quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Fedro ou da Beleza (i)

Escrito por Platão








Sócrates - Em primeiro lugar, meu caro rapaz, faz de conta que o discurso precedente foi pronunciado por Fedro, filho de Pítocles, natural de Mirrinúsio, enquanto que o que vou agora pronunciar será dito por Estesícoro, filho de Eufemo, e natural de Himereia.

O seu discurso deve ser do seguinte teor:

«Não pode ser verdadeiro um discurso que, tendo admitido a existência de um apaixonado, postule que devem conceder-se favores ao não apaixonado de preferência ao apaixonado, invocando como justificação o facto de o primeiro agir sensatamente e o segundo se encontrar possesso do delírio e da loucura! Seria verdadeiro se a loucura fosse apenas um mal, mas acontece que muitos dos nossos bens nascem da loucura inspirada pelos deuses. Efectivamente, é um estado de delírio que as profetisas de Delfos e as sacerdotisas de Dódona, prestam grandes serviços à Grécia, já na ordem privada, já na ordem pública, pois, quando se encontram no seu perfeito juízo, as suas possibilidades ficam reduzidas a pouco ou a nada. Depois delas podemos falar da Sibila? Podemos falar de todos os que, utilizando o poder divinatório que um deus lhes inspira, ditaram a muita gente e em muitas ocasiões o recto caminho a seguir? Fazer isso seria perder tempo com o que é evidente para todos nós!

Mas também esse facto merece ser aqui testemunhado, pois constitui uma prova de que na Antiguidade os homens, ao instituírem os nomes, não consideravam o delírio, ou mania, uma coisa vergonhosa, nem motivo de opróbrio. De outro modo, se assim não acontecesse, não teriam dado à arte de adivinhar o futuro, a mais bela das artes, o nome de maniké, a arte delirante! Foi justamente por considerarem o delírio como uma virtude bela, uma vez que provém de uma graça divina, que lhe deram esta denominação. Em contrapartida os modernos, destituídos do sentido do belo, introduziram naquela palavra um t e passaram a designá-la por mantiké, ou arte divinatória. De maneira diferente procedem as pessoas que se dedicam a prognosticar por meio da observação do voo das aves e de outros sinais; com efeito, esta arte procura dar ao pensamento humano (öiêsis), a inteligência (nôus) e o conhecimento (história) e por isso se denomina oïo-no-istikê. Actualmente, chama-se a esta arte oïônistiké, ou arte das aves, arte dos áugures, utilizando um o longo para tornar a palavra mais enfática. Por este motivo, a arte da profecia suplanta, já em perfeição, já em dignidade, a arte dos áugures, tanto na denominação como nas funções, e assim, tal como os Antigos no-lo testemunham, a loucura inspirada pelos deuses é, por sua beleza, superior à sabedoria de que os homens são autores!

Mas não ficamos por aqui: enquanto essas doenças, esses flagelos terríveis que, em consequência de antigos ressentimentos, vindos não sabemos de onde, ainda existem em certos indivíduos de uma raça, o delírio profético manifestou-se em alguns predestinados e encontrou o meio de afastar esses males, precisamente pelo recurso às preces dirigidas aos deuses e pela prática de cerimónias em seu louvor. Graças ao delírio, surgiram os ritos catárticos e iniciáticos, pondo o que neles participa ao abrigo dos males, tanto do presente como do futuro, e fazendo com que os homens, animados de espírito profético, encontrem o meio de proteger-se contra aqueles males. Há ainda uma terceira espécie de loucura, aquela que é inspirada pelas Musas: quando ela fecunda uma alma delicada e imaculada, esta recebe a inspiração e é lançada em transportes, que se exprimem em odes e em outras formas de poesia, celebrando as glórias dos Antigos, e assim contribuindo para a educação da posteridade. Seja quem for que, sem a loucura das Musas, se apresente nos umbrais da Poesia, na convicção de que basta a habilidade para fazer o poeta, esse não passará de um poeta frustrado, e será ofuscado pela arte poética que jorra daquele a quem a loucura possui.




