9. Os dois liberalismos
O êxito do liberalismo inglês assentou na ausência de leis escritas e na efectiva imitação dos poderes do rei, do estado ou do governo. Os franceses não atenderam a esse facto decisivo e entenderam que o liberalismo se poderia instituir através da formulação de leis que, exprimindo o que é cartesianamente racional, acabam por apontar para o controlo da vida social pela vontade.
Na tradição inglesa, o liberalismo deu prioridade à liberdade de acção dos indivíduos de acordo com os seus conhecimentos e preferências, e teve um desenvolvimento espontãneo. Na tradição francesa, a liberdade reduziu-se à liberdade de pensamento e de expressão, o que está errado porque essa liberdade não pode existir sem a liberdade de acção. Em vez de ser espontâneo, como o inglês, o liberalismo francês é «construtivista».
Diversas foram as conclusões destas duas correntes liberais: para a corrente francesa, nenhum sistema será bom se não for planeado racionalmente por uma autoridade suprema e, em consequência, o governo impõe a sua vontade aos indivíduos; para a corrente inglesa, a liberdade individual é soberana e é ela que permite a utilização social dos mais vastos conhecimentos e informações: caso se deixe a cada indivíduo a possibilidade de utilizar a sua inteligência, gera-se uma ordem espontânea na qual se combinam os inúmeros conhecimentos de que cada indivíduo dispõe e estão espalhados por todos.
Ninguém pode desejar uma ordem que, como querem os liberais franceses, seja o resultado da imposição de uma vontade. A ordem desejável é aquela que, como defendem os liberais ingleses, provém da colaboração espontânea que, dentro de um sistema jurídico de regras gerais, cada indivíduo dá com a sua acção (até sem saber que a dá).
No sector da economia, o liberalismo inglês coincide com o sistema de mercado. É esse o sistema em que, utilizando a sua liberdade de acção, cada indivíduo é portador de conhecimentos e de informações que se traduzem em preços de mercado. Ora a fonte de riqueza da sociedade moderna reside, precisamente, em poder ela utilizar o máximo de informações e conhecimentos. O mercado dispõe, assim, daquilo que nenhuma autoridade pode possuir e só ele constitui o instrumento de comunicação capaz de criar o maior benefício no interesse geral.
10. A intervenção de um professor de direito ou a manipulação marxista da universidade portuguesa
Nas intervenções que se seguiram a esta 2.ª Conferência, foi especialmente significativa a do Dr. Soares Martinez, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, que declarou:
a) que, na generalidade dos países, 50% da economia está nacionalizada; como poderá, portanto, estabelecer neles o Prof. Hayek o sistema de concorrência que preconiza?
b) que a «lei marxista da concentração capitalista» é irrefutável; como poderá, portanto, ser viável o liberalismo?
c) que o marxismo é inteiramente válido no domínio económico e só é refutável no domínio do social, na hierarquia de valores sociais que estabelece.
F. Hayek respondeu com nitidez sumária e indisputável a estas declarações de Soares Martinez. Mas o que há nelas de significativo é virem confirmar a tese - exposta no n.º 3 da «Escola Formal» - de que, entre nós, a distinção entre capitalismo e socialismo consiste apenas no seguinte: o capitalismo separa as entidades que dispõem do poder económico e dominam o Estado, os plutocratas, e as entidades que representam o Estado, os governantes; o socialismo reúne nas mesmas entidades os senhores do governo e os senhores da economia, os que representam o Estado e os que dominam o Estado; no capitalismo, «a hierarquia social dos valores» (para empregar a expressão do Dr. Soares Martinez) é independente da hierarquia política ou burocrática; no socialismo, a hierarquia social indentifica-se com a hierarquia burocrática ou política. O regime adoptado pelo Dr. Soares Martinez é o que vigorou até ao 25 de Abril; o regime advogado pelos socialistas é o que vigora desde o 25 de Abril. Tudo o mais é, para ambos, igual: o planeamento da economia, o controlo da produção, a negação da propriedade (para uns «de facto», para outros «de direito»). Para ambos, a economia deve reger-se pelo marxismo. Para ambos, a marcha ou os ventos da história são inexoráveis e conduzem inexoravelmente à nacionalização e à colectivização de toda a acção humana, agora já em 50%, brevemente em 100%. A ambos é comum o horror ao liberalismo, à liberdade, ao indivíduo.
