«O grave problema filosófico acerca da prioridade da matéria institui-se em diversas leituras, predominando a intendência averroísta e cabalista. António Telmo encaminha a leitura, não no sentido da prioridade, mas no sentido da necessidade: a matéria é isso de que o Espírito carece para se cumprir. Nessa acepção, a matéria interpreta-se como a própria "árvore sephirótica", a genuína madeira (forma vulgar da erudita matéria) que é matéria, mater e mãe, princípio da multiplicação, que se ergue do abismo para se dar à luz do sol, sol esse que é o próprio Espírito. Esta leitura faz compreender o ensinamento maçónico segundo o qual o Grande Arquitecto do Universo edifica o Templo, não com pedra, mas com madeira. Essa madeira é Maria, a matéria pela qual o Espírito humaniza uma pessoa divina, uma hipóstase teótica, através de Maria incarnada no mundo dos corpos. Álvaro Ribeiro, mestre de Telmo, já sublinhara a contiguidade da biografia de Jesus com a ideia de madeira: o pai adoptivo é carpinteiro e, transmite, sem dúvida, a sua profissão ao filho, cuja alma ajudou a carpinteirar, a aperfeiçoar.
(...) O nome dos lugares obriga a repensar o peso do toponímico Fátima, que foi o adoptado pelos fiéis e pelos mais cediços documentos da propaganda e da pastoral. No entanto, Fátima é a jurisdição administrativa dos lugares em que as aparições ocorrem. Lugares nominados em simbologia de fertilidade, de maternidade, de esotericidade matricial e natural: Cova da Iria, Loca do Cabeço, Valinhos. O genuíno lugar sagrado é Cova da Iria, em que a aparição é a de Maria, Mãe de Jesus. Este é o espírito do lugar.
(...) A esta luz consideram-se excedentes os tratados de fundamentalismo fatimista, entre eles, o de Moisés do Espírito Santo, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, Lisboa, Universidade Nova, 1995, sem prejuízo de notáveis concatenações que o Autor obtém, no plano sócio-etnológico-religioso, que merecem atenção. Não temos dificuldade em aceitar a pastoralidade de Fátima quanto ao diálogo Igreja/Islão, tal como definida em escritos de António de Cértima (O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica, 1967) de Frederico Peirone e da pastoral missionária de D. Eurico Dias Nogueira. Cf. Pinharanda Gomes, A Filosofia Arábico-Portuguesa, Lisboa: Guimarães Editores, 1991, pp. 373 e seguintes».
Pinharanda Gomes («Cidade Nova»).
«Em Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, Moisés do Espírito Santo apresenta uma versão cautelosa dos acontecimentos não só deveras interessante como bem mais verosímil.
Ao contrário do que comummente se crê, não foram árabes quem invadiu a Península Ibérica em 711, mas sim berberes de Marrocos, pertencentes às tribus Macemuda e Zenaga, comandados por um berber, Tarik.
Hamsa ("cinco" ou "mão de Fátima", filha de Mohamed). |
Os Macemudas diziam-se descendentes de Fátima, filha de Mohamed, e a sua doutrina era um chiismo primitivo, considerado herético pelo Islão ortodoxo, ou sunita, e que tinha muitos pontos comuns com o gnosticismo, o zoroastrismo e o misticismo cristão. Para os chiitas, a legitimidade da sucessão do Profeta pertence aos descendentes de Fátima, cujo marido, Ali ibn Talib, foi o primeiro Imam, dele descendendo onze imanes. Esta descendência, que podia ser genealógica ou espiritual, implicava a transmissão de um Segredo sobre a chave para a interpretação do sentido secreto e alegórico do Corão. O último Imam, Muhamad al-Muntazar (Mohamed, o Esperado), nasceu, miraculosamente, no ano 255 da Hégira (868 A.D.) e miraculosamente desapareceu cinco anos depois; ocultou-se fisicamente, mas vive, ainda hoje, no seu corpo físico, num mundo supra-sensível, aguardando a chegada da hora da Desocultação Messiânica em que, como Messias, combaterá a injustiça e a decadência moral, após o que virá o Senhor Jesus, filho de Maria, para o Julgamento Final.