Áugure



Embora não sejam somente estas, já ficas sabendo quais são as belas vantagens que se podem usufruir de um estado delirante inspirado pelos deuses. Podemos agora concluir que não devemos recear, nem devemos deixar-nos confundir pelo espantalho de uma doutrina, segundo a qual se deve preferir a amizade do homem sensato à amizade do homem apaixonado. Bem pelo contrário, a vitória deve ser dada ao apaixonado, pois o amor foi enviado pelos deuses no interesse do amante e do amado, e é isso mesmo, contra aquela tese, que procuraremos demonstrar: os deuses desejam a suprema ventura daqueles a quem foi concedida a graça da loucura. Certamente que esta demonstração não convencerá os habilidosos, mas será convincente para os sábios. Nestas condições, a primeira coisa a fazer é tornar explícita a natureza da alma, dos seus estados e actos, assim como indagar se esta natureza é humana ou divina.

Esta demonstração parte do seguinte princípio: a alma é imortal, pois o que se move a si mesmo é imortal, ao passo que, naquilo que move alguma coisa, por sua vez, é também movido por outra, a cessação do movimento corresponde ao fim da existência. Somente o que se move a si mesmo não deixará de mover-se e, vendo assim, constitui também fonte de movimento para as outras coisas que se movem. Ora, um princípio constitui algo inato, pois é a partir de um princípio que necessariamente assume existência tudo aquilo que existe, ao passo que o princípio não provém de coisa alguma, pois, se começasse a ser partindo de qualquer outra fonte, não seria princípio. Por outro lado, como não proveio de uma geração, não se encontra sujeito à corrupção, pois é evidente que, uma vez o princípio anulado, jamais poderia gerar-se nele, porque ele é o princípio e tudo provém necessariamente desse princípio. Podemos então concluir que o princípio do movimento é o que a si mesmo se move e por isso não pode ser anulado, nem pode ter começado a existir, pois, de outra maneira, todo o universo, todas as gerações parariam e jamais poderiam voltar a ser movidas a encontrar um ponto de partida para a existência.

Agora que foi demonstrada a imortalidade do que se move por si mesmo, não haverá qualquer escrúpulo em afirmar que essa é exactamente a essência da alma, que o seu carácter é precisamente este. Com efeito, todos os corpos movidos por um agente exterior são inanimados, enquanto o corpo movido de dentro é animado, pois que ele é o movimento e natureza da alma.

O que se move a si mesmo não pode ser outra coisa senão a alma, de onde se segue necessariamente que a alma é simultaneamente incriada e imortal.

No que respeita à imortalidade da alma basta o que dissemos. Quanto à natureza, é necessário explicá-la da seguinte forma:

Caracterizá-la daria ensejo a um longo e divino discurso, mas como se trata apenas de oferecer uma breve imagem, bastará um discurso humano de menores proporções, e nessa medida tentamos falar: a alma pode comparar-se a não sei que força activa e natural que unisse um carro a uma parelha de cavalos alados conduzidos por um cocheiro. Os cavalos dos deuses são de boa raça, mas os dos outros seres são mestiços. Quanto a nós, somos os cocheiros de uma atrelagem puxada por dois cavalos, sendo um belo e bom, de boa raça, e sendo o outro precisamente o contrário, de natureza oposta. De onde provém a dificuldade que há em conduzirmos o nosso próprio carro.

Estátua de Sócrates


Posto isto, de onde derivam as denominações de mortal e imortal, atribuídas aos seres vivos? Convém que expliquemos igualmente este ponto. É sempre uma alma que rege todos os seres inanimados mas, ao circular na totalidade universal, reveste-se, aqui e ali, de formas diferentes. Quando é perfeita e alada, paira nos céus e governa o universo e, quando perde as asas, precipita-se no espaço, tombando em qualquer corpo sólido, onde se estabelece e se reveste com a forma de um corpo terrestre, o qual começa a mover-se, por causa da força que a alma que está nele lhe transmite. É a este conjunto do corpo e da alma, solidamente ajustados um ao outro, que designamos por ser vivo e mortal. Quanto ao imortal, não é coisa que possamos explicar de forma racional, mas podemos conjecturar, mesmo sem experiência e sem suficiente intelecção, a ideia de Deus: um ser vivo imortal que possui uma alma, que também possui um corpo, ambos unificados para uma duração eterna, o que depende da vontade da Divindade. Passemos agora ao estudo das causas que levam as almas a perder as asas. Uma causa pode ser esta:

