sexta-feira, 19 de março de 2010

A selva oscura da economia (ii)

Escrito por Orlando Vitorino







«O ponto chave (do conhecimento económico) já o haviam visto aqueles notáveis precursores da economia moderna que foram os escolásticos portugueses e espanhóis do Séc. XVI».

Frederico Hayek (in discurso sobre «A Pretensão do Conhecimento», pronunciado na recepção do Prémio Nobel em 1974).


Menos por percepção intelectual e culta do que, também como eu, por o sentirem na carne, as populações reagiram como o corpo reage à doença, e se ainda hoje não alcançaram desfazer o processo político em que se viram envolvidas, antes lhe continuando a deixar abertas todas as vias, conseguiram, no entanto, travá-lo. Quanto a mim, intelectual que sou, procurei compreender: compreender o que é a economia, como se forma a sua ciência, como ela transita, de actividade natural e espontânea em que cada um é dono do que é seu e faz do que é seu o que entender, para uma rede complexa e impenetrável de regulamentações de que só alguns detêm o comando e o segredo. Pus-me, durante alguns anos, a ler os livros mais actuais, ou mais recomendados e celebrizados pela «cultura oficial», suportando, com esforço e paciência, a enfadonha prolixidade de todos eles, observando como seus autores, personalidades de renome, são pródigos na descrição de minúcias que toda a gente conhece ou imediatamente apreende e são avaros e fugazes na exposição, quase sempre apenas alusiva, das teses, conceitos e definições mais decisivos da sua ciência. Deles me soltei por fim ao remontar à origem dessa ciência, lendo «A Riqueza das Nações», de Adam Smith, e deparando, aliviado, com uma clareira de simplicidade e raciocínio. Pude, a partir daí, refazer o caminho percorrido na formação da ciência até chegar à leitura da «Acção Humana», de Ludwig von Mises, que vi ser, para o período contemporâneo da economia, o que «A Riqueza das Nações» foi para o período clássico. Certifiquei-me assim de que era possível compreender, coisa de que já chegara a desanimar. Por fim, encontrei nas obras de Milton Friedman e, em especial, de Frederico Hayek, sobretudo em «A Constituição da Liberdade» e «O Caminho para a Servidão», a demonstração das causas e dos fins do que estava a acontecer no meu país. Entendi, então, que devia, pois já o podia fazer sabendo o que conseguira saber, também por minha vez intervir. Tratar-se-ia, naturalmente, de uma intervenção intelectual.

Fundei uma modesta revista a que dei o título de «Escola Formal», em homenagem a meu mestre Álvaro Ribeiro que, com esse título, escrevera um livro expondo as teses imprescindíveis à liberdade do pensamento. A revista defendia o liberalismo e a liberdade económica e, embora difundida apenas nos meios intelectuais, foi recebida como a provocação «reaccionária» de uma doutrina «ultrapassada». Traduzi e editei um dos citados livros de F. Hayek e consegui trazer o autor a Lisboa, onde proferiu três conferências e dirigiu três colóquios acolhidos com espanto, falsa indignação e temor. Estávamos em 1977, o socialismo era considerado a doutrina de todo o futuro, um dogma indisputável, até por aqueles que menos o desejavam, e «a via de transição para o socialismo» acabara de ser consagrada na Constituição Política. Nestas circunstâncias, ver discutir, criticar e refutar tal dogma por um homem cuja autoridade científica só não foi contestada porque acabara de receber o Prémio Nobel da Economia, afigurava-se inacreditável. A meio de uma das conferências, um ministro das finanças abandonou a sala vituperando e um embaixador de França insultou os organizadores das conferências em desagravo do Partido Socialista Francês de que era membro.

Ao mesmo tempo, ia eu verificando que o pensamento e as obras que me haviam por fim orientado na aventura em que me lançara, sobretudo as que, no período contemporâneo, haviam dado à ciência o desenvolvimento e os fundamentos que ela não obtivera no período clássico, eram totalmente ignoradas pelos nossos economistas, não figuravam no ensino universitário e nem sequer se encontravam nos circuitos comerciais livreiros. O que assim acontecia em Portugal, acontecia noutros países. Em vão procurei, nos manuais e «sebentas» das universidades, qualquer exposição dos «meus» teorizadores. Como tivesse comentado na «Escola Formal» tão injustificável ausência, um professor catedrático fez, em público, um desmentido indignado, dando o seu próprio curso como prova do contrário. Lá fui eu percorrer, linha a linha, a «sebenta» desse curso e apenas consegui descobrir uma citação do nome de F. Hayek entre outros vários nomes dados para ilustração de uma nota acidental. Viria eu a encontrar, num livro de von Mises, a informação - que transcreverei mais adiante - de que a situação correspondente existiu nas universidades alemãs e inglesas.