Os Macemuda e Zenaga ocuparam a Serra de Aires, onde, naturalmente, deixaram numerosos vestígios toponímicos, quer da sua presença de cinco séculos, quer do seu próprio sistema religioso. Citem-se, a título de exemplo, Moçomodia, uma aldeia de Fátima, que deriva de Macemuda; Zanaga, um bairro de Caixarias, que vem de Zenaga; Fátima, a freguesia, que retirou o seu nome de Fátima, a filha do vali de Alcácer do Sal e protagonista de uma bela lenda dos tempos da fundação de Portugal; Fazarga, um cabeço situado a cerca de dois quilómetros da Cova da Iria, que vem de az-Zagra, a Resplandecente, um dos títulos de Fátima, esta a filha do profeta; Chita, uma ribeira, derivada de chiita; Aljustrel, que virá do hebraico, ou do púnico, ahl ses tr'eli, gente que invoca o regresso de Ali, ou Elias; Madalena, uma corrupção do árabe mahdi i'lana, messias anunciado; Iria, que deriva de riya (lê-se eriía), um grau do sufismo, que significa aparecer, mostrar-se, porque o iniciado sufi começa a ver coisas, etc.
Assim, na opinião deste autor, é muito provável que na região que hoje é a Cova da Iria, sufis das tribus Macemuda ou Zenaga hajam tido várias visões que terão tomado pelo Imam Oculto ou por Fátima, a filha do Profeta. Séculos mais tarde, as visões ter-se-ão repetido na presença de três crianças que tinham acabado de rezar as contas, uma prática semelhante à que os sufis usam para alcançarem o êxtase, cujos relatos contêm a mesma gnose dos fatimidas macemudas: "aparição do Oculto, vulto de luz masculino-feminino de 15 anos, cinco figuras ao lado do sol, sinais no sol", diz Moisés Espírito Santo. Daí que, hoje em dia, os Marroquinos estejam persuadidos de que os Portugueses veneram, na Cova da Iria, Saidatuna Fatemah (Senhora Nossa Fátima), ou Leila Fatemah (Dama Fátima)».
António Monteiro («O que é Fátima?»)
Maria, Mãe e Mestra segundo Álvaro Ribeiro
Quanto às aparições da Cova da Iria, Álvaro parece nada ter escrito de forma inequívoca. Os documentos que nos legou são riquíssimos em termos de Angelologia, de Teologia e de Messianologia, como são algo de singular quanto à natureza e ideal da mulher, acerca da qual escreveu páginas apologéticas sem termo de comparação na nossa cultura. Pensador angélico, sem dúvida, acerca de Fátima foi omisso. No entanto, Francisco da Cunha Leão efectuou, a partir da mariologia alvarina, uma glosa, segundo uma leitura providencialista. Atento aos valores peculiares à tradição popular, Álvaro considerou as devoções marianas, ligando-as à sensibilidade da nossa meiguice e à importância da figura feminina, tanto na poesia como na vida (30). No mínimo estamos certos de um diagnóstico em que acolhe os portugueses como "sedentos de devoções particulares, e contentes com a autorização que o Magistério Eclesiástico concede de publicar e ler as narrativas das aparições maravilhosas e de todos os correspondentes milagres" (31). Álvaro entende que esta aceitação significa o fervoroso desejo de que a intervenção da "Terceira Pessoa da Santíssima Trindade venha, enfim, dar melhor explicação da doutrina revelada" (32), ou seja - as aparições de Maria podem ser olhadas no contexto da pedagogia da fé, ou da educação maternal pelo magistério da fé.
Quem leia os ensaios de propedêutica antropológica de Álvaro Ribeiro, dar-se-á conta de como a condição feminil e de como a missão da mulher - aceite como amante, esposa e mãe - é inteligida por um observador contemplativo e valorante da dignidade e da singularidade da mulher no processo da geração e da redenção do género humano. Nenhum pensador contemporâneo dedicou tão excelsas páginas à mulher como essas que constam do capítulo acerca do amor, no ensaio primacial intitulado A Razão Animada. Segundo Álvaro não há magistério sem amor; o amor é por excelência feminino, de onde o magistério incumbir à mulher, à mãe, tendo o homem, o pai, melhor peso na magistralidade paidêutica. A religião, atributo apodítico do amor, inere muito mais à mulher do que ao homem, de onde Álvaro considerar paradigmática a devoção a Maria, mãe de Jesus. Quem estas palavras escreve pode testemunhar em acto de fidedigna verdade, como, um dia, ouviu de Álvaro a pergunta: "porque é que Nossa Senhora, nas modernas aparições aparece sozinha, como se não fosse mãe?» Não tinha qualquer dificuldade em aceitar os significados da Imaculada e da Assumpção, porque achava estes tópicos nominais como símbolos da excelsitude da missão feminina, mas fazia depender esta excelsitude da missão soteriológico-magistral da mulher, a pontos de entender que a missão do mestre, sendo este