A natureza da asa consiste em poder conduzir um corpo pesado para cima, para as alturas onde habita a raça dos deuses, e por isso a alma é, de entre tudo o que participa do corpóreo, o que, simultaneamente, mais participa da natureza divina. Ora, a natureza divina é bela, sábia e bondosa, dispondo de todos os atributos pertencentes a esta categoria. Nada existe melhor do que estas qualidades para alimentar e desenvolver o sistema alado da alma, da mesma maneira que o pesado, o feio, o mau, tudo o que contrasta com as qualidades precedentes, a degrada e conduz à ruína. O grande capitão do céu, Zeus, ao sair com o seu carro alado, é o primeiro a avançar, ordenando todas as coisas e cuidando de tudo. É logo seguido por um exército de deuses e de demónios, repartido por onze secções. Somente Héstia [a Terra] fica em casa. Quanto aos outros onze, cada um serve de guia à sua tribo, à tribo que foi destinada a cada um deles. Por este motivo, são frequentes e beatíficos os espectáculos que estas evoluções oferecem no espaço onde vive a grande família dos deuses, cada um deles realizando a tarefa que lhe foi atribuída, de onde resulta que o poder e a vontade estão sempre harmonizados, pois não há lugar para a Inveja no coração dos deuses! Muitas vezes, sempre que se dirigem para o banquete que aguarda os deuses, os carros sobem por um caminho escarpado que os conduz ao zénite da abóbada celeste. Como os cavalos que puxam os carros dóceis, a subida é fácil para os deuses; para os demais, é uma subida penosa, porque o corcel de má raça puxa e inclina o carro para a terra, dificultando a tarefa de condução do carro ao que dela está encarregado.

É nesse lugar que as almas experimentam a alegria suprema, pois as almas a que chamamos imortais, uma vez que atingiram o zénite, são tomadas de um movimento circular e podem contemplar as realidades que se encontram sob a abóbada celeste.

Nenhum poeta compôs ainda um hino em louvor desta região supra-celeste, e jamais haverá algum que possa compor um hino digno do tema. Mas vejamos como ela é, pois, se há um ensejo de dizer a verdade esse é, mais do que nunca, aquele em que falamos da própria Verdade.




Pois bem: a realidade que realmente não tem cor, nem rosto, e se mantém intangível; aquela cuja visão só é proporcionada ao condutor da alma pelo intelecto; aquela que é património do verdadeiro saber, é essa Verdade que ocupa efectivamente aquele lugar. Daqui se infere que o pensamento de um deus se alimenta de inteligência e de sabedoria puras, assim como o pensamento de todas as almas que se dedicam à procura do alimento que mais lhes convém quando, no decorrer do tempo, puderam aperceber-se da realidade, é nesse lugar que as almas encontram a possibilidade da contemplação das realidades verdadeiras (a qual é uma alimentação benfazeja), até que o movimento circular as faz retornar ao mesmo ponto. Enquanto este movimento dura, a alma pode contemplar a Justiça mesma, bem como a Ciência, pois ela tem na sua frente, sob os seus olhos, um saber que nada tem a ver com este que conhecemos, sujeito às modificações futuras, que se mantém sempre diversificado na diversidade dos objectos aos quais se aplica e aos quais, nesta existência, damos o nome de Seres. Ela é verdadeiramente Ciência que tem por objecto o Ser das seres. Depois de ter contemplado as essências das coisas, uma vez saciada no conhecimento, a alma regressa, o cocheiro põe os cavalos à manjedoura e dá-lhes ambrósia para comer, e néctar para beber. Se, quanto à existência dos deuses assim é, vejamos agora o que se passa com as outras almas.

Estas tentam tudo para serem dignas de seguir os deuses, erguendo para cima a cabeça do cocheiro mas, perturbadas pelos corcéis que puxam o carro, apenas conseguem vislumbrar as realidades. Tão depressa levantam como baixam a cabeça e, como não conseguem dominar a desarmonia dos corcéis, apenas vêem algumas realidades, mas não conseguem ver outras. Outras almas existem cuja única aspiração é subir, movimento que logram efectuar com perfeição. Mas isso de nada lhes vale porque, no movimento circular, com a ânsia de se colocarem nos primeiros lugares, acabam por se atropelar umas às outras e daí resulta uma grande confusão, a luta, os suores e, por culpa dos cocheiros, acabam por se ferir umas às outras, e muitas acabam por perder as penas das asas. Enfim, invadidas por extrema fadiga, acabam por cair, sem chegarem a iniciar a contemplação da Verdade e, uma vez caídas, apenas lhes resta a opinião como simples alimento. A causa que atrai as almas para a contemplação da Verdade consiste em que só ali encontram o alimento que as pode satisfazer inteiramente, desenvolver as asas, esse alimento que, enfim, liberta as almas das terrenas paixões.

