quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Aristóteles e a Tradição Portuguesa (ii)

Escrito por Álvaro Ribeiro








«(...) o aristotelismo, combatido por uma linha de pensadores que vai de Francisco Sanches a Luís António Verney, e também de Amorim Viana a Sampaio Bruno, pareceu sempre como um enigma irritante a todos quantos não compreenderam a peculiaridade mental dos povos ibéricos. A Escolástica existe pela conciliação escolar do texto morto, mas sagrado, com a tradição viva e livre. É também a conciliação da ordem religiosa com a ordem filosófica no problema de Deus, modo monárquico ou mono-árquico, de assegurar a liberdade de pensamento e, consequentemente, as liberdades adjectivadas.

Desviados da linha medieval, erraram os escolásticos modernos quando aplicaram à Física de Aristóteles o canon de escrituras sagradas, lendo como texto perene os livros que haviam resultado de sérios processos de observação e experimentação naturais. A obra lógica, ética e metafísica de Aristóteles permaneceu válida nas suas linhas essenciais e resistiu a todas as críticas impertinentes; assim o entenderam os componentes do escol nos povos peninsulares; mas seja-nos permitido afirmar que a interpretação portuguesa da filosofia de Aristóteles é superior à interpretação alemã. Lida directamente, e não através de comentadores que adaptaram às circunstâncias contingentes e às oportunidades pretéritas, a obra de Aristóteles refulge no brilho do seu pensamento essencial, e continua a ser saudada por quantos actualizam a sua cultura».

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).


«Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas; e a metafísica à nossa gente pareceu ludíbrio fátuo de cerebrações senão já de raiz mórbidas, perturbadas, contudo, na normalidade clara duma pachorrenta irrigação sadia. Não impediu esta originária indisposição, estrutural, de natureza e essência, que, à laia do demais, como dever de ofício e encargo de profissão, nas aulas públicas, de todo o tempo, se lesse, entre nós, de filosofia e que até pretendesse o engenho pátrio, de onde a onde, aqui ou ali, alçapremar-se à região vaga das cogitações metafísicas, que, em regra, uma invencível, preguiçosa antipatia formalmente sentenciara e categoricamente condenara.

(...) Os portugueses não se resignavam a abandonar o seu aristotelismo arábico; e do grande observador e experimentalista grego, por uma das mais incongruentas aberrações do espírito humano, obstinavam-se em cata do patrocínio para os delírios verbais da sua mania raciocinante. A Escolástica era, nesta terra sáfara, a irmã bem-amada do jesuitismo e da inquisição. Coimbra perpetuava o comentário aristotélico com ufano louvor e o jesuíta Pedro da Fonseca, da Cortiçada, resultava cognominado o "Aristóteles conimbricense".

Apesar das mitigações que, a todo o instante do comento dos estrangeiros juízos acerca dos nossos nacionais, um zeloso amor-pátrio insinua ao Sr. Lopes Praça, este distinto escritor não pode menos de convir em que nos fastos da filosofia nacional o nosso país ocupa um lugar muito secundário».

Sampaio Bruno («A Ideia de Deus»).


«Como é sabido, o iluminismo do século XVIII, do qual são aspectos, entre outros, o criticismo, o deísmo, o progressismo, apresenta-se quer com cariz racionalista, quer com clara consciência dos pressupostos místicos em que assenta. São iluministas quer um Voltaire, quer um Saint-Martin, quer um Diderot, quer um Swedenborg.









Louis Claude de Saint-Martin














Ora a trajectória percorrida por Bruno adentro do iluminismo foi precisamente esta, não muito longa, afinal: do racionalismo deísta, anticlerical, progressista do "gigante de Ferney" até ao misticismo visionário de um Saint-Martin, não menos deísta nem menos anticlerical, nem menos progressista; da ramagem das árvores às raízes ocultas; da "liberdade, igualdade e fraternidade", como lema de combate, ao seu significado recôndito, místico, esotérico.

Ao espírito voltairiano e ao espírito enciclopedista se manteve ele fiel toda a vida. Com um matiz diferenciador apenas, a partir da maturidade: a Enciclopédia não era o termo da pesquisa, mas um marco militar, cujas raízes e cujos frutos vindouros procurava teimosamente entrever; os lemas iluministas eram bons, mas melhor ainda era entrever os fundamentos em que assentavam».

Joel Serrão («Sampaio Bruno»).


«Admitindo que o ano de 1290 fosse o primeiro da nossa Universidade, é de crer que a doutrina adoptada na escola de Dialéctica, ali, como vimos, estabelecida desde o princípio, fosse a Aristotélica.

