Escrito por Leonardo Coimbra
«Se Deus é, se Deus superexiste, como Fonte e Origem absoluta do ser, porque há-de ser a natureza, seja a realidade universal, um todo dado e encerrado em si mesmo, finito e determinado em suas possibilidades?».
«Se Deus é, se Deus superexiste, como Fonte e Origem absoluta do ser, porque há-de ser a natureza, seja a realidade universal, um todo dado e encerrado em si mesmo, finito e determinado em suas possibilidades?».
Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).
«Nunca a filosofia se poderá afastar da vida, nunca o pensamento inquieto poderá desenhar uma figura rectilínea. Na procura da verdade, o homem vai mudando de certezas durante as fases do seu viver. A alteração, a contradição das teses propostas só afligem aqueles que permanecem atentos às fórmulas transitórias. Um sistema filosófico é um desenvolvimento, uma relação de princípio, meio e fim. É a revelação de um segredo. Não se pode antecipadamente definir-lhe o carácter, tal como se pode de cada teorema calcular geometricamente os respectivos corolários.
Os livros de Leonardo Coimbra não estão construídos sobre repetições. São demasiado ricos, para poderem ser explorados ou resumidos à primeira leitura; são demasiado elípticos para consentirem a fácil utilização didáctica. São o meio oferecido a quem quiser determinar o princípio e o fim».
Álvaro Ribeiro («Leonardo Coimbra»).
Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).
«... a carne é um modo de espírito como o planeta é um modo da estrela que o gerou».
Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).
A Alegria
As almas verídicas (porque há aparências, esboços de almas) nutrem-se dum único alimento - o absoluto.
Procurar a substância, as relações totais das coisas, o que é, para além do que aparece, eis a ansiosa tarefa das almas.
O homem comum vive numa concha, formada dos seus hábitos, depósito dum longínquo arranjo social. Não se interroga, não pressente que, em torno dessa concha, marulha um infinito Oceano, removido de infinitas actividades e formas.
No entanto, ele mesmo acredita na absoluta solidez da sua concha, ele mesmo tem um direito e um dever. E quem deve, crê na singular excelência do seu dever.
Por maior que seja o círculo do cepticismo, alguns pontos sólidos, alguns núcleos de realidade se encontram, donde em onde, inexpugnáveis e serenos, sob o embate da dúvida.
Nenhuma expressão mais clara, mais viva, mais fresca, mais originária e directa que a alegria!
Tão directa que quase não é expressão!
A alegria duma manhã é a expressão das vidas que despertam, do grande abraço de luz que as enlaça e acorda?
Não será antes, muito simples e imediatamente, o espectáculo, sem cessar renovado, da Criação?
O que é a manhã?
A obra dum Fiat arrancando ao Caos um Mundo. Que imenso Escultor é esse, que aí surge a talhar o Mundo?
Olhai: não há formas, tudo se dilui em treva; cada ser, cansado de esforço de se isolar, abandona-se e adormece, desegoíza-se.
Podeis dizer que os indivíduos permanecem, porque, se acendeis a luz, eles surgirão.
E não vedes, inteligências da superfície, que a luz vos é emprestada pelo Mistério que quereis negar?!
Podeis dizer que acordais de noite e vos sentis unos e conscientes.
Como me rio das vossas mentiras!
Sois, então, unos; sois, então, indivíduos?
Pobre individualidade! Nunca andastes em procura da própria cabeça, supondo-a para os pés?!
Vamos para o Silêncio do Mar ou da Montanha, porque o ruído altera todas as relações do homem com a Verdade.
Por que é, então, que ao vosso lado sentis a presença de alguém que não fala e não respira, mas se debruça sobre vós, assiste à vossa vigília e vem regelado do frio, que a sombra entornou sobre a Terra?
E a opressão do Silêncio?!
Como vos sentis transparentes e atravessados pelos seus olhos ausentes e concretos, vizinhos, próximos, íntimos, furtando-se numa fugidia, inatingível concavidade!
Se as manhãs se comprassem, todo o oiro dos homens seria teu, ó Sublime Escultor!
Para apressar uma hora o teu Fiat, quantas fortunas acumuladas em largos séculos te seriam oferecidas!
