segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O mestre dos que sabem

Escrito por Orlando Vitorino








«A antropologia portuguesa caracteriza-se pela fidelidade às essenciais verdades da tradição, que se encontram reflectidas nas Escrituras Sagradas. Criacionistas ou emanatistas, ortodoxos ou heterodoxos, os pensadores portugueses não validam a hipótese da origem naturalista do homem, hipótese que conduz logicamente à anulação de qualquer escatologia religiosa. Uma errada interpretação do ensino da psicologia tem dificultado, porém, que entre nós se estude o homem na perfeita relação da sua essência com a sua existência.

A antropologia portuguesa definiu-se pela meditação da ética aristotélica das virtudes cardeais e da ética cristã das virtudes teologais. O pensamento jurídico e a actividade política dos Portugueses, ao longo da sua história, pressupõem a doutrina epopeica que figure o homem como intermediário entre a Terra e o Céu, ou seja, uma teoria do composto humano que tanto refute o monismo materialista como o monismo espiritualista. Só em período de descaracterização cultural se pretendeu substituir a antropologia filosófica pela antropologia científica, deslocando da teologia para a zoologia, e da zoologia para a geologia, o dificílimo problema da origem do homem».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«Quanta mulherzinha do povo eu tenho visto pôr o universal nas suas acções, enquanto os grandes magistrados da minha República nelas colocam os seus retóricos interesses de vaidade!»

Leonardo Coimbra («A Luta pela Imortalidade»).


«A relação do espírito divino com a alma humana, atestada por muitos testemunhos fidedignos que constituem a Bíblia, desde o Profetismo ao messianismo, nunca opusera dificuldade a minha razão, mas a inserção directa do logos na carne transiente, corruptível e sofredora aparecia-me como um mistério hostil à puridade religiosa».

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).




O mestre dos que sabem


Doutrina é o que o douto, ou sábio, ensina e aprendeu do mestre conforme Dante diz de Aristóteles num verso da «Divina Comédia» que Álvaro Ribeiro gostava de lembrar: «mestre dos que sabem».

O verso de Dante oferece, porém, dois sentidos. Um é o que dissemos da doutrina: que o sábio a aprende do mestre. Outro é o de que o mestre só é mestre dos que sabem, dos que já sabem.

Ele, Álvaro Ribeiro, situava-se humildemente entre os que aprendem do mestre e o procuram. Começou por encontrá-lo em Leonardo Coimbra, nos anos da juventude, e pela memória ao seu magistério, sempre revivida na leitura dos livros dele, conservou-o muito para além da juventude, que não é idade de sabedoria.

Já bem adulto, descobriu outro mestre, Sampaio Bruno, que associou ao primeiro. Transitou, depois, pelo magistério de Hegel a quem atribuía, como Benedetto Croce, o poder de tornar inteligentes os que lessem os seus escritos. Hegel o levou a Aristóteles, e Álvaro insurgia-se contra os que, como em certo momento de aprendizagem o autor destas linhas, interpretavam o hegelianismo, em especial a sua lógica, como o contrário do aristotelismo. Por fim, o magistério só o encontrava nos Livros Sagrados, isto é, na Bíblia, e mais no Velho do que no Novo Testamento. Mas, neste último grau da iniciação, Álvaro já não era o sábio que escuta um mestre. Tornara-se ele próprio o mestre. Porque os Livros Sagrados já não contêm o magistério de um homem, fosse ele Leonardo ou Aristóteles, mas de Deus ou, em rigor, do espírito. Porque Deus não ensina, porque o ensino é coisa humana.


Ao fazer-se homem em Cristo, ainda os apóstolos podem receber de Deus a doutrina e o Novo Testamento pôde dizê-lo mestre. Mas o Velho Testamento tem prioridade sobre o Novo e, aí, Deus não transmite doutrina mas mandamentos e leis, como fez Moisés.