masculino, equivalia de algum modo à posse de predicados femininos, antecipando-se ao que já hoje se denomina "maternidade divina". Não se diz pai e mestre, diz-se mãe e mestra, mater et magistra, a mãe e a mestra do homem. Por isso que Álvaro sentisse o que, por suas palavras, se diria constituir a solitude da mãe, sozinha, sem o marido, e sem o filho. Admirava ele a imagem do Perpétuo Socorro, que aceitava como digníssima imagem da missão escatológica da mãe de Jesus. "A predilecção pela imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro explica-se pela razão de que nessa obra de arte está patente a divina maternidade na perfeição dos seus atributos. Não é já a Mãe que amamentou o filho, mas a mãe que o educou e preparou para o seu destino redentor e messiânico. Não é já a maternidade biológica, ainda com sabor pagão, mas a maternidade espiritual, em seu pleno significado educativo... A imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, se bem que contenha os elementos simbólicos do sofrimento humano, deixa indeterminado o exercício fecundo da imaginação" (33). Este olhar para a educadora do homem permite ao filósofo sugestivos tentâmes hermenêuticos à doutrina do pecado original, do mistério da incarnação e da missão redentora do Messias. Aliás, como deixa transparecer em vários dos seus escritos, o mistério da incarnação é menos um facto biológico do que um facto teológico, e isso dá a depreender da dedicatória do livro iniciático A Arte de Filosofar (34) ao poeta que ele considerava como o genuíno poeta do mistério da incarnação, o seu amigo e antigo condiscípulo, José Régio.
Os queixumes do filho são as dores da mãe. Curiosamente, as aparições de Nossa Senhora em Fátima decorrem no chamado ciclo da alegria, que liturgicamente começa logo na segunda-feira de Páscoa com as festas marianas, que se desenvolvem por toda a parte durante o tempo pentecostal e o tempo comum, até ao início do Advento. E, não obstante, a Senhora dos Pastorinhos parece ser Nossa Senhora das Dores ou da Piedade. Trazia uma mensagem de alegria, de esperança, mas o seu coração rebenta de ingente dor: seu filho está muito ofendido pelos pecados dos homens. Ela apresenta ao mundo, através dos Pastorinhos, o seu Jesus crucificado pelos pecados humanos. Ela apresenta o Menino Jesus pregado na Cruz. A Senhora só se identificou como do Rosário em 13 de Outubro de 1917. O bispo de Leiria fundou, em 1928, a Confraria de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no Santuário, mas não foi por acaso que a congregação fundada pelo Cónego Formigão se chama Servas Reparadoras de Nossa Senhora das Dores de Fátima, e que Lúcia professou a primeira vez com o nome de Irmã Maria das Dores.
A imagem da Senhora das Dores aparece, como que a fechar o ciclo, na aparição de 13 de Outubro, embora esta imagem fique delida pela multiplicação de outras imagens surgentes no mesmo ensejo, incluindo a da Sagrada Família. Consideremos, aliás, que um dos primeiros obreiros de Fátima, o militante católico Alberto Diniz da Fonseca, notário em Torres Novas, um dos "empresários do sobrenatural", como lhe chamava o seu amigo e condiscípulo anti-clerical Tomás da Fonseca - também achava que Fátima era principalmente a Sagrada Família e o Anjo da Paz (35), ainda que a iconografia da pastoral optasse pela representação descrita desde início pelos Pastorinhos, a Senhora, sem companhia visível. Alberto terá as suas dúvidas: não foi ele quem apoiou Gilberto Fernandes Santos a encomendar a primeira imagem para a capelinha, não a da Sagrada Família, mas a da Nossa Senhora das Dores, sem espada, e de branco e ouro revestida?
Fechando: no pensamento de mestre Álvaro, em consonância com o de Leonardo, a virgindade vale pela maternidade. Toda a mãe é virgem, baste que se distinga entre oclusividade fisiológica e virgindade espiritual.
Mostração e demonstração
A crítica de Álvaro Ribeiro ao positivismo envolve os aspectos em que o positivismo contaminou a arte e a técnica de exposição da fé e da ciência divina, incluindo a apologética, em que, no seu entender, surgiram obras em que "Deus aparece como um problema ontológico, Cristo como um problema histórico, a Igreja como um problema sociológico" (36). Assim como admite vários graus de revelação, o magistério alvarino assume que nem todo o saber é adquirido e construído, mas que há um saber herdado por revelação, de onde o mérito concedido ao prólogo de Santo Anselmo, "neque enim quaero intelligere ut credam, sed credo ut intelligam", com que abre o seu admirável compêndio iniciático (37).