Também os «meus» teorizadores eram ignorados nas livrarias. Não me foi possível comprar ou fazer vir do estrangeiro qualquer das suas já muito numerosas obras. Da «Acção Humana», por exemplo, só consegui obter, e fora dos circuitos livreiros, uma tradução castelhana editada por iniciativa de entidades particulares, e do «Caminho para a Servidão», editado em Inglaterra em 1942, só se fez uma reedição em 1975, quando o autor obteve o Prémio Nobel. Assim a existência da ciência é hoje uma existência clandestina.

Nos meios economistas, por fim, deparei com a mesma ausência e a mesma ignorância. Ainda em 1981, um ministro das Finanças (1), ao abandonar o seu cargo governativo, publicando uma longa justificação da política económica que seguira, afirmava que «logo à partida pusera de lado o monetarismo de M. Friedman, o qual, os economistas não sabem bem o que seja.

Frederico Hayek e L. von Mises


E uma noite, num clube de Lisboa, pronunciara eu, entre alguns amigos, o nome de von Mises, quando, do fundo da sala, se nos dirige um desconhecido: «Foram os senhores que falaram de von Mises? Os senhores são economistas?». Dissemos-lhe que não éramos economistas mas que falávamos, efectivamente, de von Mises. É espantoso, comentou ele. Eu sou economista, trabalho com muitos colegas economistas e nunca encontrei alguém deles que soubesse quem é L. von Mises!»

Em contrapartida do que descrevi, os manuais universitários e as estantes das livrarias esmagam os estudantes e os compradores com nomes e livros que põem a economia ao serviço da política, doutrina que, naturalmente, é a única que os economistas conhecem, aliás, com bastante minúcia, esforçado estudo e alta capacidade de aplicação.

Existe, pois, como diz M. Friedman no livro «Liberdade e Capitalismo», um statu quo que só por ser o que é, só por força da inércia e de aí estar instalado, constitui um poderoso obstáculo à introdução de qualquer teoria, por mais verdadeira, que não seja aquela donde deriva a prática contabilística e a política económica em exercício. O avanço que eu, entretanto, viera alcançando nas minhas indagações, permitia-me já observar que, para este êxito do statu quo, para conseguir ele manter inabaláveis as suas posições, muito contribuem duas graves deficiências da ciência económica apontadas - infelizmente apenas apontadas - por L. von Mises no fugaz texto que pus em epígrafe deste livro. É, uma, a falta de um léxico adequado e rigoroso, outra a de ela ainda não possuir o claro conceito dos seus fundamentos lógicos - que veremos serem as categorias económicas - o que se explica por ter adoptado, «como ponto de partida», uma tal interpretação do pensamento de Aristóteles que o tornou estéril para a cientificação da economia.




Da falta de um rigoroso léxico me apercebera eu logo no início da minha indagação, consoante já descrevi. Mas estava longe de imaginar que a confusão dos termos invadisse, em metástases imparáveis, todo o corpo da ciência. As palavras mais importantes e frequentes - como preço, juro, capital, propriedade, posse, câmbio, renda, inflação, ou dinheiro - são empregues nos mais diversos sentidos, constituindo outras tantas armadilhas onde caem em obscura confusão os que, como eu, vão à procura de saber o que seja a economia. Desta confusão beneficia o statu quo, dela se aproveitam os adversários da concepção da economia como ciência. Vou dar-lhes um exemplo.

A expressão capitalismo só pode, em rigor, designar a doutrina do capital que é um dos componentes, entre muitos outros, do todo económico. Mas tornou-se corrente empregá-la como significando o sistema da ciência económica, a qual fica, portanto, caracterizada por um dos seus componentes secundários e reduzida a um sistema entre outros possíveis. Fácil se torna, então refutá-la.

Outro exemplo é o da falsa sinonímia que se estabeleceu entre as expressões liberdade económica e economia de mercado. O mercado é uma das categorias económicas e, sem as outras, que são a propriedade e o dinheiro, não caracteriza nenhum tipo de economia. A liberdade económica, por sua vez,é o mesmo exercício da ciência económica que, sem essa liberdade, não existe. Estabelecer aquela sinonímia só conduz, portanto, à minoração, senão à deturpação, da ciência.

Ainda hoje não consigo explicar como esta deturpação da linguagem destinada a deturpar os conceitos da teoria, tem passado em silêncio, sem protesto nem correctivo. Mais do que isso: os mesmos teorizadores, cujo pensamento é ferido pela deturpação, lhe dão direito de cidade. Milton Friedman, por exemplo, deu a um livro onde expõe uma súmula das suas concepções, o título de «Capitalismo e Liberdade»!