Segundo a lei de Adrástea [a personificação da "justiça distributiva"], todas as almas que se integram no séquito de um deus são agraciadas com a contemplação de algumas verdades. Por outro lado, durante a viagem circular, mantêm-se isentas de pecado e, se conseguirem manter este estado, ao fim de cada viagem continuarão isentas de pecado, como a princípio. Mas, se não conseguirem a fortaleza para tanto, ser-lhes-á retirada a graça daquela visão. Com efeito, quando, por qualquer causa funesta, se animam de esquecimento e de perversão, tornando-se pesadas, perdem as asas e acabam por cair na terra. Todavia, uma lei existe que prescreve que, no primeiro nascimento, uma alma não pode entrar no corpo de um animal; aquela que maior número de verdades tenha contemplado, está destinada a implantar-se no sémen de onde se gerará um filósofo, um esteta ou um músico; a alma de segundo grau animará o corpo de um rei obediente às leis ou o de um guerreiro hábil na estratégia; a alma de terceiro grau animará o corpo de um político, economista ou financeiro; a de quarto grau animará o corpo de um atleta ou de um médico; a de quinto grau terá direito a dar a existência a um profeta, ou a um adivinho consagrado em qualquer forma de iniciação; a de sexto grau será a do poeta, ou de qualquer outro criador de imitações; a de sétimo grau será a de um artesão ou camponês; a de oitavo grau, será a do sofista, cuja arte consiste em lisonjear o povo, a demagogia; a de nono grau corresponderá à de um tirano.




Suponhamos que, dentre todos estes homens, houve um que teve uma existência digna. Receberá, como recompensa, melhor sorte, enquanto a pior será atribuída ao que levou uma existência indigna.

A alma não voltará ao ponto de onde saiu senão passados dez mil anos, isto é, não receberá as asas antes que esse tempo se cumpra, com excepção dos filósofos e dos que amam os jovens com amor filosófico. De facto, as almas destes, tendo escolhido três vezes seguidas a vida da filosofia, recebem as asas à terceira revolução milenar e afastam-se. Quanto às outras, uma vez terminada a primeira vida, são submetidas a juízo e, depois de julgadas, umas vão cumprir as penas para locais de penitência que há abaixo da terra, outras, absolvidas pela justiça, sobem para um lugar do céu, onde desfrutam de uma existência que as recompensa da vida que levaram enquanto tiveram a forma humana. Mas, no milésimo ano, as almas destas duas espécies são obrigadas a escolher uma segunda existência, cuja escolha depende da vontade de cada uma delas. Desta maneira, uma alma humana pode entrar no corpo de uma besta, assim como uma alma bestial pode entrar no corpo humanal, desde que noutra das suas vidas anteriores, tivesse sido a alma de um homem, pois as almas que nunca contemplaram a verdade não podem assumir a forma humana, pelo seguinte motivo: a inteligência humana deve exercer-se segundo o que designamos por Ideia, indo desde a multiplicidade das sensações para uma unidade cuja abstracção é a verdade racional. Este acto de abstracção consiste numa recordação das verdades eternas contempladas pela alma no momento em que se integrava no séquito de um deus, quando podia contemplar estas existências a que atribuímos a realidade e quando, depois, levantava os olhos para o que é verdadeiramente real. Assim, é perfeitamente justo que só o espírito do filósofo disponha de asas, porquanto nele a memória permanece fixada nesses objectos reais, tornando-se, dessa maneira, semelhante a um deus! É utilizando convenientemente essas recordações que um homem, cuja iniciação nos mistérios perfeitos, foi sempre perfeita, se torna autenticamente perfeito, pois um homem deste quilate dirige a sua alma somente para os objectos divinos, o que leva a multidão a considerá-lo como um louco, muito embora ele se encontre apenas possesso de um deus, coisa que a multidão não pode apreender! Do que dissemos, atingimos a quarta espécie de delírio, sim do delírio: quando, vivendo neste mundo, se consegue vislumbrar alguma coisa bela. A alma recorda-se então da beleza real, recebe asas e deseja subir cada vez mais alto, como se fosse uma ave. Impossibilitada de conseguir, negligencia as coisas terrenas, assim dando a parecer que não passa de um louco! Por isso, entre as várias formas de entusiasmo, esta revela-se como sendo a mais perfeita e a que melhores consequências acarreta, tanto para quem a possui como para quem dela participa, e por isso se costuma também dizer que os possuídos por este entusiasmo se designam por amantes (in Fedro, Guimarães Editores, 1989, tradução de Pinharanda Gomes, pp. 52-64).

Continua


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