De registar ainda que o Dr. Soares Martinez é professor da Faculdade de Direito e, por sinal, um dos professores que mais resistiu às organizações socialistas ou comunistas dos estudantes, o que lhe valeu a hostilidade da poderosa máquina de propaganda do socialismo. Mais significativo se torna, portanto, que um homem assim hostilizado pelos socialistas organizados não consiga desprender-se dos quadros mentais socialistas que dominam o ensino universitário há largos anos e venha agora defender, perante Frederico Hayek, a irrefutabilidade do marxismo na economia. A «Escola Formal» não podia encontrar melhor confirmação da descrição que fez, no seu n.º 2, do carácter estruturalmente marxista que, desde alguns decénios adoptou, o ensino superior em Portugal. Esse carácter é o principal factor da actual socialização do país.
O que Frederico Hayek respondeu ao Dr. Soares Martinez foi isto:
- quanto à dificuldade de estabelecer o sistema de concorrência nos países que já nacionalizaram 50% da economia, Hayek observou que mais difícil seria estabelecê-lo se já estivessem nacionalizados 100% da economia.
- quanto às objecções levantadas pelo sistema marxista da economia, Hayek observou que todo esse sistema, de princípio a fim, está errado.
11. Um embaixador de França, um governador do Banco de Portugal, ou como procedem os socialistas
Duas destas personalidades manifestaram-se, durante a conferência, de modo intempestivo. Foram elas o Embaixador de França, que nos dizem ser um velho socialista e o Dr. Silva Lopes, que nos dizem ser um novo socialista. Ambos se ergueram ostensivamente a meio da conferência, abandonando a sala e manifestando depois, nos corredores, a sua indignação perante as afirmações de Frederico Hayek só porque eram anti-socialistas. Deste modo, o velho socialismo francês e o novo socialismo português se recusam a toda a discussão e diálogo, fogem à crítica a que sabem não poder resistir, se refugiam na indignação das máscaras morais sem conteúdo e, suposto em tudo isto, defendem a restauração da censura que de todos os incómodos os protegerá. Deste modo ambos reconhecem como o socialismo já não é mais do que uma doutrina para campanhas eleitorais dirigidas a um pobre povo ao qual previamente se recusa a informação séria e a possibilidade de reflectir e apreciar.
12. Os caminhos da democracia, não a democracia, estão errados
Na terceira conferência que realizou, Frederico Hayek ocupou-se da democracia. Começou por dizer que a democracia é um belo e nobre ideal. Como método de mudança pacífica, tem um valor inestimável. É muito importante podermo-nos livrar de um governo com o qual não concordamos e, para isso, o sistema democrático é insubstituível.
Todavia, a democracia falhou. Em todo o mundo se sente e se manifesta uma profunda desilusão com a democracia. O motivo desta desilusão não reside na democracia em si, no seu ideal e no seu princípio, mas sim nos processos a que ela recorreu, nos caminhos por onde seguiu. Falharam as tentativas para limitar os poderes do governo, e um governo com poderes ilimitados, seja ele democrático ou não, é sempre abominável.
O erro fundamental que levou à frustração da democracia é a identificação do poder legislativo e do poder governativo.
Destinada a fazer leis, a Assembleia Legislativa ignora o que é a lei, ignora que as leis exprimem regras gerais aplicáveis a toda a gente em circunstâncias indefinidas, e passou a considerar como leis todas as decisões, todas as concessões de certos benefícios a determinados grupos e em circunstâncias bem definidas, permitindo que qualquer regra arbitrária possa chamar-se lei.
Destinada a representar a opinião do povo que só pode ser expressa por regras gerais, ou leis no seu verdadeiro sentido, a Assembleia Legislativa passou a obedecer, não à opinião, mas à vontade dos eleitores. É a Rousseau que se deve esta transferência.
Obedecendo à vontade dos eleitores e confundindo a lei com qualquer decisão arbitrária, a Assembleia Legislativa passou a dispor de poderes ilimitados de governação, tornou-se omnipotente. Ora uma entidade com poderes ilimitados só pode ter o apoio de certos grupos. Tem, para isso, de conceder a certos indivíduos certos benefícios. Omnipotente, com poderes para atribuir todos os privilégios, a Assembleia Legislativa é simultaneamente fraca porque não pode recusar os benefícios que tem o poder de conceder aos grupos que lhe asseguram o apoio da maioria. A maioria assim obtida é pior do que um governo autoritário e autocrático, porque esse, ao menos, ainda pode obedecer a certos princípios, ao passo que uma assembleia democrática não o poderá fazer.
Não se pode atribuir aos políticos a culpa desta situação, porque não podem fugir a ela, mesmo quando o desejem, sujeitos como estão a uma concorrência eleitoral legalizada. Para conseguirem votos, para obterem o apoio da maioria, os políticos têm de proteger certos grupos e conceder-lhes benefícios.
Foi a seguir a esta descrição dos caminhos errados que a democracia segue, que Frederico Hayek expôs a sua concepção da limitação dos poderes governativos, da constituição de duas Câmaras ou Parlamentos, dos benefícios do Senado (in ob. cit., pp. 17-19).
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