domingo, 9 de setembro de 2012

Apologia de Sócrates (ii)

Escrito por Platão 





«Sócrates - Nunca fui mestre de ninguém, e se alguém, jovem ou velho, pretende ouvir-me falar e observar o que faço, nunca a tal me opus, nem nunca dialoguei a soldo, nem deixei de dialogar por não me pagarem; antes pelo contrário, estou disponível tanto para o rico como para o pobre; interrogo, e seja quem for pode responder e ouvir quanto digo. Se algum destes segue o bom ou o mau caminho, não é justo que a responsabilidade recaia sobre mim, dado que nunca prometi instruir, nem nunca instruí fosse quem fosse. Se houver alguém que afirme ter aprendido, ou ter-me ouvido em particular algo diferente do que digo em público, ficai certos de que não diz a verdade.

Nesse caso, por que razão há tantos a quem agrada conversar demoradamente comigo? Já ouviste a razão, cidadãos de Atenas, e disse-vos a pura verdade: - é que os diverte o verem confundidos os que se julgam sábios e, todavia, não o são. Ora, isto não deixa de ser divertido. Em todo o caso, e assim o creio, este dever foi-me ordenado pelo deus através de oráculos e de sonhos, e por todas as vias através das quais o poder divino comunica aos homens os seus desígnios.

(...) Se aqueles que, dentre vós, passam por ser superiores, já em sabedoria, já em coragem, já noutra virtude qualquer, se comportassem desse modo [implorar pela absolvição], dir-se-ia uma vergonha. Porque tenho visto algumas vezes homens com reputação procedendo da forma mais surpreendente, quando sob a alçada do Tribunal, como se temessem sofrer algo de horrível caso fossem condenados à morte, como se, não sendo mortos, se tornassem imortais. Em minha opinião, esses tais desonram a cidade e procedem de tal forma, que um estangeiro julgaria que os Atenienses mais excelentes em virtude, aqueles que os cidadãos colocam antes deles mesmos, com honras e magistraturas, não diferem das mulheres. Eis porque, Atenienses, pois que somos tidos na conta de gente de virtude, não devemos assim proceder e porque, se assim procedermos, deveis não o permitir, mostrando, bem pelo contrário, que sois mais severos de juízo para os que encenam tão lamentáveis comédias, chamando o ridículo sobre a cidade, do que para os que mantêm uma atitude serena.

(...) Alguém poderá dizer-me - "Uma vez fora de Atenas, Sócrates, não serias capaz de viver quieto e calado?" Aí está o que acho mais difícil de vos fazer compreender. Se dissesse que esse procedimento constituiria uma desobediência ao deus e que, além disso, não posso estar quieto, pensaríeis que zombo, e não me acreditaríeis; se, por outro lado, afirmar que o falar todo o dia da virtude e de outras coisas que tantas vezes me ouvistes tratar, estudando-me a mim e aos outros é o maior bem de cada homem, e que uma vida sem isto não é digna de ser vivida, ainda menos me acreditaríeis.


Ruínas do tolo de Delfos










(...) Se houvesseis tido a paciência de esperar um pouco, o que desejais teria vindo ao vosso encontro: vêdes como sou velho, como a minha idade é avançada e quão próxima está a morte. Não digo isto para todos, mas apenas para aqueles que votaram a favor da minha morte. E a esses ainda tenho mais para dizer: julgais decerto, cidadãos, que fui condenado por falta de argumentos com que vos poderia persuadir, se achasse correcto fazer e dizer tudo o que fosse necessário para obter a absolvição. Estais enganados. Fui condenado, não por falta de argumentos, sim por falta de audácia e impudência, por não ter vontade de dizer o que teríeis escutado com gozo. Gostaríeis de me ter ouvido gemer e chorar, fazer e dizer muitas outras coisas que reputo indignas de mim - essas que estais acostumados a ouvir de outros réus.

(...) Antes de mais, juízes, - e ao chamar-vos juízes dou-vos o nome de que sois dignos - aconteceu-me algo de maravilhoso. Até ao dia de hoje, aquela voz profética do meu demónio sempre falou comigo, contrariando-me até em assuntos de somenos valor, sempre que eu estava prestes a fazer algo que não devia; mas agora, como podeis ver, acaba de me suceder o que poderia reputar-se, e de facto se reputa, como o pior de todo o mal, o sinal divino não me contrariou, nem quando saí de casa, de manhã, nem quando vinha para este dicastério, nem em nenhum momento da minha defesa. E quantas e quantas vezes, em outras circunstâncias, me interrompeu em pleno discurso! Mas agora, neste caso, não opôs qualquer objecção ao que eu fazia ou dizia. Como explicar este facto? É o que vos direi.