Todas as Noites o Mundo regressa ao Caos, os indivíduos morrem (o que é o sono?), as formas apagam-se, os seres descansam do dramático esforço diurno no amoroso amplexo da Unidade Maternal.
Pela Manhã, o Escultor levanta as formas, o Pintor estende as cores, e o Milagre da Ressurreição, num permanente e eterno drama, boia à flor do Mundo no indistinto e universal sorriso da Luz.
Eis a primeira Alegria: a Alegria da Aurora. As vidas não despertam, renascem; e eis porque cada alvorada é inédita, sem par.
O Mundo sai do Caos todas as manhãs. Louvores à primeira Alegria, que é a perpétua vitória sobre a Morte, a renovada e eterna Criação.
É a alegria da cotovia e das crianças!
No primeiro sorriso luminoso caminha embalado o canto da cotovia e a babélica garrulice da humanidade infante.
A criança nada e canta na luz matutina. Olhai o pequeno bebé: todo ele é movimento para o Oriente, inconsciente, rápida e decisiva oração de carne; todo ele, como imponderável, se agita, soergue e balança na réstia de Luz, que lhe beija os cabelos; todo ele grita, se atira à luz, lança a treva da palavra, crepúsculo da alma que se avizinha.
Vindas da Unidade Maternal, as formas apenumbradas conservam-se fora dos limites nítidos e isoladores. A vibração inicial não se estendeu ainda à superfície definitiva, brinca no Espaço como se fora seu, exibindo, na agilidade graciosa do seu descuido, o poder infinito donde dimana.
Nas proximidades da Origem, é para uma criança, mais no seu espaço, mais em contacto, o Sol, que lhe auscultou a fronte, que as próprias mãos do seu corpo.
O sorriso duma criança adormecida é a espuma da Alegria flutuando sobre a sua mesma oceânica fundura.
Não vos parece, quando debruçados sobre ela, que a sua inocência sorri à parte de inocência originária que em vós, oculta e tímida, ainda subsiste?
(...) A criança é anterior ao pecado das criaturas.
Ela é a promessa infinita, o homem a exígua realização.
Aplicar à criança as medidas do homem é uma amputação criminosa.
Saudemos, nela, a Alegria originária, a mensagem do Desconhecido, a emoção de todos os seres e de todas as coisas diante do milagre da primeira palavra!
Como em torno de si o Universo é misterioso, opulento, cheio de maravilha e perpétuo encanto!
Por isso, nas medidas dos homens, são as crianças mentirosas. Sabei-o, minhas velhas tias: as crianças nem sempre mentem. Criam, como o grande Camilo, o seu romance, o seu drama; e é, por isso, que os vossos sobrinhos, como o grande Camilo com os seus livros, vos faziam às vezes chorar sem bem saberdes porquê?
(...) Deixai mentir as crianças, as desinteressadas mentiras da sua imaginação, oh pedagogos de tantíssimos óculos, pós e sabedorias!
A mentira infantil é um jogo de cores, é a luz originária tamisando-se na névoa do mundo, é o Caos anterior mal sopitado que bate de novo à porta, é a Vida criando-se representações para desinteressadas estesias de Beleza, é a multiplicação dos sentidos, novos olhos para novas cores, mais ouvidos para a música interior dos movimentos.
(...) Mistério opulento, vitalíssimo, é o Universo para as crianças.
- Quem é o pai da Lua?...
Qual não é o poder mitogénico desta pergunta duma perdida e sempre presente criança de três anos!
Em torno das crianças, mil seres desconhecidos vivem e actuam.
E a frescura das sensações!
Por que é que, por todas as terras, se estendem certos modos de brincar?
Em toda a parte foi, e é, para as crianças, um encantador divertimento o das bolas de sabão.
(...) Qual a criança que não estremece de profundo júbilo à mais ligeira vitória sobre a gravidade?
Qual a criança, que não viu mil rebanhos e que não teve a visão védica de campinas e gados, passeando o azul nos flocos das nuvens?
Ah, a doçura, a macia carícia duma nuvem branca, banhada de Sol!
Quem, senão as crianças, tem sentidos para, sem utilitárias interpretações, sentir simplesmente o que é?