Levam-nos a isto, não só as relações existentes entre o nosso País e a França, mas também a preponderância das escolas de Paris sobre as dos outros países. Acresce a estas razões a suma influência que a Sé de Roma exercia naquele tempo sobre as Universidades Cristãs. Ora sendo isto assim, e sabendo nós que desde 1215 foi a Dialéctica de Aristóteles mandada estudar em Paris, nenhuma dúvida podemos ter em admitir como sumamente provável a efectiva adopção da Dialéctica Aristotélica ou de Sumas da mesma Dialéctica, nas escolas da nossa Universidade.

Muito nossa vizinha está a Espanha. Mas a Espanha foi um dos canais por onde as obras de Aristóteles penetraram no Ocidente, e o nome de Aristóteles foi mais devidamente aclamado nas escolas de Sevilha e Córdova, do que nas restantes do ocidente da Europa; porque, ainda apenas era conhecido o Organon na Universidade de Paris e já as versões das outras obras de Aristóteles eram examinadas, estudadas e comentadas nas escolas de Espanha».

Lopes Praça («História da Filosofia em Portugal»).







Maimónides (1138-1204).




«O aristotelismo português desta época [séc. XIII] ainda é pouco conhecido, na medida em que nos falece uma adequada hermenêutica e uma rigorosa exegese que descubra, nos argumentos dos pensadores medievais, as possíveis e as inequívocas incidências de Aristóteles, mesmo que o seu nome se ache omisso, tanto mais que, a partir dos fins do século XIII, estudantes portugueses atendiam aulas em Paris e, ao mesmo tempo, havia letrados judeus e árabes vivendo a nosso lado, atentos à meditação aristotélica. Os livros de Maimónides eram estudados em mais de um local da Península e, no século XV, o lisbonense Isaac Abravanel ainda afirmava lealdade a Aristóteles, o mesmo sucedendo com o seu amigo e coetâneo Fernão Lopes. A criação do Estudo Geral e a abertura da cadeira de Dialéctica tornaram Aristóteles mais estudado, enquanto os frades, que mantinham relações com as abadias de Chartres e de S. Vítor, eram motivados para o seguimento do Estagirita, pelo que, na Península, e no mesmo período, o aristotelismo platonizante é um facto triádico, por ocorrer nas tradições coexistentes, a árabe, a hebraica e a cristã. Se bem que a literatura de tendência mística (Horto do Esposo, por exemplo) fosse muitas vezes contra o radicalismo filosófico, por temer a exorbitância da razão, as citações de Aristóteles aparecem aí, e noutros textos, equivalentes ou contemporâneos. Incidências aristotélicas são patentes na Crónica de D. Pedro I e na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes, cuja teoria do conhecimento é aristotélico-platonizante, e cuja prática hermenêutica manifesta, na sua obra de historiador, o realismo peculiar à lógica aristotélica. O aristotelismo político aparece no Livro Velho, do conde D. Pedro de Barcelos, na obra de Gomes Eanes de Azurara, e nas de outros escritores da mesma época. D. Duarte, que tinha Aristóteles na sua livraria, cita-o algumas vezes; o infante D. Pedro, no Da Virtuosa Benfeitoria, mostra influência aristotélica mais ampla, citando, já os livros lógicos, já os de ciências naturais, enquanto D. Duarte preferiu os lógicos, os éticos e os políticos. A presença de mestres franciscanos, como Fr. João Verba, junto destes autores, leva-nos a considerar a sua influência neles e, também, o valor que as escolas franciscanas dariam, nesse tempo, ao pensamento de Aristóteles. Da mesma geração é o Infante D. Henrique, o qual, sem ter deixado trabalho escrito, estava ciente do valor medianeiro do realismo aristotélico, quanto a uma teoria das causas, sendo muito significativo que tivesse mandado reservar uma sala do Estudo Geral de Lisboa, para aí ser pintado o retrato de Aristóteles».

Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).





Aristóteles e a Tradição Portuguesa


Aristóteles é, sem dúvida, o filósofo predilecto dos pensadores empiristas. Entendamos, porém, que o empirismo, longe de ser ausência de método ou negação do método, conforme se lê em compêndios que opõem o empírico ao científico, constitui uma metodologia perfeitamente adequada à condição humana. Convém, para tal entendimento, advertir que o empirismo não é solidário do nominalismo e do sensismo, conforme se verificará na leitura dos textos aristotélicos.


