domingo, 7 de outubro de 2012

A Alegria, a Dor e a Graça (iii)

Escrito por Leonardo Coimbra 




Leonardo Coimbra



«Como, para a ciência moderna, a noção suprema de realidade é a de uma matéria que é pela divisão e pela composição ad infinitum, só o método que procede por divisão e recomposição de partes aparece como adequado; dir-se-ia que aquele factor pelo qual se constitui e se reconstitui indefinidamente a matéria é o mesmo de que a inteligência humana se serve para conhecer e dominar. A ciência antiga, como vimos, dá a matéria como o irracional na própria vida de Deus; é uma substância misteriosa que, por ser a potência de divisão infinita, constitui o elemento básico para as formas que nascem da actividade contemplativa do Espírito. Mas o conhecimento da matéria em si não atraía os antigos por saberem muito bem o que isso significava e até onde poderia conduzir.

Leonardo Coimbra, tendo dado, logo no primeiro livro, a ciência moderna como o mais alto e bem actual momento dialéctico na evolução do espírito humano procurou interpretar a evolução dela com a filosofia no sentido de que esta constituísse a boa e inteligente companheira vigilante que a trouxesse, à mínima ameaça de cousificação, para os caminhos que sobem à montanha de onde se avista todo o universo e se sente todo o seu Mistério. A ciência valeria na medida em que não se esquecesse; a filosofia estava ali ao seu lado para lhe lembrar o verdadeiro, mais alto e profundo sentido das suas descobertas.

Tal posição não se sustentou, foi-se tornando ao longo dos anos mais crítica, até que o filósofo começasse a ver que a ciência pretende outra coisa, pretende, fundamentalmente, garantir pelo pensamento a cousificação.

Poderia tê-lo visto logo de início se tivesse estado mais interessado em ver o que significava a quantificação do que seguir o pensamento na sua actividade de quantificação "progredindo por analogias"».

António Telmo («Viagem a Granada»).


«Ensinou sempre Leonardo Coimbra, mostrou sempre e escreveu sempre de modo a não sacrificar a verdade divina no humano sistema e a não encerrar a vida infinita em qualquer fóssil fórmula, por mais bela ou nobre que parecesse, por mais alta tradição que apresentasse. Muitas vezes nos advertiu, muitas vezes o comunicou em palavra e exemplo; e no seu livro sem dúvida alguma mais original, mais luminoso, mais profundo, mais rico de fecundas perspectivas A Alegria, a Dor e a Graça, advertiu como importa não apenas considerar no estudo da realidade e do homem "a fanerogâmica rútil de sol, mas também a criptogâmica das sombras"».

José Marinho («Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo»).







«Leonardo Coimbra era demasiado dotado de dons artísticos para poder pensar com serenidade dialéctica constante. A cada instante, o problema, para ele, cede lugar ao drama, o esforço discursivo - ao golpe de veemência. Daí a irregularidade de pathos da sua obra, cheia de dissonâncias ditirâmbicas e espasmos de angústia a interromperem os raciocínios mais exigentes de isenção dos impulsos sentimentais; daí, a tendência para a escalada mística da essencialidade do real, para o ataque dramático das questões. Alguns dos seus livros parecem verdadeiras incursões na selva, tal a sugestão auditiva que eles nos dão do que é característico do estado de alma do explorador no ataque e na presença das grandes espessuras vegetais: a respiração da temeridade, o grito selvático desgarrado, a sensação de perseguição, a felicidade do repouso na penumbra de uma clareira que não se sabe onde fica! Servido de uma imaginação extremamente ágil e inventiva no lançamento de intuições iluminantes a grande distância, - o seu pensamento dificilmente se resigna ao avanço gradual da reflexão, apresentando muitas vezes um ritmo ofegante que fatiga, nomeadamente nos livros em que a sua propensão para o pensamento imaginativo e fragmentário é abandonado à deriva, como sucede por exemplo nesse livro, cheio de tantas belezas e ideias, mas indefinido no conjunto, que se chama A Alegria, a Dor e a Graça. Esta complacência - deve porém dizer-se - para com o seu processo temperamental de pensar, excessivamente elíptico, granular e colorido, não é constante na sua obra de pensamento de maior valor especulativo. Leonardo Coimbra (ao contrário do que muitos cuidam, pois dum modo geral aqueles mesmo que teriam alguma competência para estudarem a sua obra, classificam-no um pouco sumariamente como um "discípulo de Bergson") embora tenha reconhecido sempre que a intuição é a fase germinativa primordial do conhecimento, e igualmente reconhecido que o pensamento aforístico, granular e colorido, é uma expressão fecunda e adequada a essa fase do conhecimento, mostrou expressamente nas suas melhores páginas que Bergson era excessivo em erigir o conhecimento intuitivo em conhecimento supremo, e em relegar o discursivo, por conceitos, como essencialmente vicioso, porque, - opina -, o conceito, longe de ser um detrito era, para si, segundo a sua expressão mesma, como uma espécie de potencial psíquico, com uma grande riqueza de intuição inerente. Por temperamento, pois, de artista, Leonardo Coimbra tendia para pensar por golpes rápidos e iluminantes, por imagens; por preferência reflexiva do pensador, reconhecia que o processo superior de conhecer é o que resulta duma explicitação gradual e aprofundante das intuições, feita por meio da velha dialéctica de análise e síntese de noções, constantemente progressiva e regressiva, depurando a sua substância e reformando a sua forma».

