segunda-feira, 15 de março de 2010

O Caminho para a Servidão (vii)

Escrito por Frederico Hayek











«É bem significativo que, em toda a parte, a estatização do pensamento acompanhe pari passu a estatização da indústria».

E. H. Carr


A maneira mais eficaz de levar toda a gente a servir o sistema único das finalidades que a planificação social tem em vista, é fazer que toda a gente acredite nessas finalidades. Para que um sistema totalitário funcione eficazmente, não basta que todos sejam forçados a trabalhar para os mesmos fins; é também preciso, é essencial, conseguir que as pessoas considerem esses fins como seus. Embora a escolha de tais fins seja alheia às pessoas a quem são impostos, é necessário que elas os adoptem como convicções próprias, como uma crença geralmente aceite que leva os indivíduos a fazerem espontaneamente aquilo que os planificadores querem que eles façam. Se nos países totalitários o sentimento da opressão é, em geral, muito menos vivo do que se imagina nos países liberais, é porque os governos totalitários conseguiram, com grande êxito, pôr as pessoas a pensar como eles pretendem.

E conseguem-no, evidentemente, através das várias formas de publicidade e propaganda. A técnica é já tão conhecida que pouco é preciso dizer dela. Um só aspecto há a sublinhar: o de que nem a propaganda em si mesma nem os meios que ela utiliza são exclusivos do totalitarismo, e se sua natureza e seus efeitos aparecem tão profundamente modificados nos Estados totalitários é só porque, neles, toda a propaganda serve o mesmo único objectivo e todos os meios são coordenados para influenciarem os indivíduos num único sentido e produzirem a característica Gleichschaltung (uniformidade) de todos os espíritos. O efeito da publicidade e da propaganda nos países totalitários é, por isso, muito diferente, tanto na extensão como na qualidade, do da propaganda que, dirigida para diversas finalidades, é feita por agências entre si independentes e concorrentes. Se todas as fontes de informação estiverem sujeitas a um controlo único, deixa de haver grande dificuldade em persuadir as pessoas disto ou daquilo. Qualquer propagandista hábil ficará, então, com o poder de encaminhar os espíritos para onde quiser e nem as pessoas mais inteligentes e senhoras de si escaparão totalmente a essa manipulação caso se mantenham isoladas de outras fontes de informação.

Adolf Hitler no Teatro de Charlottenburg (Berlim, 1938).


(...) O modo mais eficaz de levar as pessoas a aceitarem os valores que têm de servir consiste em persuadi-las de que são precisamente esses os valores que elas, ou as melhores dentre elas, sempre defenderam mas sempre se viram impedidas de fazer compreender ou reconhecer. As pessoas são assim levadas a transferir a sua fidelidade aos velhos deuses para os novos ídolos, na persuasão de que estes últimos é que efectivamente são aquilo que o secreto instinto sempre lhes segredara mas que só vagamente haviam podido vislumbrar. E a técnica que melhor resulta para atingir este objectivo é a de continuar a empregar as velhas palavras mas dando-lhes um novo significado. A um observador superficial, poucos aspectos dos regimes totalitários serão tão perturbantes e, ao mesmo tempo, tão caracterizadores do ambiente intelectual, como a total perversão da linguagem que cobre a alteração do significado das palavras que esses regimes utilizam para exprimir os seus ideais.

Neste aspecto, a palavra que mais sofre é, evidentemente, a palavra liberdade. É ela usada com total desembaraço em qualquer regime totalitário. Pode de facto dizer-se - e que isso nos sirva de aviso e precaução contra todos os tentadores que nos prometem New Liberties for Old (20) - que sempre que se destrói a liberdade no sentido em que nós a entendemos, tal destruição é feita em nome de uma nova liberdade que se promete ao povo. (...) Como para estes políticos [os totalitários], também para eles [os planificadores] a liberdade que nos oferecem, a «liberdade colectiva», não é a dos membros da sociedade mas a liberdade sem limites do planificador para fazer da sociedade o que lhe apetecer (21). É a confusão entre a liberdade e o poder levado ao extremo.

Neste caso específico, a perversão do significado da palavra foi preparada por uma longa linha de filósofos alemães a que não deixaram de dar o seu apoio muitos teorizadores socialistas. O significado da palavra liberdade transferiu-se para o contrário do que era a fim de servir de instrumento à propaganda totalitária. Já verificámos como o mesmo aconteceu com a justiça e a lei, o direito e a igualdade. E a lista alarga-se mais pois podem incluir-se nela quase todos os termos políticos e morais de uso corrente.

Quem não tiver tido a experiência do fenómeno, dificilmente pode avaliar a confusão que a alteração do significado das palavras provoca e as barreiras que levanta a toda a discussão racional. É preciso ver para acreditar como entre dois irmãos se torna impossível qualquer comunicação autêntica quando um deles segue a nova doutrina e aparece, em pouco tempo, a falar uma linguagem diferente. E a confusão é ainda mais grave porque a alteração do significado das palavras não é um fenómeno isolado mas constitui um processo ininterrupto, uma técnica que, consciente e inconscientemente, se destina a dominar o povo. Pouco a pouco, à medida que o processo avança, toda a linguagem vai ficando despojada de sentido, as palavras tornam-se conchas vazias sem qualquer significado, tanto designam uma coisa como o seu contrário e, se continuam a ser utilizadas, é apenas para provocar os reflexos emotivos a que ainda estão ligadas.