O empirista é, antes de mais, um zeloso coleccionador. Coleccionar, classificar e catalogar todos os objectos de estudo são efectivamente actos progressivos pelos quais se adquire o conhecimento mais duradouro e mais fecundo. Ao encontro repetido com as coisas chama o vulgo experiência. Tal experiência vale quando acompanhada da distinção racional dos diferentes entre os semelhantes, quando progride até ao princípio de individuação, quando não receia nomear o inefável. A tolerância metodológica do empirista tem um admirável complemento na classificação ética e jurídica, porque, em vez de excluir e eliminar, atribui um lugar social a tudo quanto é de existência natural.

É claro que o coleccionador parte do que o nosso povo chama uma ideia preconcebida, concebida por outros e depositada na linguagem, a ideia a que alguns subjectivistas chamariam um a priori. O mérito da colecção não consiste apenas na conservação. Coleccionar é verificar se a multiplicidade de exemplos confirma ou não a regra, provando ou reprovando. O coleccionar tem de estar apto a alterar a classificação e a catalogação sempre que as diferenças avultem sobre as semelhanças, sabido que um novo critério sugere um novo conceito. Analisando a expressão «uma ideia preconcebida», poderemos agora entender o que significa aristotelicamente o conceito, o resultado do acto de conceber, em frente da multiplicidade do real.

Vemos assim a utilidade dos museus, das bibliotecas e dos arquivos, utilidade tanto maior quanto mais articulada com os estudos escolares. Aristóteles distinguiu-se na Antiguidade pelo seu empirismo de coleccionador; distinguiu-se principalmente dos dialectas ou argumentadores que pretendiam fazer calar os adversários à custa de paralogismos ou de sofismas. Caracterizam-se os escritos aristotélicos pela acumulação de exemplos classificados e catalogados para o escopo final, documentos de escola em que o texto magistral parece retocado e alterado por mãos de discípulos em detrimento da unidade de estilo e de doutrina.

A atenção à multiplicidade exige por método lógico a indução. A metodologia científica de Aristóteles é fundamentalmente indutivista. Posto que a indução perfeita só seria possível depois da colecção perfeita, enuncia-se o problema lógico não já com palavras da experiência mas com palavras de razão. O processo indutivo parece não legitimar a certeza e a verdade, pelo que terá apenas valor provisório enquanto um processo superior não o converter por necessidade. Nesta crítica, muitas vezes feita, ao raciocínio indutivo se abre atalho para contradizer o pensamento de Aristóteles.

A indução tem por fim o conceito. Induzir para conceber. Considerados no intelecto humano os aspectos passivo e activo, nada nos custa a entender a fecunda passividade do intelecto perante o que é móvel, múltiplo, contingente. De repetirmos a mesma operação intelectual, tantas vezes quantas as requeridas, nos surge gratuitamente o conceito que merecíamos em prémio da nossa fadiga.






Se, pelo contrário, julgarmos que a indução tem por fim o juízo, a relação ou lei, desvirtuaremos o significado da palavra inferência, cairemos fora da lógica aristotélica. A lógica do conceito é uma lógica realista. Os nominalistas e os terministas, imitando a abstracção matemática, deram ao problema dos universais uma solução que prepara a falácia do idealismo, e serviram assim o engenho de análise mortífera e de uniformidade industrial que lacera, em vez de redimir, a Natureza.

A lógica de Aristóteles não é apenas uma arte de raciocinar coerente e consequente mas uma arte de raciocinar de acordo com a realidade. Se nos é fácil refutar os sofismas grosseiros sempre que sem mediação (imediatamente) vejamos inadequação entre o pensamento e a realidade, como no caso das afirmações tão absurdas que se cobrem de ridículo, já é mais difícil discernir o elemento que sustenta a falsidade dos paralogismos, da dialéctica e da metafísica. Um estudo analítico da sofismação nos adverte lucidamente contra o hábito pernicioso de aceitar como raciocínios completos e perfeitos, de incidência ontológica, fragmentos ou elementos de uma argumentação que convém interpretar. Cada época é dotada de um tipo especial de sofismação, e bem sabemos quanto nos custa estar alerta para não sermos surpreendidos e vencidos pelos sofismas dos nossos contemporâneos. Correm mundo os sofismas parlamentares, jornalísticos, estatísticos, etc. A analítica de Aristóteles continua, todavia, a dar-nos os melhores ensinamentos de defesa contra os raciocínios incompletos, isto é, contra todos os processos de sofismação.