Empenhei-me em ver bem vistas estas coisas, pelas quais geralmente se passa com uma ligeireza que bem pode chamar-se leviandade. Depois de ter observado que a deturpação se orienta no sentido de reduzir o maior ao menor, o todo a uma das suas partes, reparei que, através da falsa sinonímia (o capitalismo sinónimo de sistema da ciência económica, a economia de mercado sinónimo de liberdade económica), se remete para o todo, que é a ciência da economia, a crítica daquela sua parte. E concluí que este processo só pode resultar desde que se esconda que a cada palavra corresponde um conteúdo próprio, coisa que só é possível fazer quando não esteja estabelecido um rigoroso léxico científico.

Também depois de ter observado este processo, verifiquei que uma segunda deturpação da linguagem, mas esta em sentido contrário, favorece a tarefa dos que procuram minorar e negar a concepção e sistematização da economia como ciência. Enquanto a primeira deturpação se destinava a dar como tendo o mesmo conteúdo, que é a ciência económica, expressões entre si diferentes, esta segunda destina-se a dar como tendo conteúdos diferentes, expressões que, substancialmente, designam o mesmo conteúdo, que é a doutrina do controlo da economia pelo Estado, embora manifestando-se ela em situações históricas diversas ou preconizando-se a sua aplicação em graus mais ou menos acentuados. Assim a encontramos, nos Séculos XVI e XVII, designada por bulionismo, nos Séculos XVII e XVIII, designada em França por mercantilismo e em Inglaterra por proteccionismo, no Século XIX por socialismo e, no século em que vivemos, por keynesianismo. A manifestação mais moderada foi a bulionista, que se limitou a proibir a exportação da moeda ou do ouro nos países ibéricos, a mais extrema foi a socialista, que chegou a preconizar a abolição da propriedade, do mercado e do dinheiro. Ludwig von Mises apercebeu-se claramente de como nesta variedade de designações havia uma mesma e constante doutrina e propôs-se dar-se-lhe a designação de intervencionismo, pois ela consiste, essencialmente, em fazer intervir o Estado no livre curso da economia. A designação assim proposta está longe de ter sido adoptada mas foi ela que eu me habituei a utilizar na minha indagação. Habituei-me a pensar, sempre que deparava com palavras como socialismo e keynesianismo, em intervencionismo socialista e intervencionismo keynesiano, e a ajuda que com isso obtive para compreender o que procurava compreender foi suficiente para, com toda a honestidade, recomendar aos leitores a utilização do processo. Terá ele ainda a vantagem de lhes comprovar como as palavras não são vãs, possuem um poder bem maior do que aquele que nos ensinam a atribuir-lhes e abrem caminhos à inteligência.


Orlando Vitorino


Parecerá, talvez, que irei extrapolar os limites do nosso assunto, aludindo à relação que, a partir da já exemplificada deturpação da linguagem, se estabelece entre a ciência económica e o liberalismo. A formação da ciência económica foi contemporânea da formação do liberalismo e ficou-lhe para sempre associada. Como o liberalismo é a doutrina da liberdade, o seu domínio é muito mais amplo do que o da economia, embora seja pela economia que, na existência social, os homens adquirem as formas mais quotidianas e vividas da liberdade. Há, pois, além de um liberalismo económico, um liberalismo político, um liberalismo jurídico, um liberalismo cultural e, até, um liberalismo religioso, mas foi o primeiro que predominou como imagem histórica, associando todo o liberalismo à organização da sociedade baseada na economia livre. Ora quando, como há pouco descrevi, a deturpação da linguagem reduziu a economia livre à economia de mercado, o que se pretende atingir não é apenas a ciência da economia mas também o liberalismo em geral. Pretende-se concluir não apenas que o sistema da ciência económica não é mais do que um dos muitos sistemas possíveis do direito, da cultura, da situação social das religiões ou da política, sobretudo da política. Como, entretanto, os sistemas passaram a representar-se nos partidos e, até, a distribuir-se por doutrinas a que se deu o nome de ideologias, concluir-se-ia que o liberalismo não é mais do que um dos inumeráveis partidos ou ideologias possíveis.

Ora a verdade é que nem a ciência económica nem o liberalismo político são um sistema entre outros. Têm ambos uma generalidade que engloba todos os sistemas possíveis. Direi que uma analogia existe entre o que cada um deles é para a economia e para a política e o que o aristotelismo é para o pensamento quando se diz que é «a filosofia natural do homem»: a ciência económica será «a ciência natural da economia» e o liberalismo «a doutrina natural das sociedades humanas». No liberalismo podem caber, portanto, todos os vários sistemas políticos, todas as variantes de cada um deles e todas as combinações que entre eles se formem... (in ob. cit., pp. 27-33).


(1) O ministro referido é o Sr. Dr. Cavaco Silva e a respectiva justificação foi publicada no semanário «Tempo», em Novembro de 1981.



Cavaco Silva



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