Sant'Anna Dionísio («Leonardo Coimbra»).


«Efectivamente, no estilo de Leonardo Coimbra não há hesitação, dificuldade ou disfarce; toda a sua expressão aparece iluminada na sua nudez plástica, e pronunciada em frases directas, ressumando sinceridade e emoção. Apenas quando Leonardo Coimbra é um lírico, por vezes interrompe o seu pensamento dando lugar a hiatos sucessivos, numa entrecortada religiosidade; mas o discurso continua sempre, torrencial e sincero, por mais profundos ou por mais elevados níveis de consciência, parecendo abandonado o tema em discussão, se bem que sempre com ele relacionado, até reaparecer noutra fórmula mais bela. O leitor atento, inteligente e benévolo não terá dificuldade em interpretar o que, parecendo resultar de incoerência e de dispersão, contém, afinal, uma séria e profunda unidade.

Devemos também a Eudoro de Sousa algumas anotações sobre o uso das imagens no estilo do nosso pensador. Compara o ilustre filólogo a prosa de Leonardo Coimbra com a de Henrique Bergson e mostra que o escritor francês, para persuadir os seus leitores, recorre quase sempre a imagens mecânicas, enquanto o orador português, para entusiasmar os seus ouvintes, projecta sucessivamente imagens biológicas. O estudo de Eudoro de Sousa constitui um valioso argumento para refutar quantos falam do bergsonismo de Leonardo Coimbra.




Henrique Bergson




O estilo de Leonardo Coimbra oferece dificuldades ao leitor mediano porque o pensamento do filósofo não permanece na linha horizontal, mas ora mergulha nas águas profundas do subconsciente, como que desaparecendo num hiato crepuscular, ora reaparece navegando na superfície clara da ontologia consciente, ora adeja pelos elementos superiores, de mais pura luz e de mais subtil fulgor. O leitor vulgar preferia decerto que tal discurso fosse o de um sedentário fiel aos lugares-comuns, e que tal obra fosse desenhada com esquadro e compasso, construída com materiais de resistência experimentada e arquitectada segundo um plano de intento moral e utilitário. Tal não poderia ser o estilo do pensamento dinâmico e filosófico que tanto mais se desprende das contingências morais quanto sabe que a vida do homem é uma viagem de aventura, descobrimento e regeneração.

Leonardo Coimbra, adverso por temperamento a toda e qualquer violência demonstrativa, não se propunha provar, nem agir, nem convencer, nem sequer persuadir. Sentenciando, apenas revelava o que sentia. Toda a sua expressão está, pois, marcada de sinais da sensitividade e da emoção, o que a aproxima da linguagem dos poetas.

Depois do momento admirativo de espanto, o pensador reflectia sobre a palavra e a poesia, considerando não só o poder mágico que o artista apreende, mas, ainda, a bondade religiosa que milagrosamente transmuda as almas, e sobre este problema deixou nas suas obras alguns trechos admiráveis. A quem lhe perguntava sobre a intenção dos seus discursos e dos seus livros, costumava responder que escrevia e falava pela mesma razão que os rapazitos cantam ou assobiam quando, de noite, atravessam sozinhos as florestas temerosas. Num passo célebre de A Luta pela Imortalidade, desce a justificar o carácter entimemático do seu estilo, provando assim estar consciente e senhor dos seus processos:

"O que quero é saber interrogar, não sou homem de afirmações e certezas. Já reparou o leitor que a minha gramática é muito admirativa e interrogativa?

