«Se o próprio Deus precisou dum filho para se humanizar!
E, dizendo melhor, Deus reencontrou o filho, porque ele tinha começado por ser o Pai, o tronco da árvore familiar.
(...) A maior realidade cósmica, que aos homens foi dado ver com os imediatos olhos do Espírito, foi Cristo.
Quem criou o seu pensamento e a sua vida, toda ela um imediato pensamento de universal e concreto amor?
Pensamento e vida tão unidos que são o próprio Verbo fluindo do centro do Universo.
Compreendeis a flor sem raiz?
Aqui o pensamento é raiz, pelos veios da rocha, através do planeta, abraçando o Cosmo; a vida é a flor, embalsamando o Mundo.
Não é o caso dum ideal suposto realidade, mas o caso duma realidade ideal em tangível e corpórea presença.
Quem teria pensado tão alta doutrina sem plenamente a viver? Não é ela um movimento partido do centro do universo e tudo assimilando ao seu íntimo segredo de amor?
A distância entre o real e o ideal pode existir para os nossos particularistas, para a insaciável sede de presença que nos queima; não existe para um ideal que é a própria consciência de mais absoluta realidade, da completa penetração, da inteira compreensão do Universo. Isto é já muito para indicar que a essência do cristianismo é a própria alma da existência cósmica; é terminante para mostrar a impossibilidade da figura de Cristo com o ideal concebido a que se ajustasse a realidade vivida.
Depois, a vida de Cristo é absolutamente cheia de imprevistos nos mais ocultos detalhes, repassada de acontecimentos de aparente fraqueza, que o papel heróico de personagem concebido como Deus não comportava. Como das mais altas montanhas, surge o sol, ainda mais alto, a reverberar-se na neve, que as cobre, dos evangelhos levanta-se um vulto, que os excede, e, de cuja luz, as suas páginas refulgem. É a figura de Cristo.
Através dos evangelistas nós podemos reconstituir na sua pureza, como a luz branca para além dos corpos, que dela colheram isolados aspectos. A personalidade de Cristo revela a sua essência naquele ponto central da sua vida e do seu pensamento, em que através do finito e do temporal transparece o infinito e o eterno.
O resto é a refracção no atónito pensamento dos discípulos, no próprio papel do Evangelho».
Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).
Basílica do Santo Sepulcro (Jerusalém). |
Catholicon grego |
«Cada vez condeno mais o cristianismo do Leonardo, mas cada vez mais respeito a sua atitude perante a Morte. Ora o cristianismo é ritual de enterro. A paixão do Leonardo pelo Cristo, tão anormal, tão patológica, tão monstruosa, leva-o a fraudes como aquela que V. pode ler a págs. 196-197 do Pensamento Criacionista. Já os padres da Igreja queriam atribuir a Moisés o milagre grego: o Leonardo violentamente despoja a lenda grega dum curiosíssimo significado que ele descobriu para maior glória do cristianismo.
Eu creio na ressurreição de Pan» (21 e 25 de Janeiro de 1932).
«Quem quiser fazer um estudo honesto e profundo sobre o que na nossa geração se afirma, quem não quiser limitar-se a um superficial panorama, terá de explicar duas personalidades: Leonardo Coimbra e José Régio.
Em Leonardo Coimbra não há, felizmente, moral. Há política e religião. Pena é que a Morte e o Cristianismo manchem de sombra tão belo espírito. Mas temos de respeitar a morte dum filho...
Em José Régio existe a amarga e profunda expressão do individualismo - e um heroísmo como o de Nietzsche interpretado por Chestov» (24 de Março de 1931).
«Que nós discordamos do catolicismo social do Leonardo como do protestantismo social do Sérgio já é sabido há muito tempo, mas nessa discordância não pode o Leonardo ver qualquer acto que implique a mínima deslealdade para com ele, que nós muito admiramos e estimamos» (Lisboa, 9 de Agosto de 1933).
«Suponho que V. tenha recebido correspondência regular do Marinho e do Sanches. Escuso, pois, de lhe dizer que o que em Portugal se passou de mais interessante foi a publicação do livro de Sant'Ana sobre Leonardo Coimbra e a consequência polémica com António Sérgio, no Diabo.