O que acaba de me suceder é, sem dúvida, um bem, e os que entre nós pensarem que a morte é um mal estão enganados. Foi-me dada uma prova convincente, porque o sinal habitual se teria com certeza oposto a mim, se eu não estivesse destinado a ir ao encontro de algo de bom.

(...) Quando meus filhos forem homens, cavalheiros, puni-os como eu vos punia, na caso de eles cuidarem mais do dinheiro e de coisas semelhantes do que da virtude; e se porventura julgarem valer alguma coisa, sem nada valerem, repreendei-os tal como eu vos reeprendi, para que não cuidem do que não devem, e não se arroguem valer o que não valem. Se assim o fizerdes, tereis sido justos para mim e para meus filhos.

Chegado é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para a vida. Qual dos destinos é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe».

Platão («Apologia de Sócrates»).






6. Atentai agora na razão por que vos falo disto - explicar-vos a proveniência do preconceito contra mim. Quando tive notícia da resposta do oráculo, interroguei-me a mim mesmo: - «que significa o oráculo do deus, que sentido oculto há nas suas palavras? Por mim estou cônscio de que não sou sábio, nem muito nem pouco. Que pretende ele significar, ao afirmar que sou o mais sábio? Ele certamente não pode mentir, isso não lhe é possível». E durante muito tempo fiquei perplexo, sem atinar com o significado do oráculo. Por fim e com grande relutância, decidi-me a investigá-lo, da seguinte maneira:

Comecei por ir a casa de um desses homens com fama de sábio, persuadido de que aí, melhor do que algures, poderia verificar o significado do oráculo, se este era ou não fundado, de forma a poder retorquir ao deus: «Eis, afinal, um homem que é mais sábio do que eu, quando tu dizias que eu era o mais sábio». Examinando este homem, - cujo nome não necessito de aqui declarar, bastando dizer Atenienses, que era um dos nossos políticos, esse com quem tive esta espécie de experiência, e conversando com ele, esse homem pareceu-me sábio aos olhos de muita gente e principalmente aos seus próprios olhos, embora de modo algum o fosse. Então, procurei demonstrar-lhe que, embora se julgasse sábio, tal não era. Resultado: tornei-me odioso a esse homem e a muitos dos que se achavam presentes, e, ao sair, ia dizendo para mim mesmo: «Sou decerto mais sábio do que este homem. É possível que nenhum de nós saiba algo de belo e de bom, mas ele julga que sabe quando nada sabe, enquanto eu, que nada sei, não julgo que sei. Enfim, parece-me, por conseguinte, que sou um pouco mais sábio do que ele, pelo menos nisto: em não julgar saber o que na verdade não sei». Em seguida procurei um outro, que tinha a fama de ser ainda mais sábio do que aquele, e obtive idêntica impressão, de onde também passei a ser odiado, por ele, e por muitos outros.

7. Depois deste, prossegui de um para outro, verificando sempre, com pesar e apreensão, que me tornava cada vez mais odioso, mas, não obstante, pensava que devia a maior consideração ao serviço da divindade e, para estudar o significado do oráculo, tinha de ir ao encontro de todos quantos gozavam de fama de saber. E, pelo cão!, cidadãos de Atenas - porque vos sou devedor da verdade - a impressão que me ficou foi esta: os que gozavam de maior fama foram os que me pareceram, quando os examinava, guiado pela intenção do deus, os mais deficientes, enquanto outros, tidos e havidos como inferiores, me pareceram bem superiores em saber. É necessário, por isso, que vos relate as minhas inquirições, como suportei fadigas, para obter a certeza de que o oráculo era irrefutável.

Cariátides







Depois dos políticos, procurei os poetas trágicos, os ditirâmbicos e os outros, pensando que, aí, eu não poderia deixar de ser o de menor saber entre todos. Tomando, de entre os poemas desses homens, os que me pareceram de mais perfeita elaboração, pedia aos seus autores que me explicassem o que eles significavam, por forma a ver se aprendia neles alguma coisa. Sinto vergonha, agora, cidadãos, de vos dizer a verdade, mas tem de ser dita: quase todos os circunstantes eram mais hábeis na explicação dos poemas do que os seus autores. Por isso, ainda quanto aos poetas, ocorreu-me que o que eles compõem não o compõem em virtude do saber, mas em virtude da natureza, e porque estavam inspirados, ao modo dos profetas e dos adivinhos. Também estes proferem ditos muito belos, sem ciência do que dizem. Pareceu-me evidente que também os poetas experimentavam algo de semelhante. Ao mesmo tempo compreendi que eles, em virtude do seu génio poético, se julgavam os mais sábios dos homens mesmo em outros assuntos, todavia não o sendo. Abandonei assim os poetas, persuadido de possuir em relação a eles o mesmo ascendente que verificara possuir em relação aos políticos.