Interrogando e admirando.

Eu era capaz de aderir a uma escola literária que só escrevesse pontos de admiração e interrogação, se não soubesse que isso poderia ser mero formalismo de quem nada admira e nada interroga"».

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).





A Graça

A graça é a sensação da liberdade. Aparece em toda a parte, onde uma força se liberte e pouse, sobre a tranquilidade da forma, o sorriso do seu excesso.

A graça é o abraço acrescentado ao corpo, a unidade plena possuindo o mundo e sobrenadando à superfície, como essas figuras dos anjos directores de Kepler, guiando os planetas pelo Espaço.



Johannes Kepler



A graça repousa e perpassa, de larga túnica flutuante, no cósmico abraço dos mundos.

Aquele formidável gigante, que sustentava o Céu nos confins do mar, era heróico, retesado de esforço, nenhum sorriso brincava nos seus lábios.

O anjo de Kepler era gracioso, não combatia atritos; era o próprio planeta, elevando sobre si a unidade do seu destino cósmico.

Entre as concepções da fábula, nenhuma revela, melhor que a sereia, a divina essência da graça.

A sereia contraria a beleza pelo artificial casamento da mulher com o peixe; no entanto, uma vaga simpatia pelo elemento canto, voz subida das ondas; é a presença do excesso livre e desinteressado.

A sereia equilibra o mundo físico pelo corpo e ergue sobre esse mundo a flor da voz humana, solta e ilimitada.

A verdadeira graça não é a da sereia, mas a da própria mulher respondendo pelo corpo às comoções siderais; pela palavra e pelo canto, pondo, em cada resposta, um novo sentido de profundidade, reformando cada gesto com uma secreta intenção de amor.

Mas a nossa inércia esquece-se na harmonia plena, e, para prender a atenção, necessário é desarticular os elementos dessa harmonia.

Esta vitória não resulta, porém, da superioridade do eu sobre os outros, da irracionalidade matemática do Ser; é, pelo contrário, a justificação duma unidade de reais possibilidades, duma infinita possibilidade de formas reais, duma liberdade de ligações, de universal comunicabilidade.

O Universo é uma ordenada coexistência.

Nenhum ser se pode esconder ou furtar às actividades que o cercam. No ponto e no instante está o Espaço e está o Tempo.

No indivíduo está a Espécie e, mais além, a própria Vida, ligando-o ao planeta e aos mundos.

O episódio não existe, porque, ao acidente, que passa, assiste a essência que perdura.

A Graça, sendo o sorriso do Universo, que se possui e ama, pode revelar-se no acidente e no indivíduo, no ponto e no instante.

Na agilidade contente do movimento infantil, ou na microscópica magnificência duma diatomácea, trabalha uma força, que, sob o Oceano e o Céu, sem esforço nem diminuição, desdobra o infinito do seu poder, sobrelevando a obra.



A Graça é a sensação da liberdade, porque é, em cada forma, a presença do Infinito, que a criou e sustenta.

(...) O mundo físico é a graça do mundo mecânico, como o pensamento é a graça do mundo físico.

O arco-íris atravessando o céu é a imagem do pensamento divino envolvendo os mundos.

A Alegria é a unidade concreta dum Universo: sociedade pronta e patente; é, pode dizer-se, a realidade do Ser planificada.

A Dor é a nova direcção da Unidade, quebrada em mil destroços, fragmentada e dispersa, buscando para além.

A Graça é, antes da Dor, o sorriso da Alegria; é, depois da Dor, a Unidade reconquistada boiando sobre os destroços, que, por ela, tomam um novo sentido da Alegria, um lúcido corpo de drama, um valor de revelo e exaltação.

A Alegria atinge-se, é a nossa realidade imediata e é também a nossa conquista.

A Graça é, no indivíduo, a presença dum Infinito de qualidade, que tudo abrange e excede.

A Alegria é a vitória, em cada ser, do sentido de concreto universalismo sobre o abstracto individualismo.