(...) Sabe que o filho do Leonardo (o Leonardo Augusto), talvez por sugestão do Ângelo César, está disposto a escrever um folheto sobre o pai, defendendo-o das acusações de A. S. e do Sant'Anna? É desanimador» (10 / XI / 1936).
Porto, Cidade Invicta |
«Depois da morte do Leonardo Coimbra, o país caiu desoladoramente. O Porto é o mesmo burgo de comerciantes, sem interesse espiritual, como no tempo de Amorim Viana. Não há grupos de intelectuais nos cafés, não há conferências, e a própria indústria de livraria desceu de nível. O Porto lê o "Suplemento Literário" do Diário de Lisboa. Não tem vida espiritual própria; o seu bairrismo é desportivo, industrial, jacobino. Um portuense culto, engenheiro e professor, dizia-me à tempos: "O Porto nunca mais progrediu depois de D. Pedro IV e da Carta; mas também não recuou nem perdeu o espírito liberal". Mentalidade burguesa, de burgo e de burguesia, azeda em marxismo nas gerações estudantis. Publicaram-se duas resvitazinhas, o Sol Nascente e o Pensamento, que são a expressão da mentalidade marxista, na medida em que a censura o permite; são as publicações orientadoras de bastantes estudantes de ciências, medicina e belas artes.
(...) Leonardo Coimbra, depois de morto, tem sido atacado grosseira e vilmente por quantos o temiam em vida. Entre esses destaca-se Abel Salazar, jornalista agressivo e incansável na proclamação da falência da metafísica. Abel Salazar escreve em quase todas as publicações consideradas da esquerda, e entrou já na Seara Nova, onde foi recebido com honras especiais. Apesar das divergências em questões menores, disse-lhe António Sérgio, estamos de acordo num ponto fundamental da doutrina seareira, em que: "a filosofia é essencialmente reflexão sobre a ciência" e não certo lirismo místico que em Portugal aparece e que na Germânia abunda». [Maio-Junho de 1937].
Álvaro Ribeiro («Cartas para Delfim Santos»).
«Também o filósofo Leonardo Coimbra nos aparece de enquadrar nos coléricos. Sempre empenhado, aproveitando todas as oportunidades para agir, talento demonstrativo e oratório manifesto. Espírito largo convivente, de feição optimista e luminosidade solar. Dado à acção pessoal directa, mas assistemático, reassumam da sua vida e obra emotividade primária e a febre de acção. Pedagogo apóstolo por excelência, vivia o imediatismo e a dialéctica das relações humanas; deixou por isso discípulos».
Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).
Francisco da Cunha Leão |
Manuel Ferreira Patrício («Leonardo Coimbra» - Colectânea de Estudos).
«Maldita seja essa Universidade em que se quebram tantas energias e se desvirtuam tantas intenções! Que seja arrasada, incendiada, demolida pedra a pedra (…)».
Leonardo Coimbra («Universidade de Coimbra», in Nova Silva, 1909, Ano I. N.º 3).
«(...) ainda não está bem explicado que o esoterismo cristão de Teixeira de Pascoaes, com paralelo na poesia de Dante, evolui para a ortodoxia católica na obra de Leonardo Coimbra».
Álvaro Ribeiro («Sampaio Bruno e a Verdade Oculta», in Revista do Norte, 9, Porto, 1955).
A conversão católica de Leonardo Coimbra
Os homens, por mais fortes que sejam (ou pareçam), raras vezes deixam de ter os seus desfalecimentos nas ocasiões em que sofrem demais; simplesmente, os que são verdadeiramente fortes sabem em regra vencer as crises de excesso de sofrimento por processos, por vezes, os mais simples. Goethe, por exemplo, um dia, no limiar da velhice, ao ver o filho mortalmente doente, viu que não podia suportar em pé aquela terrível vicissitude. E o que fez? Recolheu ao leito, - como se estivesse, ele também, gravemente enfermo; e só de lá saiu decerto quando sentiu que poderia encarar de novo a situação de pé. A conversão de Leonardo Coimbra, no fundo, terá sido alguma coisa desta espécie: terá sido uma maneira diferente de «recolher ao leito».