Álvaro Ribeiro não personaliza a divindade, de acordo com a doutrina do «mestre dos que sabem». Menos ainda a humaniza, por formar do homem a imagem misantrópica de um ente em fugaz exílio neste vale de lágrimas em que ele, homem, transformou a «maravilha da criação» que o mundo é. Minoriza portanto o cristianismo em relação ao messianismo. Como desdenha dos gregos anteriores a Aristóteles, dos gregos que Hegel, com o Hölderlin do «Hyperion», o Schiller das «Cartas para a Educação Estética do Género Humano», o Schelling, o Goethe e os poetas ingleses, mitologizaram para o romantismo e para a modernidade. Desdenha-os por não haverem concebido o uno da divindade e a terem multiplicado em avatares de fantasmagórica figura terrena que a encarnação cristã veio destroçar.

A personificação da divindade não é apenas uma consolação para a incapacidade de pensar Deus, ou seja, de entender que Deus é uma ideia, não uma pessoa. A teologia da filosofia é, como Sampaio Bruno ensinou, a teologia, não de Deus, mas da ideia de Deus. A ideia, porém, não é múltipla, como pretende Platão. É una e única, como ensina Hegel, e se se revela e realiza na história ou se se contém e realiza no pensamento, é como justiça que naquela se revela, como princípio e fim que neste se contém, em ambos se realizando imperfeitamente porque história e pensamento são deste mundo e justiça e princípio são do reino de Deus.

Impersonificável, e também, ao contrário do que pretende José Marinho, inentificável, o Deus dos filósofos só pode ser o Espírito. Dele está muito mais próximo o Velho do que o Novo Testamento.

A filosofia de Álvaro Ribeiro é um realismo, como a de Aristóteles. A grande questão está em saber como o Espírito é real e, aí, sempre Álvaro Ribeiro humanamente hesitou e piedosamente ignorou. A filosofia não é mística. O filósofo não é «um místico transviado». O que Álvaro veio a mais admirar em José Marinho e o levou a considerá-lo «o maior filósofo contemporâneo», foi ter ele nocionado e sistematizado a «ontologia do espírito». Álvaro entende por ontologia o saber da verdade como real.

É-lhe difícil, contudo, aceitar a ontologia do espírito de José Marinho. Porque ela implica a realidade do não-ser e do nada que, de acordo com o realismo aristotélico, não são possíveis: só é o que se diz, só se pode dizer o que é, do não-ser nada se pode dizer, o não-ser não é.




Ora, o não-ser de Marinho é o sem-limite, portanto a liberdade, e aí surge o espírito. Surge da liberdade e o pensamento, tendo nele o seu princípio, é o portador da liberdade. Assim afirmando Marinho, a seu modo, o não-ser e o nada, mais segundo o idealismo platonista do que segundo o idealismo alemão, Álvaro Ribeiro acusa-o no entanto de se ter deixado influenciar pelos pensadores germânicos.

A exigência de realismo leva Álvaro a distinguir entre espírito universal e espírito humano. Distinção estranha se o espírito universal é o Deus dos filósofos, mas compreensível se o espírito humano é o espírito universal que no homem pensa. Distinção sem separatividade, antes complementar, porque o pensamento só é real no homem (Álvaro diz mais: só é real no indivíduo). Então, o espírito será universal para que o pensamento consista num movimento para o uno, num movimento que conduz ao uno toda a multiplicidade dos seres e formas que compõem o mundo. E será espírito humano para que o pensamento, portanto o espírito de que o pensamento é a actividade, seja real.

Não se trata, porém, de uma ontologia do espírito, que é o que Álvaro Ribeiro admira na filosofia de José Marinho. Trata-se, sim, de uma doutrina do espírito, de uma doutrina que faz do espírito «o mestre dos que sabem». Como o espírito, enquanto universal, é Deus, a doutrina está revelada e escrita nos Livros Sagrados. O ateísmo é um analfabetismo.

