quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O "Xarajibe" de Silves (ii)

Escrito por Garcia Domingues




Castelo de Silves


As residências do Xarajibe ficariam no interior do castelo e prolongar-se-iam para oeste, ocupando a zona de uma moradia com amplos quintais, hoje aí existente. Ainda no século passado, como se pode provar por fotografias, havia uma comunicação bem saliente, entre o castelo e os edifícios a ocidente, agora desaparecida.

Também a volta em meia-lua de fachada ocidental do castelo nos parece indicar que alguma coisa aí havia de diferente que estabeleceria comunicação com outra zona fortificada. Não nos parece difícil admitir que dentro do castelo de Silves houvesse moradias. O castelo de Silves é hoje constituído por uma vasta cerca rodeada de torres e muralhas que terminam superiormente por um friso de ameias e seteiras intervaladas e conjugadas.

A cerca tem sobre si três metros de entulho, em profundidade, aí colocado depois do terramoto.

Apesar disso notam-se vestígios de edifícios. Além da cisterna mourisca, presentemente meio soterrada, há, logo à entrada, restos de outros torreões, à esquerda indícios de um edifício de dois andares, ao centro sinais de um enorme paredão que dividia o castelo em duas partes, e, ao fundo, duas salas soterradas a que impropriamente se chamou celeiros, silos ou masmorras e que comunicam entre si por uma elegante ogiva apontada.

E, abaixo desta camada de terreno, não existirão ainda vestígios de mais antigos edifícios?

Se o castelo de Silves tem dentro de si residências, não é impossível que essas residências constituíssem parte das moradias do Xarajibe. A parte principal do palácio, no que se refere a pátios e jardins ficaria para ocidente, rodeada por uma forte alcáçova. Nesta zona têm sido encontrados preciosos restos de cerâmica árabe.




A localização do Xarajibe, no castelo, embora ocupando maior extensão amuralhada, é o que nos parece mais natural, se bem que ainda problemático (8). Se isso se verificasse, o Xarajibe, afinal, existiria ainda hoje e, se bem que com muito menos fama, continuaria a constituir o orgulho da cidade, como no tempo de Al-Mu’tamid e de Al-Mu’tazz.

O castelo de Silves é visitado insistentemente por turistas portugueses e estrangeiros, como, há pouco, pelo Marechal Mannerheim que muito o admirou e dele quis levar perpétua recordação.

Desde quando existiu o Xarajibe e quem o fundou?

Não se fala do Xarajibe em tempos anteriores a Al-Mu’tamid. Al-Mu’tamid é o primeiro a empregar essa expressão na sua conhecida poesia. Isso não quer porém dizer que ele não existisse com anterioridade.

Se tivesse sido Al-Mu’tamid o seu construtor, a tradição não deixaria de o mencionar. O Xarajibe existia antes de Al-Mu’tamid. Na crónica anónima dos «Muluk At-tauaif», recentemente publicada por Lévi-Provençal, refere-se que o último príncipe dos Beni-Mozaine de Silves, foi assassinado «no seu palácio» (9). Este palácio, em nosso entender, não seria outro senão o «castelo» (alcácer), e, portanto, o futuro Xarajibe.

Esta designação de Xarajibe teria sido dada ao castelo pelo próprio Al-Mu’tamid cujo espírito poético se preocuparia, naturalmente, em criar para o castelo uma designação também poética.

Se o Xarajibe ficava no castelo, teremos para ele uma história muito remota que vai além da época romana. Todavia, o castelo árabe devia ter sido construção mais recente.



É muito natural que só tivesse surgido na época da guerra dos muladis, século X, quando no Algarve, os Iáhias se revoltaram contra Córdova e Becre Ibn Iáhia foi residir para Silves.

Sabe-se que este Becre instalou em Silves, além de tropas disciplinadas, uma Chancelaria e um Conselho de Estado. Por Al-Mu’tamid temos conhecimento de que o Xarajibe devia possuir um harém.

Ora o palácio árabe consta essencialmente de três partes: o harém, o mexuar e o divã. Mexuar e divã são palavras que tanto podem designar a instituição como o edifício em que se instala.