Goethe |
Na realidade, um homem como Leonardo Coimbra que procura durante anos consecutivos atingir pelo pensamento, por sua conta e risco, a solução do que mais lhe importava; que procura, pela reflexão autónoma, convencer-se de que a Vida é uma coisa terrivelmente séria e com um sentido definido, e (mais) persuadir-se ainda de que do procedimento de cada indivíduo consciente depende, digamos assim, o maior ou menor custo do andamento do curso universal das coisas no sentido desse sentido; que, no entanto, apesar de todos os esforços do seu pensamento não conseguiu nunca possuir a segurança de que necessitava para aferir constantemente o seu procedimento pelas indicações do pensamento, tendo de facto vivido, em grande parte, à margem do esquema de verosimilhanças que o seu pensamento traçava - e que num dado instante, ou dia, ou quadra da vida, dá como inteiramente resolvido tudo o que lhe importava, deveria necessariamente, passar a viver, a partir desse instante, ou dia, ou quadra, como se alguma coisa de extraordinário se tivesse passado nas profundidades da sua pessoa; porque só desse modo a sua profissão de fé terá significado de transmutação temperamental exemplar. Ora, perguntamos nós a todos os que conviveram com Leonardo Coimbra, nos seus últimos dias, até à noite desastrosa, de breu, de 31 de Dezembro: apresentava ele, esse homem angustiado e humoral os sinais de ver tudo de novo»? as suas palavras, os seus actos, os seus hábitos exprimiam alguma profunda transformação interior?
« - Não (dizem outros) L. C. era o mesmo. Apenas mais preocupado com a morte».
Necessariamente, esta maneira de pôr a questão deve parecer a um ou outro extremamente rude. Mas as questões desta natureza não podem ser postas no plano vago das considerações gerais, sem pontos duros de referência. Ora, assim como afastando-nos daqueles que supõem resolver esta questão por uma simples alusão à frase de Henrique IV, nós achamos que o primeiro dever que se nos impunha era o de aceitar esta conversão como um facto profundamente sério e isento de qualquer interferência alheia à essencialidade de um acto desta natureza, assim, em face daqueles outros que se limitam, com ar jubiloso, a registar «mais este exemplo», nós achamos que nos incumbe procurar e invocar todos os factos que nos autorizem a mostrar que o «exemplo» é menos edificante do que parece. No fundo, tanto os que parodiam a frase transaccional de Henrique de Navarra, como os que se limitam a registar, sorridentes, «mais este exemplo», não fazem senão fugir às responsabilidades de reflexão que um problema desta ordem impõe.
Um antigo professor, e notável, já morto, da Faculdade de Letras do Porto, costumava dizer a cada passo: «um facto é, muitas vezes, um equívoco; ou, como dizem os franceses, um acto manqué. Quantas vezes uma pessoa quer dizer ou fazer uma coisa e diz ou faz a oposta! As conversões religiosas são factos privilegiadamente favoráveis a esta interpretação. No entanto, em princípio, uma conversão religiosa deve ser sempre aceite como um facto, e extremamente sério. Mas dessa aceitação não se segue que não se deva honestamente procurar outros, igualmente incontestáveis, em função dos quais ele deva ser julgado e compreendido. Assim: perante a conversão de Leonardo Coimbra, embora aceitando este facto, como o velho professor mandava aceitar - «como um murro» - e embora reconhecendo que em L. C. havia, desde há muito, uma tendência acentuada para a aceitação formal do cristianismo, como atitude convivente e como concepção, não devemos esquecer que, uma tarde, em uma das suas horas de mais profunda intimidade, o pensador não escondeu perante um antigo aluno esta confissão de considerável importância:
« - Eu nunca consegui sentir a realidade ontológica do pecado».
Por estas recordações não pretendemos negar que Leonardo Coimbra tenha sido, de certo modo, um espírito cristão. De facto, no seu pensamento existiu sempre uma pronunciada simpatia pelo cristianismo como esquema concepcional da existência e como posição de alma convivente. Mas o seu temperamento era mais forte que o seu pensamento. As suas dúvidas, e mais ainda do que as suas dúvidas, as solicitações da sua compleição de homem extremamente forte, exuberante, exigente de expansão múltipla e multímoda, de convivência ácida, de alimentação abundante, de influência social, prendiam-no e envolviam-no nas malhas sempre perigosas da convivência excessiva, pondo a descoberto a cada instante o fundo humoral (ou arbitrário, que é o mesmo) do seu duplo. De resto, L. C. não era homem que tivesse a condição mais elementar à realização de uma conversão religiosa profunda: a firmeza e disciplina de vontade. Será lícito invocar, como prova por suplência desta asserção, o seu modo literário de trabalho? Quem ignora que os seus livros foram escritos, alguns, os menores, em poucos dias, os mais volumosos, em algumas semanas? O trabalho tenaz e vagaroso de aperfeiçoamento olhou-o sempre depreciativamente, não atribuindo estima senão às coisas em que achava uma forte impulsão espontânea, sincera e lúdica.