Empirista, estava Aristóteles atento a todos os desenvolvimentos dramáticos de representação natural e social, desenvolvimentos que descreveu minuciosa e rigorosamente em obras admiradas através dos séculos, das escolas e das gerações. Definindo os seres pelos actos que realizam, ou pelas funções que exercem, Aristóteles ensinou o preceito retórico de dar prioridade ao verbo, e, consequentemente, de a partir do verbo explicar as categorias. Descrever não é ainda explicar, porque a explicação obedece a princípios teológicos. Para explicar, não se contentava Aristóteles com a imitação ou com a participação entre o real e o ideal; tudo isso seria apenas representativo, como no teatro ou na teoria; procurava analiticamente o conceito mediador da tríade, segundo um esquema que só a palavra torna fecunda na doutrina do silogismo. A lógica de Aristóteles é, pois, uma ontologia da mediação entre o sensível e o insensível, entre o móvel e o imóvel, entre a Natureza e Deus.

Enquanto a mentalidade vulgar se caracteriza por julgar verosímil, e até verdadeiro, que tudo se apresente por contraste, por contrários, e por contradições; enquanto a mentalidade sofística maliciosamente utiliza a dialéctica e o dualismo do vulgo, para entreter a polémica, e para concluir pela morte do termo que lhe convém considerar mais fraco; a mentalidade aristotélica, exercitada na crítica ao pensamento de Heraclito e de Parménides, demonstra a mediação essente e sublimante em todas as tríades que configuram a ascensão do ser.



Parménides (A Escola de Atenas).




A verdade do silogismo depende da realidade trina. Nem o monismo de Parménides, modelo de todos os sistemas metafísicos, nem o dualismo de Heraclito, modelo de todos os sistemas dialécticos, admitem a virtude da mediação que torna possível entender a relação do pensamento com a realidade. Aristóteles explicou a génese do conceito mediador, tanto na indução como na dedução, e explicou em termos que permanecem válidos enquanto vão soçobrando as dialécticas e as metafísicas.

O realismo de Aristóteles desaparece quando se interpreta a mediação em termos de relação, quando se dá prioridade ao juízo sobre o conceito. A expressão do juízo fica adulterada pela intromissão de verbos auxiliares, que separam o nome do verbo, negando o significado da cópula. Facilmente se transita assim para os juízos declarativos, com cópulas afirmativas e negativas, para a lógica da contradição. Hamelin demonstrou, porém, que o resumo do Organon, tal como aparece em muitos compêndios escolares, está longe de corresponder ao sistema de Aristóteles.

O juízo serve apenas para declarar que o verbo é o complemento activo do nome. Todas as substâncias são agentes, segundo a doutrina de Aristóteles que mais tarde foi esclarecida por Leibnitz. A interioridade das formas é doutrina tão aristotélica como a da exterioridade das figuras, mas confundem figura com forma todos quantos relacionam uma e outra com a matéria. Na sequência da deturpação, reconhecem-se incapazes de compreender o psicodinamismo de Aristóteles.

Não admitia Aristóteles os juízos indefinidos. A transposição do negativo da cópula para o negativo do predicado permite dizer e escreve pares de falsos contrários. Tal é o processo dialéctico, aperfeiçoado modernamente pela filosofia alemã. O homem que teme a contradição ama a luta dos contrários. A dualidade polémica é efectivamente um mito ao qual se convertem as mentalidades que grosseiramente observam as aparentes contradições alheias. A facilidade de traduzir e converter no mito predilecto a narrativa dramática das vicissitudes dos homens e dos povos é um talento próprio dos apologetas, talento que, infelizmente, fascina quem não recebeu oportunamente a lição propícia dos estudos retóricos que implicam os estudos lógicos.



Se a dialéctica dos juízos afirmativos e negativos, como a dialéctica das oposições geradas pelos juízos indefinidos, confunde o pensamento nas vicissitudes da acção polémica e militante, a respectiva metafísica do não-ser, do nada e do vazio, alarmando também o sentimento, situa o homem perante o pessimismo abissal, porque lhe recusa a garantia da liberdade. A lógica expressa por verbos que pedem nome predicativo - contrária à imanência do verbo, à agência da substância -, necessariamente degeneraria em lógica descritiva de relações mortas, de relatos. O erro está em confundir a cópula com a categoria. Visto que o ser se diz de vários modos, conforme citação extraída do livro da Psicologia, pela concretização sucessiva do discurso humano chegaremos à suprema realidade, que é a realidade divina. Tal foi, aliás, o processo seguido por Octávio Hamelin na sua tese intitulada Essai sur les Éléments Principaux de la Représentation.