Leonardo Coimbra |
Ela é para a criança uma revelação, que a vai destacando da névoa que a envolve. É a imensidade do firmamento, que encanta e atrai a sua alma para o longínquo azul; é o silêncio dos afastados ermos, que solicita palavras capazes de o encherem.
Esta atracção misteriosa, audaciosa e tímida, que sobre nós exerce o Espaço, é ainda um sonho infantil, um estremecimento do nosso ser íntimo, que, como a Natureza dos antigos, tem horror ao vácuo, e em tudo quer pôr o acordo da sua compreensão.
As sensações de hoje são recebidas como simples sinais, as da infância eram qualquer coisa de absoluto, soberano, vital. E, se hoje queremos evocar uma sensação, que não seja escorregadia, incoercível e fugaz, que tenha um timbre de segurança e permanência, é à nossa infância que temos de recorrer.
(...) Renovar as sensações, quer dizer, procurar a pura impressão actual, colocar a alma em face do mundo, com o possível mínimo de memória e utilitário interesse, é um dever de todo o que quer conhecer os inícios da Beleza, e até do que pretende ser leal para com a Realidade.
(...) Sim. Não é mau desmontar, de vez em quando, os nossos mecanismos de conhecer e sentir.
Quem sabe à custa de quantos inconscientes desprezos da sensibilidade eles foram construídos!
(...) Depois de um forte trabalho de sistematização filosófica ou científica, permiti-vos um passeio no campo e tentai deixar em casa as pesadas correntes de casualidade com que tudo costumais aprisionar.
(...) A concentração industrial nas cidades tem, com efeito, amplas influências, modificando até o próprio clima.
A visão citadina é fugaz, instável, em tremulina permanente.
Imaginai um edifício tombado sobre um lado, vagarosamente, com os materiais em companhia, de modo a desenhar a curva da queda. É o que poderia oferecer a novidade da sensação industrial.
Como sensação é desagradável e contraditória, não o é propriamente; antes uma confusão de sensações, que se toma por sensação precisamente pela impossibilidade de a clarificar.
Por isso a criança, que vive no campo, tem sensações mais nítidas, reais e afirmativas.
A longa preparação biológica do homem não se fez para o destino que a indústria lhe pode dar; o corpo do homem é, portanto, inadaptado a tal destino e a tais sensações.
As grandes velocidades podem mesmo perturbar o natural, o biológico significado das sensações.
(...) E a alegria do conhecimento, o júbilo das interpretações?
O que é conhecer, senão alargar a alma a ilimitados horizontes?
(...) Há qualquer coisa de terrível no conhecimento, e muita profundidade na ideia que o alia com a morte. A parcela, que representasse o todo, valia-o só por si; a criatura que compreendesse o mundo, tinha-o em si, interiorizava-o.
(...) Conhecer, penetrar o outro, quase fazê-lo o mesmo; ser na onda sonora, o estremecimento que a gera; ser, na voz do sino aldeão, frémito do bronze; na silenciosa curva do planeta, o próprio abraço, que o sustenta!
Não ser os outros e conhecê-los!
Oh, a sagrada maravilha do Mistério!
Conhecer, compreender e não aniquilar!
(...) Penetrar o Mistério, que sublime Alegria!
Mas sede prudentes.
O Mistério é feminino, tratai-o como Mulher.
Um fino tacto, uma comovida e enleada delicadeza e muito enternecimento vos são precisos.
O Mistério não permite violências. Se tentais violentá-lo, morre da violência.
(...) Mistério próximo e todavia inabordável se nos falta a firmeza, se, nos nossos sentidos e jeitos, é ausente a humildade atenciosa.
Brutalizai uma Mulher e sereis um Moisés Satã, invertendo o milagre de Horebe.
A água volve-se rocha; a lira, que a todos os ventos ressoava, dizendo ocultas e nunca ouvidas faltas, vai imediatamente calar-se. Nada mais será que um efeito do vosso mal, uma caricatura da vossa violência.
O Universo é na vossa frente; virginal e sedutor, tenta-vos. Conquistai-o: mas que fique sempre virgem. Só assim vos continuará a seduzir.
O Mistério é uma Mulher... (A Alegria, a Dor e a Graça, Livraria Tavares Martins, 1956, pp. 19-23; 26; 34-37; 40-45; 48-49).
Continua
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