Ao instalar em Silves uma Chancelaria (mexuar) e um Conselho de Estado (divã), não teria Becre dessa forma dado início ao futuro palácio do Xarajibe acondicionando construções já existentes que depois seriam modificadas e ampliadas pelos Beni-Mozaine e pelos Abádidas?

É o que julgamos mais natural. Admitimos, portanto, que nas origens do Xarajibe esteja a dinastia dos Iáhias de Santa Maria do ocidente (Faro) e, sobretudo, aquele Becre Ibn Iáhia que deslocou a sua corte e a sua capital cultural para a cidade do rio Arade (Odarade ou Widrade, como lhe chamaram os autores cristãos).

Até quando existiu o Xarajibe?

Existia ainda no século XII, a quando da acidentada vida de Ibn Qasî. Depois, perde-se a memória do Xarajibe, mas é muito natural que tivesse persistido até à conquista portuguesa.

No que se refere às formas arquitectónicas do Xarajibe, nada se sabe, a não ser que, muito provavelmente, possuiria varandas de que lhe veio o nome e átrios e terraços, como se diz na descrição de Al-Mu’tazz.

Quanto à sua escultura decorativa, Dozy interpreta as expressões «leões» e «cavalos» que surgem, respectivamente, na poesia de Al-Mu’tamid e na evocação de seu filho, como estátuas de leões e de cavalos que existiriam no Xarajibe.

As estátuas não estão muito de acordo com as prescrições do Alcorão, mas, na verdade, apareceram noutros palácios como no Azáhra dos arredores de Córdova e na Alhambra de Granada.


Al-Zahra


Também o Xarajibe possuía estátuas?

É possível, mas não nos parece certo. Em abono desta tese encontra-se, porém, a autoridade do insigne arabista que foi Dozy.

Quais as cenas históricas que se passaram no interior do Xarajibe?

Admitindo que o Xarajibe se situasse no próprio castelo, sabemos que foi aí morto o último príncipe dos Beni-Moizane, depois de uma resistência heróica.

Al-Mu’ tamid e Ibn Ammar instalaram-se no Xarajibe e passaram a fazer aí a sua conhecida vida de poesia e de festas. Aí se devia ter verificado a cena de terrores referida por Almarracuxi (10).

Uma noite, Ibn Ammar dorme no mesmo quarto que Al-Mu’tamid. Altas horas sonha que Al-Mu’tamid se levanta contra ele e o quer matar. Ibn Ammar acorda e fica estupefacto com a nitidez do sonho. Torna a adormecer e tem o mesmo sonho, acordando, de novo, mais emocionado. À terceira vez, deixa-se sugestionar pela força persuasiva do sonho e, aterrado, foge.

De manhã, Al-Mu’tamid dá pela falta dele. Procura-o e manda procurá-lo, por toda a parte, no palácio.

Finalmente, Ibn Ammar é encontrado, escondido ao lado da porta de saída e tiritando de medo. Al-Mu’tamid pergunta-lhe o que se passou. Ibn Ammar explica-lho. Com todo o carinho, fraternal, Al-Mu’tamid leva-o, de novo para os seus aposentos, pretendendo convencê-lo de que tudo fora um sonho, sem valor. Nessa altura, mal sabiam que o sonho se havia de cumprir e que Ibn Ammar seria morto por Al-Mu’tamid num acesso de ira, deste.

Mais tarde, elevado Al-Mu’tamid ao trono de Sevilha, o Xarajibe seria habitado por Ibn Ammar e, depois, por Al-Mu’tazz.



D. Afonso Henriques



Passada a época dos abádidas e a dos almorávidas, vem para Silves, a de Ibn Qasî. Conforme o depoimento de Ibn Alabar, o Xarajibe foi então residência do Mahdi dos Múridas. Não se teria a cena da recepção à embaixada de Afonso Henriques desenrolado no interior do Xarajibe? De qualquer modo aí se passou a da morte do grande Mahdi.

Tratando-se do castelo, sabemos que resistiu com a maior bravura, em 1189, e com idêntica valentia, em 1191.

Se a «Crónica da conquista do Algarve» não fantasia demais, rendeu-se a D. Paio Pérez Correia, depois deste ter entrado na cidade, com as suas tropas, pela porta da Azóia.

