultaneamente lembrando o ensino oral do Mestre, reflectiu, de certo demoradamente e no deslumbramento do encontro, aquelas páginas admiráveis em que a relação paradisíaca, pela sensação, da criança com o mundo assume, no homem que a renova, a garantia do conhecimento que começa. Ouvi-lhe uma vez dizer que, durante muito tempo, o perturbava comparar a imensidade do universo com a pequenez do homem, pelo que a filosofia lhe aparecia condenada à partida a encerrar-se na câmara fosfórica da mente ou a viver como um reflexo da exterioridade invencível. Eis porque, mais tarde ao ler pela primeira vez a Teoria do Ser e da Verdade, pude compreender a outra luz a asserção de que «no instante da sensação é dada a imensidade do universo». A relação perturbante pacificar-se-ia num terceiro momento, quando veio a escrever em Filosofia: Ensino ou Iniciação?: «A sensação aparece por tal modo imensa, a imensidade instantânea».

O instante da sensação é apenas um eco do instante da compreensão, que ilumina todo o processo de autognose («Descoberta da Subjectividade»). É ele «... o singular instante sem o qual se não abre para nós o sentido da secreta e da mesma e outra patente imensidade».

José Marinho irá salvar a razão para a filosofia e estabelecer a filosofia pela razão, distinguindo o que chama «razão de compreensão» e o que chama «razão judicativa». Isto, porém, é outra história.

Se à filosofia incumbe mostrar o que é tal qual é e o que não é tal qual não é, importa muito menos saber se, ao proclamar a dominação régia do instante no processo do pensamento, José Marinho deve considerar-se místico, mais ou menos do que filósofo; importa muito mais saber se o pensar que conhece ou compreende (e só esse é o pensar filosófico) não é sem a assumpção do instante na intuição, sem a «súbita ruptura iluminante».

«Pretendemos descobrir o ao que a nós descobre e tudo em nós e para nós. Forcejamos por alcançá-lo na continuidade do que somos, ele surge-nos, porém, na descontinuidade e na ruptura incompreensível».

Levanta-se então acima de si própria para olhar e ver o que se lhe nega inacessivelmente: de mera razão judicativa, sempre pronta a de tudo decidir, transmuda-se, na alma, tomada de espanto, em razão compreensiva; se a alma se esquece («porque nós pensamos com toda a alma») de ligar as articulações da razão pelo instante de luz, alternando «trânsito e recurso», fluir da origem para longe de si onde de novo se encontra, («a razão é o raciocínio») logo ela decai em razão judicativa, segura de si porque inconsciente de si. José Marinho desenvolve, demoradamente, sempre de novo voltando ao mesmo ponto, a crítica da razão judicativa mas, como o seu pensamento é um pensamento completo, também a negação e sobretudo a negação é para compreender e integrar na harmonia originária da luz, na plenitude da visão unívoca. Note-se de passagem que as grandes noções da Teoria são sínteses de contrários: «visão unívoca», «trânsito e recurso», «união e cisão cumulativas», «insubstancial substante», etc.






Na visão unívoca, essa visão integral do meio-dia, sem aurora ou poente, plenitude das plenitudes, sugere-nos o pleroma dos gnósticos, o céu supremo que se reflecte na imensidade dos mundos. As várias correntes gnósticas «imaginam» um drama no céu que teria quebrado, mais ou menos decisivamente, a harmonia original. Tal se observa em Sampaio Bruno com a noção da queda em Deus e consequente diminuição e alteração do homogéneo inicial. A originalidade de José Marinho está na conciliação da gnose, neste ponto, com a revelação cristã. A cisão em Deus é, logo e ao mesmo tempo, união em Deus. Uma não é sem a outra, embora no processo temporal nos apareçam alternadamente. O Espírito detém o segredo de uma e outra, da primeira pela visão unívoca, da segunda pela «assumpção do Nada». Por isso o Cristianismo é a religião decisiva, porque Deus toca os confins da morte, desce aos Infernos e ressuscita ao terceiro dia.

Enquanto pensadores como Sampaio Bruno assistem e participam dolorosamente no drama, cuja solução se adia, num lento processo, até à vinda do Messias, em José Marinho não há propriamente drama, porque o drama é na própria vida do Espírito que o vence actual e infinitamente.

Todavia, a cisão é em Deus, antes de ser no cosmos e no homem; e no cosmos e no homem porque é em Deus. Daqui que pôr o drama humano no centro da cruz universal seja para o nosso filósofo o engano do qual deriva todo o humanismo falaz, de sinal político ou religioso ou até metafísico. Dir-se-ia que, para ele, a imagem evangélica fundamental não é a da Paixão e Crucificação, mas a da descida aos Infernos e da Ressurreição, representativa da descida do Espírito ao abismo de si próprio: a assumpção do Nada pela qual é a redenção.

Não é, pois, Cristo humano, nem sequer Cristo cósmico, mas o Espírito - o insubstancial substante - do todo da visão unívoca para o nada da cisão extrema, de um para o outro unindo e cindindo infinitamente, quem constitui o centro da cruz gerativa de toda a esfera. Cristo é na condição de o imitarmos enquanto espírito.

A Teoria do Ser e da Verdade aparece assim como um acto heróico do pensamento tentando a proeza impossível de conciliar a gnose com o dogma da Encarnação. Impossível, dizemos, porque a negação desse dogma é o ponto de partida da gnose.

Entre nós, portugueses, até nas visões do mundo aparentemente menos teológicas, tudo se joga entre estes dois extremos. Sampaio Bruno é o mais puramente gnóstico dos nossos pensadores; Leonardo Coimbra está mais próximo do outro extremo, mas numa reacção constante de simpatia, expressa em admirativas refutações para com Bruno e o maniqueu Teixeira de Pascoaes.




Na verdade, José Marinho tem de comum com filósofos, e poetas da filosofia portuguesa, instaurar no domínio do pensamento a terceira idade anunciada pelas profecias. A sua crítica ao humanismo cristão, sobretudo a sua doutrina do insubstancial substante, o suspender tudo do Espírito, entendido não como próprio do homem porque «só o Princípio conhece o Princípio», tudo isso traz ao curso irregular e barroco do pensamento português um intensa luz que se reflectirá, sem dúvida, no espírito daqueles que ainda hesitam, no limiar das novas eras, entre a fidelidade às altas formas mortas do passado e a abertura ao Divino Paracleto, já claramente pressentido, enquanto sopra sobre a terra, menos enganoso, o vento do demónio (Filosofia e Kabbalah, Guimarães Editores, 1989, pp. 128-132).


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