8. Por último, procurei os artistas. Estava ciente de não saber coisa alguma e de encontrar entre eles homens sabedores de muitas coisas belas. E neste juízo não me enganei: eles sabiam o que eu ignorava e deste modo eram mais sábios do que eu. Todavia, Atenienses, esses bons artesãos também me pareceram com o mesmo defeito dos poetas, porque, sendo embora exímios na sua arte, cada um deles julgava-se muito sábio noutros assuntos importantes, e esta ilusão ofuscava o seu real saber, de modo que, quando me interroguei a mim próprio, para justificar o oráculo, preferia ser o que sou, nem sábio na sua sabedoria, nem tolo na ilusão desses homens, ou, pelo contrário, possuir como eles o saber e a ignorância, respondi a mim mesmo que o melhor seria continuar a ser o que sou.

9. Tal foi, Atenienses, a inquirição que suscitou contra mim tantas inimizades tão funestas e tão graves, que delas me provieram muitas calúnias, a par da fama de sábio. De facto, em cada ocasião, os que se acham presentes julgam que sou sábio naqueles assuntos cuja ignorância confuto nos outros. Penso, no entanto, Atenienses, que o verdadeiramente sábio é o deus, que, em seu oráculo, significou o seguinte: «A sabedoria humana é de pouco ou de nenhum valor». E julgo que não queria referir-se exactamente a Sócrates, mas que se valeu do meu nome a título de exemplo, como se dissesse: «Ó homens, o mais sábio de vós é aquele que, como Sócrates, sabe que, afinal de contas, o seu saber é nulo». Prossigo assim esta indagação, segundo o desígnio do deus, continuando a interrogar quem, cidadão ou forasteiro, me pareça sábio. E, quando se me afigura que não é sábio, dou uma ajuda ao deus, e demonstro que não é sábio.






Por causa desta ocupação não tenho tido vagar para me ocupar com seriedade de qualquer tarefa, já pública, já privada, e, assim, por bem servir o deus é que vivo, como se vê, na maior pobreza.

10. Acrescentai a isto que os jovens com disponibilidade para o fazer, por serem das famílias mais ricas, se me dedicam espontaneamente, divertindo-se a ouvir-me a pôr os homens à prova. Por vezes querem imitar-me, e tentam, por sua conta, interrogar os outros. É-lhes fácil encontrar muita gente que julga saber mas que, na verdade, pouco ou nada sabe. Em virtude disso, todos os que se sujeitam a este tipo de exame ficam indignados comigo, em vez de ficarem indignados com os rapazes, e afirmam que «é um tal Sócrates, um maltrapilho que corrompe a juventude».

Quando se lhes pergunta «o que faz ele, ou ensina ele?» nada têm a dizer, pois não sabem, e, para não se desmancharem, proferem acusações que se repetem contra todos os filósofos, dizendo «as coisas do céu e de sob a terra» e «não crê nos deuses», e «fazer prevalecer as ideias nocivas sobre as boas». Compreende-se que não queiram dizer a verdade, ou seja, que não se atrevam a afirmar que estão convencidos de saber, quando na verdade nada sabem. Ora, como são ciosos da sua honra, e violentos, e numerosos, e se referem a mim em uníssono e de forma convincente, encheram-vos os ouvidos de há muito repetidas e agora veementes calúnias. Dentre eles saíram, para me atacar, Meleto, Ânito e Lícon, Meleto em nome dos poetas, e Ânito por conta dos artistas e dos políticos, e Lícon dos oradores. Por isso mesmo, como afirmei no princípio, seria muito estranho se eu conseguisse destruir, em tempo tão curto, uma calúnia quando ela se avolumou tanto. Eis aí a pura verdade, ó homens de Atenas. Falou-vos sem nada vos esconder, sem dissimular seja o que for. E no entanto estou certo de que me tornarei ainda mais odioso com este meu procedimento que, afinal, é uma prova de que falo a verdade, e de que a calúnia erguida contra mim, bem como as suas causas, são tal como as expliquei. Se investigardes, hoje ou noutra ocasião, vereis que assim é...  (in ob. cit., pp. 40-48).





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