À medida que desenvolve o seu pensamento, Álvaro Ribeiro vai gradualmente percorrrendo sucessivos e ascendentes estádios. No primeiro estádio, concedendo às injustiças dos homens de que é vítima e se quer vingar e ignorando ainda que a justiça é o reino de Deus, interrompe a aprendizagem que vinha recebendo do primeiro mestre, deixa-se mover pelo analfabetismo, deixa-se levar a uma intervenção activa na política, intervenção logo repudiada para, na velhice, a recordar memorialmente com arrependimento e lástima. Retoma a aprendizagem interrompida, e mais fielmente, quando o mestre desaparece numa tragédia súbita, e dá sinal dessa fidelidade nos textos mais humildes, a maior parte ainda ignorados, que algum autêntico pensador escreveu. Nessa humildade se lhe abrem «as portas do conhecimento», se lhe abrem os olhos para ver que o mestre, se tem a personalidade de um indivíduo, a tem inserida na tradição de um povo, primeiro modo de reconhecer que o espírito do homem não existe sem o espírito universal. A filosofia de Leonardo será a filosofia portuguesa.

A si mesmo se olha, então, como um «escritor doutrinado» e é nesse estádio do seu pensamento, estádio que todos «os que sabem» conhecem para nele permanecer ou para passar adiante, é aí que situa alguns celebrizados companheiros de juventude que virá a estudar, ou ensinar, num livro a que dará, precisamente, o título de Escritores Doutrinados.

Escritor doutrinado ele próprio, como tal escreve muitos artigos e alguns livros, uns publicados outros não. Até que, enfim, alcança o magistério.






Numa espécie de encantamento que o há-de acompanhar em toda a segunda metade da vida, surpreende-se mestre quando anda escrevendo A Arte de Filosofar. Surpreender-se mestre significa descobrir que o seu pensamento é portador de uma doutrina. E o estilo da sua expressão - escrita e oral - altera-se, densifica-se, está seguro de um firmamento que o guia, como aos navegantes. É um estilo que faz que os seus livros só possam ser lidos pelos que sabem.

O estilo é inseparável da personalidade como a personalidade é inseparável da consciência e como a consciência é a consciência do pensamento. O estilo de Álvaro Ribeiro, como o de todos os mestres, é de um dogmatismo que, nos escritos anteriores, se ignora e, na oralidade convivente, lhe provoca desânimo que o levam a crises de abandono, sofrimento e amargas lágrimas. Ao surpreender-se mestre, ao descobrir-se portador de uma doutrina, o dogmatismo torna-se-lhe inevitável. Porque não há doutrina que não seja autêntica até quando se apresente como céptica e crítica. Talvez não haja dogmatismo mais irredutível do que o criticismo kantiano. Não há decerto dogmatismo mais irremediável do que o das provisórias «verdades» científicas.

A partir de A Arte de Filosofar, os escritos de Álvaro Ribeiro deixam de abrir caminhos para o seu entendimento, deixam de instruir com conhecimentos para a sua compreensão. Supõem no leitor a alma aberta, a inteligência viva, o saber adquirido para os receber e seguir. Desdenham, indiferentes, de quem os não consiga entender, e os insulta, os analfabetos por ateísmo, os ignorantes por sofreguidão de domínio, os parlapatões da política vil, da literatura vazia, do bem-pensantismo impensante. Transmitem a doutrina de um mestre. Dirigem-se só aos que sabem.

Ninguém, em Portugal, escreveu livros mais generosos e incómodos. Ninguém, portanto, foi mais vilipendiado neste país, «o mais anti-filosófico do planeta», onde, há mais de dois séculos e sem interrupção, as instituições sociais são ocupadas pelos agentes do plebeísmo mental que, dispersando a nação e dissolvendo a pátria, estão hoje prestes a triunfalmente as dar por desaparecidas. Neste anoitecer da Pátria, Álvaro Ribeiro terá criado o seu pássaro de Minerva (in «Nova Renascença», Vol. XIII, 1993, pp. 85-88).




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