Liga das Raparigas Alemãs (Nuremberga, 1938).


Não é difícil privar a maioria das pessoas de um pensamento independente. Mas a minoria que se mantém atenta e crítica, não pode deixar de ser silenciada.

(...) Tanto como as ideias acerca dos valores, os factos e as teorias constituem matéria da doutrina oficial. E todo o aparelho de comunicação e ensino, as escolas e a imprensa, a rádio e o cinema, serão exclusivamente destinados à difusão das opiniões que, verdadeiras ou falsas, fortificam a confiança nas decisões do Estado; e toda a informação que possa suscitar dúvidas será escondida. O único critério para decidir se uma informação deve ser publicada ou escondida, é o do efeito que ela possa ter na fidelidade do povo ao regime. A situação em que se vive num estado totalitário é, permanentemente e em todos os sectores, idêntica àquela em que, nos Estados não totalitários, só se vive, durante os períodos de guerra, em alguns sectores. Tudo o que possa suscitar dúvidas sobre a competência do governo ou criar descontentamento, será escondido do povo. Serão suprimidas todas as informações que forneçam meios de comparação com a situação noutros países, que dêem indicações sobre possíveis alternativas para o caminho agora empreendido, que sugiram falhas por parte do governo, não ter ele cumprido as promessas que fez, não ter sabido aproveitar as oportunidades para melhorar a situação. Com este condicionalismo, não haverá nenhum sector que não esteja sujeito ao controlo sistemático da informação e onde não seja obrigatória a uniformidade de opiniões.

Tudo isto se aplica a tudo, até a campos aparentemente muitos afastados dos interesses políticos, designadamente a todas as ciências, mesmo as mais abstractas. Compreende-se com facilidade, e a experiência só o tem confirmado, que, num sistema totalitário, não seja permitida a busca desinteressada da verdade nas disciplinas que, mais directamente ligadas aos problemas humanos, mais directamente podem afectar as opiniões políticas: a história, o direito, a economia. Nestas disciplinas, a defesa das doutrinas oficiais terá de constituir o objectivo único. E na realidade, tornaram-se elas, nos países sujeitos ao totalitarismo, as fábricas mais produtivas de mitos oficiais que os chefes utilizam para guiarem os espíritos e as vontades de seus súbditos. Nada admira que se chegue a pôr de lado, até como pretexto, a busca da verdade e sejam as autoridades que decidem quais as doutrinas a ser ensinadas e publicadas.

A "mulher nazi" destinada a casar com oficiais das SS.


O controle autoritário da opinião estende-se também a domínios que, à primeira vista, parece não terem significado político. É muitas vezes difícil explicar porque é que certas doutrinas são oficialmente proscritas e outras incentivadas, e é curioso observar como estas preferências são semelhantes nos vários regimes totalitários. A todos eles parece comum uma forte aversão pelas formas mais abstractas do pensamento, aversão de que também participam, significativamente, muitos dos colectivistas que há entre os nossos cientistas. Seja, por exemplo, a teoria da relatividade apresentada como «um ataque semita à física cristã e nórdica» ou seja ela atacada por estar «em conflito com o materialismo dialéctico e o dogma marxista», o resultado é o mesmo. Também não faz grande diferença que certos teoremas de estatística matemática sejam repudiados porque «fazem parte da luta de classes na frente ideológica e são um produto do papel histórico da matemática como lacaia da burguesia» ou porque «não dão garantias de servirem os interesses do povo». Parece que nem as matemáticas puras escapam, e até a defesa de determinadas opiniões sobre a natureza da continuidade pode ser considerada «um preconceito burguês». Segundo os Webbs, o Journal for Marxist-Leninist Natural Sciences contém os seguintes slogans: «Pelo Partido na Matemática», «Pela pureza da teoria marxista-leninista na cirurgia». A situação é semelhante na Alemanha. O Journal of the National-Socialist Association of Mathematicians está cheio de expressões como «o Partido da matemática», e um dos físicos alemães mais conhecidos, o Prémio Nobel Lennard, resumiu o trabalho de toda a sua vida no título A Física Alemã em Quatro Volumes! (in ob. cit., pp. 241-242 e 246-248/250-252).


Notas:

(20) Título de um livro recente do historiador americano C. L. Becker, Novas Liberdades em Troca das Velhas.

(21) O sr. Peter Drucker - The End of Economic Man, p. 74 - observa com razão que «quanto menos liberdade há mais se fala da "nova liberdade"». Mas esta «nova liberdade» não passa de uma palavra que quer dizer exactamente o contrário do que a Europa sempre conheceu como liberdade: «a nova liberdade pregada na Europa é, sim, o direito da maioria contra o indivíduo».






Continua


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