Ora, do ponto de vista das teses da "Filosofia Portuguesa", os documentos escritos, mesmo os de natureza jurídica, podem não conter a verdade tal e qual, podendo uma escritura conter uma narrativa decorrente de um acordo prévio das partes, para que os termos sejam aqueles e não outros, quais os da situação real. Sendo assim, a interpretação da história pelos documentos positivos não esgota o conhecimento da história através da qual flui um espírito, imperceptível à provação positiva. Esta limitação, óbvia para a história humana, em que os factos podem significar mais (e menos) do que os próprios factos, devém mais complexa na probação dos acontecimentos espirituais de natureza sobrenatural. Por isso, a tradição da escola rejeita, por excessivos, ou unicamente polemizantes, aqueles documentos escritos que, através de uma dialéctica de facto/contra facto, ou de uma antinomia de como é/ como devia ser, ou de uma sofística de que os factos são os factos, de nada valendo argumentos, - tentam positivizar a revelação sobrenatural, situando-a em termos tais que o teatro, ou encenação aparicional, depende muito mais de uma inteligência estética do humano, do que da inteligência divina, inacessível às razões aduzidas do particular. Deste modo, a aparição dirige-se à pistis, ao entendimento pístico, à capacidade de crença e, por fim, ao próprio dom da fé. São desnecessários os livros comprovativos, pela indução de factos particulares, da veracidade, autenticidade ou falsidade das aparições. Até porque, e no respeito do valor axiológico da subjectividade, só o que vê sabe o que vê: e nenhum outro vê como a sua (do outro) subjectividade vê. A aparição não apela à prova, nem sucede para ser demonstrada: ela é a sua mesma prova, uma mostração que recusa demonstração (38). Foram estas orientações que presidiram ao manifesto, ou declaração de vários escritores, entre eles alguns vinculados ao chamado Grupo da Filosofia Portuguesa (Afonso Botelho, Alexandre Coelho, Francisco da Cunha Leão, Henrique Ruas, entre outros) em que, a propósito de um escrito maledicente, afirmaram: "O mistério de Fátima é superior à história, positiva, ou negativa; e garante, todos os dias, um sinal de esperança na verdade da crença e na crença da verdade" (39).
Notas:
(30) Francisco da Cunha Leão, O Enigma Português, Lisboa, Guimarães Ed., 1961.
(31) Álvaro Ribeiro, Apologia e Filosofia, Lisboa, Guimarães Editores, 1953, p. 50.
(32) Id., ib.
(33) Álvaro Ribeiro, "O Perpétuo Socorro na filosofia da nossa vida", in Miriam, Ano II, n.º 11, Porto, 1955, p. 509, Cf. adiante.
São Bernardo de Claraval |
(35) Padre Geada Pinto, prefácio a Pinharanda Gomes, O Servo de Jesus Alberto Diniz da Fonseca, Guarda: Liga dos Servos de Jesus, 1988, p. 8; AA. VV., Espiritualidade das Religiosas Reparadoras de Fátima, Braga: Apostolado da Oração, 1997.
(36) Álvaro Ribeiro, Os Positivistas, Liv. Francisco Franco, 1951, p. 106. Cf. António Quadros, "A Filosofia Portuguesa, de Bruno à Geração do 57", in Democracia e Liberdade, números 42/43, Lisboa: I.D.L., 1987, pp. 7-71.
(37) Álvaro Ribeiro, A Arte de Filosofar, Lisboa, Portugália Editora, 1955, p. 11. Cf. Pinharanda Gomes, "A Arte de Filosofar", in Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa, Lisboa: Fundação Lusíada, 1955, pp. 193-206.
(38) O elenco de obras demonstrativas ou inquiritivas acerca de Fátima é extenso, tanto em apologética negativa, como em apologética afirmativa. Citem-se, entre outros, os livros de Tomaz da Fonseca e de João Ilharco e, por outro lado, de J. Galamba de Oliveira, o popular Fátima à prova (1946) e de P. Oliveira Faria, Perguntas sobre Fátima e Fátima Desmascarada (1975). José Rodrigues Miguéis, no romance O Milagre segundo Salomé (1975) entrecha a história de uma senhora que, em 1917, noiva de um engenheiro que trabalhava em topografia na Serra de Aire, se apresentava por vezes, como sendo "a senhora de Fátima"!!! O romance romanceia, mas não pretende demonstrar seja o que for: cumpre o aproveitamento de uma "estoria".
(39) Essa declaração, que inserimos em Apêndice, apareceu em diversos jornais em 1972 - tendo sido suscitada pelo livro Fátima Desmascarada (1971).
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