Também a lenda tomou conta do Xarajibe e do castelo onde deve ter existido.

Ao castelo se atribui a lenda das amendoeiras. Um rei mouro teria mandado plantar amendoeiras nos montes à volta, para dar a sua esposa, uma cristã do norte, a impressão da neve a que se havia acostumado e sem a qual vivia em nostalgia intensa.

Desaparecidos os mouros de Silves, ficou aí outra lenda, símbolo de saudade e de tragédia, a lenda da moura que surge na cisterna do castelo, na noite de São João, à meia-noite, numa barquinha de oiro com remos de prata, entoando hinos dolentes da sua raça banida.

Será a moura do castelo uma última recordação do Xarajibe?

Mas o próprio Xarajibe tinha consigo, possivelmente, uma lenda incomparavelmente mais bela, mais sedutora e apaixonante. No parecer de Dozy, que interpreta à letra as palavras de Al-Mu’tazz, existiam no Xarajibe amuletos ou talismãs cuja presença constituía a segurança e a riqueza do palácio e cujo afastamento significaria a sua ruína e perdição.

Os talismãs do Xarajibe colocam-nos em pleno mundo oriental e medieval das «Mil e uma noites». Uns pequenos objectos, talvez estatuetas de antigos deuses, talvez jóias preciosas, talvez coisas de significação cabalística, gozavam desse poder estranho de fazer a grandeza e a glória do palácio e da dinastia que o habitasse.

Se assim foi, por que motivo e quem teria retirado do Xarajibe esses talismãs para que ele se houvesse afundado e desaparecido na voragem dos tempos?

E por onde andarão esses talismãs que não são procurados e ajuntados para que o Xarajibe possa ressurgir no máximo da sua grandeza e do seu brilhantismo?

Pelos seus talismãs o Xarajibe se integra na mentalidade mágica dos árabes e confirma a impressão de mistério e de magia que o castelo, onde devia ter existido, comunica a quem o admira sobretudo de oriente nos magníficos poentes de sangue, fogo e oiro.

Quem hoje, do Monte da Jóia, em frente da cidade, contempla o castelo de Silves, com as suas torres altas e muralhas vermelhas, as suas ameias, adarves e seteiras, em recortes heráldicos, os seus terraços e varandins que descansam sobre torres ligadas aos panos dos muros por arcos gigantescos, não duvida de que nos seus interiores possa ter havido elegantes residências principescas, capazes de entusiasmar e de dar vida e colorido à existência juvenil de um príncipe poeta luso-árabe do século XI, com o refinamento de espírito dum humanista do renascimento e a elevação sentimental dum romântico de nobre quilate.



Ibn Arabi



Como não duvidará de que tenha sido o forte alcácer em que viveu o grande Mahdi dos Múridas que depois de ter prometido a salvação universal pelo Islão, do Cabo do Algarve aos campos de Almeria e de Sevilha, aí pereceu num lago de púrpura, por haver firmado solene e firme pacto de aliança com o rei cristão Ibn Errick, legando no entanto, à posteridade, o maior tratado de filosofia e de teologia mística e ascética muçulmanas, concebido e redigido por homens do Garbe, tão notável que Ibn Arabi, o mais profundo e subtil pensador religioso do islamismo o estudaria em Tunes, anos passados, como uma das suas fontes mais apreciadas (in ob. cit., pp. 46-50).


Notas:

(8) Para a solução definitiva do problema seria interessante o conhecimento da carta em que Mohamede Ibn Abdelar descreve a tomada de Silves por Al-Mu’tamid. Essa carta deve figurar na edição completa do «Calaíde Al-Iquiane», de Ibn Cacane e na «Cosmografia» de Casuíni.

(9) Lévi-Provençal publicu a tradução francesa em apêndice à última edição da «Histoire des Mussulmans d’Espagne», de Dozy.

(10) O texto árabe da «História dos Almóhadas» de Abdalhuaíde Almarracuxi foi publicado por Dozy, em 1881, em Leyde e a sua tradução francesa, por E. Fagnan, em 1893, na cidade de Argel.


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