terça-feira, 2 de março de 2010

O Plutocrata (ii)

Escrito por Ernesto Palma





A partir da existência do plutocrata, tudo se torna claro a Ernesto Palma: o motivo da revolução, a sua finalidade, o processo em que decorre.

O motivo da revolução é a ameaça de alteração da sociedade, uma ameaça que não vem do exterior, mas sim do povo para o qual a sociedade estabelece as formas possíveis da necessária convivência. Entende Ernesto Palma que a sociedade não tem em si a razão de si, que é insubstancial, e constitui o lugar de encontro do dentro com o fora, o lugar da convivência do mesmo com o outro e, se a existência é ser para outrem, o lugar da existência imediata.

Diz o nosso autor que há uma ordem natural da sociedade, com hierarquias que correspondem aos diversos modos de actividade das populações e com posições em cada hierarquia que correspondem aos graus de virtude alcançados por quem as ocupa. Como a virtude de cada um está em constante aperfeiçoamento ou degenerescência, a ocupação das posições hierárquicas está em constante movimento.

Ernesto Palma enumera as virtudes a que correspondem as hierarquias. As principais são: a prudência, que tem o seu grau de perfeição possível no filósofo; a coragem, que põe em acto a justiça e o herói representa; a bondade, que forma os homens de bem e tem no santo a perfeita realização; a beleza, que a arte introduz entre as formas da existência promovendo "a educação estética do género humano".

Só em raros e fugazes momentos a ordem natural da sociedade constituiu a existência imediata de algum povo. Seu principal obstáculo reside na vulgar mediocridade, que é a incapacidade de virtude e encontra abrigo e exaltação no igualitarismo, o instrumento mais tenaz para sobrepor a rasante uniformidade à ascética hierarquia, a inerte fixidez à actuante mobilidade entre as posições hierárquicas.

O plutocrata, impaciente de realismo, conclui, das dificuldades que a ordem natural da sociedade encontra, a sua impossível realização. E substitui a ordem por uma estrutura na qual as hierarquias e respectivas posições, embora conservando-se, são determinadas não pelas virtudes, mas pelos valores económicos. As populações acomodam-se a esta estrutura porque sempre é, como a ordem natural, movente e porque vêem nos valores económicos o resultado de alguma virtude.

A vigilância da sua estrutura da sociedade entrega-a o plutocrata aos regimes políticos do Estado. Mas os regimes políticos cedem geralmente às tentações do poderio e tendem a regulamentar, até à uniformização, e à imobilidade a existência social das populações. O povo sente ameaçadas as suas formas de convivência e dá os primeiros sinais de insatisfação, descontentamento e rebeldia.

É então que o plutocrata intervém para evitar que o povo percorra o caminho que vai da insatisfação à guerra e destrua a estrutura que ele deu à sociedade. A intervenção consiste em fazer a revolução que sustenha o povo. Ernesto Palma passa a descrevê-la.

Como sabe que tem de a fazer periodicamente, pois periodicamente se gastam os regimes políticos, o plutocrata sabe que a tem de ter sempre preparada. A preparação reside no jogo com o político e no recrutamento e formação dos revolucionários.






No jogo com o político tem o plutocrata duas finalidades. É, uma, a de dispor de homens empenhados em transmitir às populações a convicção de que o regime político a depor pela revolução é o culpado de todos os males tal como o regime político que o substituirá é a cornucópia de todos os bens, e decididos a assumir os poderes do Estado que a revolução lhes entregará. É, outra, a de se assegurar que, uma vez senhores dos poderes do Estado, esses homens conservarão a sua estrutura da sociedade não só incólume mas revigorada, e com as populações acomodadas, o povo sustido, por mais um novo período.

Quanto ao regime político a instaurar, bem como ao sistema administrativo a, conjuntamente, estabelecer, o plutocrata escolhe consoante as condições da época. Todos os regimes igualmente lhe servem mas, dentre os sistemas administrativos, é o socialismo que mais lhe convém porque se presta, por um lado, à vesânia dos seus revolucionários e, por outro lado, aquieta as indignações dos trabalhadores explorados acenando-lhes com expectativas por sua natureza sempre adiadas. Embora mais adaptável à ditadura do que à democracia, ao contrário do liberalismo, o plutocrata escolhe, para a sua revolução de 1974, o regime da democracia por ser o que tem nesta data mais consenso universal, e porque sabe que, com as inevitáveis e comprovadas inviabilidade e falência do socialismo, a democracia acaba por ficar apenas formal e por ser exercida, de facto, como uma ditadura.

O recrutamento e formação dos revolucionários são mais demorados. Analisando a revolução de 1974, toda ela feita com a bandeira rubra do socialismo, Ernesto Palma observou que os agentes e agitadores das populações, ocupantes de terras e casas, sequestradores de empresas, nacionalizadores de bancos, não foram, como era de esperar, os operários da indústria e os trabalhadores dos campos, mas provinha da classe média. Daí tirou duas conclusões: a de que o socialismo é um fenómeno de classe média e a de que é na classe média que o plutocrata recruta os seus revolucionários.

A classe média, muito populosa, habita as grandes cidades, lê jornais, espreguiça-se nos empregos que suplicou às empresas do plutocrata e abastece o mercado de licenciados, estudantes e professores universitários. Irremediavelmente frustrada nas ambições financeiras, desejos mundanos e pretensões intelectuais da sua mediania ou mediocridade, recalca ressentimentos numa vesânia que despeja sobre tudo o que inveja. Torna-se assim uma matéria dócil às modelações que o plutocrata lhe queira dar alimentando-lhe os motivos de ressentimento e frustração, sustendo-lhe a vesânia até ao momento de ela ter a sua soltura na revolução, incutindo-lhe pelos jornais e pela universidade os chavões do novo regime.







Chegado o momento escolhido, o plutocrata lança a revolução. Faz avançar primeiro as forças militares as quais, com a vitória previamente assegurada, são aplaudidas como heróis. Solta nas ruas os seus revolucionários da classe média bradando os slogans, erguendo os cartazes, escrevendo os graffiti nos quais é ele, já não o político deposto, o monstro abominável. Depois, introduz no país, vindos dos desterros idílicos e exílios dourados que lhes ofereceu, os políticos a quem, recebidos em glória, os militares entregam os poderes do Estado. Faz-se ele próprio apontado à execração pública e, tranquilo e seguro do êxito de mais uma das suas revoluções, espoliado de suas empresas, bancos e direitos, abandona o país, parte de férias. Começa, então, o regabofe, expressão de Alexandre Herculano utilizada por Oliveira Martins e tão apropriada à revolução liberal do século passado como à revolução socialista dos nossos dias. Com o regabofe, o nepotismo, as colectivizações, as arbitrariedades e as outras múltiplas formas de corrupção, o país aproxima-se da ruína e do abismo. As populações, assustadas, pedem ao plutocrata que regresse. Que regresse lhe suplicam os políticos em pânico. Cada dia lhe oferecem mais. Restituem-lhe as empresas, restituem-lhe os bancos, restituem-lhe os jornais, as televisões, as escolas. Oferecem-lhe tudo.

Satisfeito consigo mesmo, o plutocrata, por fim, regressa. Mas uma surpresa o espera (ob. cit., pp. 14-18).

Continua


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