A Graça é o próprio Universo que é presente, por dentro e em espírito, em cada parcela - átomo, mundo ou criatura.

A Alegria canta, a Dor procura e atende, a Graça é.

(...) A Graça é a apreensão do universal no particular, e, quando o primeiro sorriso infantil luariza uma face, é a providência amparando a fraqueza, o anjo da guarda que está vigilante.

Quem uma vez sentiu a graça, viu o próprio Deus. Vejam como ela é variável e sempre fácil em cada instante de realização.

Qual de nós, de amorosas comunicações tão estreitas, poderia, com graça, libertar um cordeiro que vai destinado à morte?

E não o fez S. Francisco de Assis?



São Francisco de Assis (Celebração do primeiro presépio ao vivo em Greccio).



É que, nele, a amorosa comunicação vai até ao irmão lobo, ao Sol e à Lua, e, em nós, mal chega aos mais próximos seres humanos.

O que, no humílimo santo, é a presença da amorosa unidade, seria nos outros uma inversão das ligações, uma estúpida separatividade.

É gracioso o jogo de luz que é o brincar dos peixes da água, mas também (e a que distância!) é gracioso o falar de Cristo.

Todavia é sempre um excesso; o excesso sobre a utilidade do instante, sobre todo o Tempo, todo o Espaço, todas as formas e todas as vidas.

Em nenhum caos existiria, pois, a graça, se o Universo fosse um mecanismo, uma mera necessidade, uma absoluta actualização.

A Graça é o sorriso da liberdade.

(...) Os dois escolhos da liberdade humana são a escravidão e a tirania.

A escravidão é a perda do valor pessoal, a abdicação da palavra própria, da realidade da parcela. É, no mundo humano, a direcção da pessoa por uma lei exterior; seria, no mundo físico, a exaustão completa da qualidade, a sua representação em pura quantidade, a supressão em cada massa de sua qualidade de inércia, a integral redução a puro geometrismo.

A tirania é a invasão dos outros por cada um, a direcção do interior alheio pelo inferior individual, a homogeneização do todo pelo fácies duma parcela. A tirania e a escravidão têm um mesmo processo e um fim comum - o homogéneo.

Sonhai um destino para um povo, tirando esse sonho da vossa exclusiva individualidade.

Realizado o sonho, que vai acontecer? Como nada há fora da repetição, tudo vai estagnar em actualização plena, em perpétua identidade.

Recebei passivamente uma forma, que se vos impõe; a mesma identidade estancará a vida, em perfeito automatismo.

A escravidão e a tirania são a mesma coisa, são tentativas niilistas.



Leonardo Coimbra



O Universo existe pelo seu dramático significado social, é como um fluido enchendo e informando um vaso elástico, cuja elasticidade cansa e se demora. As pausas dessa elasticidade são a inexistência, o alvor do Nada.

Pode dizer-se que a realidade é o infinito animando o nada.

É, neste sentido, que se deve entender a criação; e, neste sentido, ela é contínua e permanente.

Se os deuses dormissem, haveria o nada.

Ora, se a grande árvore da vida recebe a seiva numa direcção, mineraliza o resto, e, pelas raízes mortas ou pelas folhas secas, ela há-de estiolar e morrer.

Esta é a explicação de todas as antinomias e contradições do pensamento humano.

A contraprova é a identidade niilista dos extremos da contradição.

(...) Em qualquer direcção que atravesseis o planeta é o Abismo, a Solidão vazia, que se vos oferece.

Se é Dia, o ruído próximo apaga a voz longínqua e nada vereis para além da Terra; se é Noite, o silêncio do planeta alonga-se sobre o abismo e um imenso, um infinito silêncio, pesa sobre a vossa alma aterrada.

Só o sentido cósmico da realidade vos poderá dar a compreensão do planeta e do abismo, rumoroso de astros. Sim; só o significado universal da existência pode fazer ouvir certas vozes, dar verbo a certas ansiedades.

(...) Trazei ao quotidiano, o eterno; à parcela, o todo; ao acidente, a essência.

A fatalidade não é mais que a queda das formas criadoras, o sono da vida, a lâmpada que quer dispensar o sol e se morre à míngua de alimento.

Se deixarmos cristalizar as formas da actividade, ficará esta enclausurada entre os cristais.