A representação não é, para os aristotélicos, apenas modificação dos estados de consciência. O ideísmo, o subjectivismo e o individualismo dos pensadores «modernos», de Descartes a Kant, são nítidas tentativas de oposição àquela solidariedade biológica e cosmológica, digamos assim, que dá significação à palavra Universo. As categorias de Aristóteles relacionam a psicologia com a cosmologia. A alma interior é a forma do corpo exterior. O que observamos nos outros viventes, observamo-lo também nos homens. O pensamento aristotélico está muito longe de uma antropologia que, como a platónica, tende a admitir a alma sem corpo, a completa desencarnação. O pensamento aristotélico está muito perto do que mais tarde se chamou evolucionismo, doutrina que se supõe demonstrar com argumentos das ciências de observação uma tese implícita nas superiores tradições religiosas. A ascensão do homem pela escala zoológica, se for provada por argumentos paleológicos, comprovará o cativeiro e a remissão, a queda resultante do pecado original - o que é muito diferente daquele evolucionismo que outrora foi divulgado para negar o criacionismo do Génesis.

O evolucionismo é uma doutrina mediadora que deixa insolutos os problemas do princípio e do fim. Vale, porém, pelo estímulo teleológico, pelo ímpeto que explica o movimento. Se o intelecto humano, no dizer do autor da Psicologia, é activo e passivo, e se consequentemente não pode pensar sem representação, nada obsta a que, transformando em imaginação a fantasia, a existência actual se transforme em essência possível. Todo o psicodinamismo tem de ser revisto depois de apuradas as noções de acto e potência, já que neste esquema os intérpretes procederam a uma confusão análoga à de forma com figura, esquecendo que a matéria corresponde ao feito, ao perfeito, à perfeição.


Não nos é lícito interpretar o aristotelismo em termos de mecanismo, porque contra tal interpretação conspiram a letra e o espírito das obras de Aristóteles. Vemos, aliás, que na Física de Aristóteles se passa da dinâmica para a cinemática, e da cinemática para a estática, em gradação ascendente da Terra para o Céu, ao contrário da mecânica ensinada nos tempos modernos. O ideal «moderno» da física parece ter sido contrariado pela classificação dos movimentos, das forças e das energias que figura na obra aristotélica; mas no nosso tempo, em que os fenómenos magnéticos, eléctricos e luminosos por sua vez contrariam o determinismo mecanista e materialista, já os esquemas aristotélicos ressurgem para cingirem, melhor do que os outros, a onda, a emissão e a explosão que configuram os principais fenómenos físicos. Se o fenómeno nos é descrito por uma série de fases, entre a aparição e a aparência se restabelece um nexo lógico que permite a inteligibilidade do universo. Não houve revolução a Aristóteles, no decurso dos séculos XIX e XX, porque revolução significa revolvimento, retorno, regresso. Houve, sim, o reconhecimento de um modo perene de filosofar, e portanto a possibilidade de ver na mesma enciclopédia o progresso das ciências filosóficas.

Enciclopédia, dizemos, para lembrar a rotação que era para Aristóteles o movimento mais puro. No centro, o motor imóvel, o infinito, expressão que para significar a transcendência parece de estrutura contraditória. Se soubermos ler na Psicologia a doutrina do movimento que se encontra exposta em outros escritos, em especial a doutrina da circulação angélica e da locomoção humana, compreenderemos o que em puridade significa a eternidade do mundo, cujo emblema admirável é a esfera. Bastará ler com atenção filológica o livro a que Henrique Bergson deu o título de La Pensée et le Mouvant para redescobrir o aristotelismo inspirador do poema evolutivo de Dante. A relação da psicologia com a teologia, a mediação do Logos entre o Homem e Deus, o silogismo que está para a vida intelectual como o amor para a vida religiosa, constituem efectivamente elementos que permitem considerar a superioridade da filosofia aristotélica sobre todas as outras filosofias helénicas ou helenísticas. O aristotelismo contém em si as melhores condições de adaptação aos progressos que a técnica, a ciência e a metafísica foram realizando no decurso dos séculos; mas contém, igualmente, a vigorosa refutação dos sofismas que impedem a inteligência humana de receber docilmente os dados da revelação divina. Em plena Idade-Média, foi o aristotelismo estudado e adoptado por pensadores judeus, cristãos e islâmicos. Não devemos estranhar, antes devemos admirar, que Santo Alberto Magno, e mais limpidamente Santo Tomás de Aquino, hajam visto na obra de Aristóteles a filosofia perene, e, portanto, aquela que mais convém à teologia católica. A confirmação do Magistério Eclesiástico, pela voz autorizada dos Pontífices, tem encontrado fácil eco no nosso país, exactamente porque o aristotelismo está integrado na filosofia portuguesa, quer dizer, na verdadeira tradição portuguesa (in ob. cit., pp. 141-146).



Santo Alberto Magno




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