« - Eu conheci ainda, em pequeno, um velho cavalo escanselado - dizia ele algumas vezes - que fez durante vinte anos o transporte do correio da Lixa a Caíde. Vocês acham que devo estimar moral ou intelectualmente esse exemplar de trabalho?»
A sua obra de orador (quase toda perdida, pois ele nunca escreveu uma linha para ler ou recitar em público) acusa bem a «tendência» que estruturalmente o movia de ser sempre incoercível, nunca hipotecando as indeterminações do seu devir, desafiando todos os esforços de visão antecipada do seu procedimento, mostrando-se alternadamente pueril e severo, inquieto e calmo, comovido e cáustico, intratável e lhano, orgulhoso e simples, corajoso e pusilânime, transições rápidas de humor; provocando, em suma, toda a espécie de perplexidades e inquietações. Daí as múltiplas expressões desconcertantes que ele deixou, quer no espírito dos que apenas o viam pelos seus gestos forenses, quer no espírito dos que o conheceram na intimidade. Como é que um temperamento destes - perguntamos pois - poderia realizar uma atitude religiosa tão exigente de estabilidade de ânimo como é a atitude cristã? Deveremos crer que um homem tão complacente com as vagas do seu humor poderia subordinar-se com rigorosa firmeza a uma fórmula de viver de tão difícil realização? Passado o estado dramático de necessidade que condicionou o que alguns afirmam ter sido uma transformação radical e definitiva, não renasceria, mais dia menos dia, o lume rebelde da inquietação -, o regresso ao que não salva mas preenche e dignifica mais que tudo a miséria do homem: a reflexão livre? Nós não ousamos abertamente dizer que esse regresso era inevitável, porque a morte opõe-se à verificação; mas consideramo-lo, pelo menos mais verosímil que a chamada pacificação definitiva. E se suportamos a tentação de negar a possibilidade da transformação radical de tonus convivente de Leonardo Coimbra, fundando-nos com nova insistência na variabilidade de humor da sua vida anterior, é porque reconhecemos que o humor é um «elemento» que interfere apenas à superfície de vida espiritual de um homem. O timbre de uma pessoa, para ser profundamente ouvido, deve ser escutado muito para lá das expressões, muitas vezes mistificadoras, que são os chamados desequilíbrios, fugas ou falhas e outras coisas olhadas de revés pelo consenso social que confecciona os verbetes da reputação. Em trabalhos ulteriores será necessário portanto ir mais fundo e não considerar os desalinhos e as fugas de Leonardo Coimbra como sendo a expressão mais fiel da sua maneira de ser; porque, se um homem superior nas suas zonas superiores é, essencialmente, uma obra de si mesmo, nas suas zonas inferiores é, em grande parte, uma consequência da ambiência, é um espelho que reflecte, ampliados (justamente por ser maior), os defeitos e os erros dos que o cercam. Se quiséssemos, pois, terminar com a nota a mais justa e a que mais importaria salientar, seria necessário colocar este problema de Leonardo Coimbra em uma posição diferente daquela em que acabamos de o colocar, para se mostrar que o seu humorismo (origem dos seus aspectos desconcertantes), foi, muito provavelmente, por um lado, uma espécie de legítima defesa e, por outro, um disfarce púdico de um sentimento doloroso extremamente recalcado: o sentimento de que a situação perante o meio era um pouco como a de um homem, em uma praça cheia de gente estranha, falando outra língua, a querer baldadamente fazer-se entender.
A olhar as coisas do lado de fora parece que Leonardo Coimbra não devia ter razão para possuir esse sentimento, pois, aparentemente, ele foi um dos homens mais aplaudidos e admirados do nosso tempo, no nosso país. Mas quem pode iludir-se? De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de o perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação de transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar algum livro, ele replicava com rápida mordacidade! - «Mas para quê? Neste país não se pensa: neste país...»
Alexandre Herculano |
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