Desde a prática metafísica até à prática social de todos os dias, são os produtos da actividade os seus maiores inimigos.

Porque deixou estagnar o Tempo e o Espaço longe da ideia que lhes dá o ser, foi o pensamento humano aprisionado no ponto e no instante.




O materialismo do Tempo e do Espaço, de qualquer absolutismo que ele resulte, aniquila a liberdade, retirando o interior a todas as existências.

(...) Nunca vistes uma criança conduzindo um carrito de mão, a descer uma encosta? Ela o guia; mas, se o abandona à inércia, será imediatamente arrastada.

Assim é a civilização. Ela compõe-se dum conjunto de instrumentos da acção humana, ela é mesmo o depósito da cooperação social, a escravidão do fim aos meios materiais.

Tudo isto é, no plano prático imediato, a repetição do que aconteceu no longínquo plano metafísico.

(...) A estrutura do mundo físico é a inércia.

É, com efeito, a inércia a base da mecânica, e, se quisermos furtar-nos à mecânica, cairemos na energética, onde o conceito principal de energia é ainda definido em termos de inércia.

Ora já vimos que o significado metafísico da inércia, o seu valor realista é somente o da integral comunicabilidade, do equilíbrio social do Ser.

(...) Todo o mundo físico revela, excelentemente, o esboço duma individualização totalizante (para distinguir do falso individualismo das comunicações cortadas) nas formas cristalográficas. Os corpos tendem para uma forma própria, que as condições exteriores podem estorvar, mas sempre aparece um núcleo matematicamente exacto da forma a atingir.

É uma adaptação ao exterior actual duma forma ideal a realizar.

As leis de cristalografia são uma anunciação das leis biológicas.

É, assim, que o esforço dos que pretendem descer a vida e subir o que chamam matéria escolhe o cristal para a chave do mistério.






(...) Em cada ser vivo é presente uma unidade do seu corpo e uma unidade de vida, que o liga em todos os outros seres.

E todas as leis científicas são a procura da ideia platónica de que participa cada realidade singular.

Esta unidade, presente em todos os seres e fenómenos, não é a unidade aritmética, não é contável, nem quantificável. Ela é presente na quantidade e no número, sem ser o número ou a quantidade.

A quantidade dum círculo é a relação entre o seu espaço e o espaço do quadrado comparativo.

Nessa relação, o número soçobra perante a quantidade, até a um novo crescimento idealista.

E o que realiza o espaço circular, senão a sua participação na ideia da equidistância ao centro.

O centro é já o ponto qualificado, virtualmente contendo o próprio círculo. Aritmetizar essa unidade interior é aniquilar a própria quantidade, que tombaria em poeira de pontos sem ordem, isto é, de nada.

Esta Unidade é sempre presente desde a simples existência mecânica aos laços de gravitação, do abraço eléctrico, esboço da alma envolvendo o planeta, dando aos corpos uma polarização, até à unidade da vida criando as formas e à grande unidade moral ligando as pessoas, dando aos seres um destino comum.

Por não ser quantificável, não a esgota também nenhuma quantidade, ela é sempre um excesso sobre todos os seres e fenómenos.

Daí o duplo aspecto da Realidade: ela é contável e descritível, ela é infinita e inominada.

A Realidade é portanto um Irracional criando a razão e a ordem; Irracional porque nenhuma quantidade a pode medir, nenhuma qualidade a pode esgotar. Não quer dizer que a Realidade seja estranha à Razão, mas sim que a Razão cósmica é infinita e activa, isto é, uma sociedade, um conjunto unificado, um sistema de eficazes actividades.

(...) A primeira, a última, a constante realidade é a acção.



É, por isso, que o movimento cria os novos meios da acção, e, sobre este ponto de vista, o espaço e o tempo são criações do movimento.

(...) E é curioso observar que Aristóteles, apesar da alta consideração em que tinha o movimento, houvesse de recorrer à distinção da potência e do acto para fugir aos argumentos eleáticos, quando lhe bastava simplesmente dizer que, sendo o Espaço e o Tempo pelo movimento, não poderiam aqueles inutilizar este.

É que já tinha pecado contra a grande Unidade, deixando o Espaço degradar-se em coisa em si e só por si. Daí um recurso à primitiva unidade, na potência capaz do acto (in ob. cit., pp. 181-198).


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