«É bem significativo que, em toda a parte, a estatização do pensamento acompanhe pari passu a estatização da indústria».
E. H. Carr
A maneira mais eficaz de levar toda a gente a servir o sistema único das finalidades que a planificação social tem em vista, é fazer que toda a gente acredite nessas finalidades. Para que um sistema totalitário funcione eficazmente, não basta que todos sejam forçados a trabalhar para os mesmos fins; é também preciso, é essencial, conseguir que as pessoas considerem esses fins como seus. Embora a escolha de tais fins seja alheia às pessoas a quem são impostos, é necessário que elas os adoptem como convicções próprias, como uma crença geralmente aceite que leva os indivíduos a fazerem espontaneamente aquilo que os planificadores querem que eles façam. Se nos países totalitários o sentimento da opressão é, em geral, muito menos vivo do que se imagina nos países liberais, é porque os governos totalitários conseguiram, com grande êxito, pôr as pessoas a pensar como eles pretendem.E. H. Carr
E conseguem-no, evidentemente, através das várias formas de publicidade e propaganda. A técnica é já tão conhecida que pouco é preciso dizer dela. Um só aspecto há a sublinhar: o de que nem a propaganda em si mesma nem os meios que ela utiliza são exclusivos do totalitarismo, e se sua natureza e seus efeitos aparecem tão profundamente modificados nos Estados totalitários é só porque, neles, toda a propaganda serve o mesmo único objectivo e todos os meios são coordenados para influenciarem os indivíduos num único sentido e produzirem a característica Gleichschaltung (uniformidade) de todos os espíritos. O efeito da publicidade e da propaganda nos países totalitários é, por isso, muito diferente, tanto na extensão como na qualidade, do da propaganda que, dirigida para diversas finalidades, é feita por agências entre si independentes e concorrentes. Se todas as fontes de informação estiverem sujeitas a um controlo único, deixa de haver grande dificuldade em persuadir as pessoas disto ou daquilo. Qualquer propagandista hábil ficará, então, com o poder de encaminhar os espíritos para onde quiser e nem as pessoas mais inteligentes e senhoras de si escaparão totalmente a essa manipulação caso se mantenham isoladas de outras fontes de informação.
Adolf Hitler no Teatro de Charlottenburg (Berlim, 1938). |
Neste aspecto, a palavra que mais sofre é, evidentemente, a palavra liberdade. É ela usada com total desembaraço em qualquer regime totalitário. Pode de facto dizer-se - e que isso nos sirva de aviso e precaução contra todos os tentadores que nos prometem New Liberties for Old (20) - que sempre que se destrói a liberdade no sentido em que nós a entendemos, tal destruição é feita em nome de uma nova liberdade que se promete ao povo. (...) Como para estes políticos [os totalitários], também para eles [os planificadores] a liberdade que nos oferecem, a «liberdade colectiva», não é a dos membros da sociedade mas a liberdade sem limites do planificador para fazer da sociedade o que lhe apetecer (21). É a confusão entre a liberdade e o poder levado ao extremo.
Neste caso específico, a perversão do significado da palavra foi preparada por uma longa linha de filósofos alemães a que não deixaram de dar o seu apoio muitos teorizadores socialistas. O significado da palavra liberdade transferiu-se para o contrário do que era a fim de servir de instrumento à propaganda totalitária. Já verificámos como o mesmo aconteceu com a justiça e a lei, o direito e a igualdade. E a lista alarga-se mais pois podem incluir-se nela quase todos os termos políticos e morais de uso corrente.
Quem não tiver tido a experiência do fenómeno, dificilmente pode avaliar a confusão que a alteração do significado das palavras provoca e as barreiras que levanta a toda a discussão racional. É preciso ver para acreditar como entre dois irmãos se torna impossível qualquer comunicação autêntica quando um deles segue a nova doutrina e aparece, em pouco tempo, a falar uma linguagem diferente. E a confusão é ainda mais grave porque a alteração do significado das palavras não é um fenómeno isolado mas constitui um processo ininterrupto, uma técnica que, consciente e inconscientemente, se destina a dominar o povo. Pouco a pouco, à medida que o processo avança, toda a linguagem vai ficando despojada de sentido, as palavras tornam-se conchas vazias sem qualquer significado, tanto designam uma coisa como o seu contrário e, se continuam a ser utilizadas, é apenas para provocar os reflexos emotivos a que ainda estão ligadas.
Liga das Raparigas Alemãs (Nuremberga, 1938). |
(...) Tanto como as ideias acerca dos valores, os factos e as teorias constituem matéria da doutrina oficial. E todo o aparelho de comunicação e ensino, as escolas e a imprensa, a rádio e o cinema, serão exclusivamente destinados à difusão das opiniões que, verdadeiras ou falsas, fortificam a confiança nas decisões do Estado; e toda a informação que possa suscitar dúvidas será escondida. O único critério para decidir se uma informação deve ser publicada ou escondida, é o do efeito que ela possa ter na fidelidade do povo ao regime. A situação em que se vive num estado totalitário é, permanentemente e em todos os sectores, idêntica àquela em que, nos Estados não totalitários, só se vive, durante os períodos de guerra, em alguns sectores. Tudo o que possa suscitar dúvidas sobre a competência do governo ou criar descontentamento, será escondido do povo. Serão suprimidas todas as informações que forneçam meios de comparação com a situação noutros países, que dêem indicações sobre possíveis alternativas para o caminho agora empreendido, que sugiram falhas por parte do governo, não ter ele cumprido as promessas que fez, não ter sabido aproveitar as oportunidades para melhorar a situação. Com este condicionalismo, não haverá nenhum sector que não esteja sujeito ao controlo sistemático da informação e onde não seja obrigatória a uniformidade de opiniões.
Tudo isto se aplica a tudo, até a campos aparentemente muitos afastados dos interesses políticos, designadamente a todas as ciências, mesmo as mais abstractas. Compreende-se com facilidade, e a experiência só o tem confirmado, que, num sistema totalitário, não seja permitida a busca desinteressada da verdade nas disciplinas que, mais directamente ligadas aos problemas humanos, mais directamente podem afectar as opiniões políticas: a história, o direito, a economia. Nestas disciplinas, a defesa das doutrinas oficiais terá de constituir o objectivo único. E na realidade, tornaram-se elas, nos países sujeitos ao totalitarismo, as fábricas mais produtivas de mitos oficiais que os chefes utilizam para guiarem os espíritos e as vontades de seus súbditos. Nada admira que se chegue a pôr de lado, até como pretexto, a busca da verdade e sejam as autoridades que decidem quais as doutrinas a ser ensinadas e publicadas.
A "mulher nazi" destinada a casar com oficiais das SS. |
Notas:
(20) Título de um livro recente do historiador americano C. L. Becker, Novas Liberdades em Troca das Velhas.
(21) O sr. Peter Drucker - The End of Economic Man, p. 74 - observa com razão que «quanto menos liberdade há mais se fala da "nova liberdade"». Mas esta «nova liberdade» não passa de uma palavra que quer dizer exactamente o contrário do que a Europa sempre conheceu como liberdade: «a nova liberdade pregada na Europa é, sim, o direito da maioria contra o indivíduo».
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